INTRODUÇÃO
A questão da autonomia dos entes federados é de relevante análise e merece atenção em virtude de suas intrincadas perspectivas no cenário brasileiro. Por mais que, inicialmente, se cogite tratar de assunto estritamente teórico, tem implicações diretas na configuração política e social do país. A definição das competências entre os entes federados a nível constitucional os vincula ao aperfeiçoamento de suas gestões a fim de verem exauridas suas responsabilidades. Partindo dessa observação, denota-se de inequívoca importância tratar do assunto do pacto federativo e questionar se realmente existe autonomia nos diferentes níveis de governo.
DESENVOLVIMENTO
O exercício político é bastante variado, não existindo, de forma objetiva, uma modalidade melhor que a outra. Na verdade, o que interessa avaliar é se o modelo adotado é coerente com a realidade vivenciada. Nessa ótica, em contraposição à centralização política, onde existe um único núcleo de decisões, entende-se por descentralização a fragmentação da atuação política entre as entidades autônomas que compõe um Estado. Não é suficiente a simples disposição constitucional que estabelece uma ou outra, centralização-descentralização, como modalidade de exercício, afinal, o que dará efetividade a esse contexto é a repartição das competências estabelecida pelo legislador originário. (ROCHA, 1996).
A Federação é o instrumento político adotado no Brasil para garantir essa forma descentralizada de exercício institucional. Hoje, o princípio federativo está inserido numa ordenação constitucional rígida, tendo, inclusive, a garantia da imutabilidade - norma pétrea, ou seja, qualquer alteração textual necessita de processo especial e qualificado previsto na própria Constituição. Nesse sentido, não se pode ter como válida qualquer norma que agrida, restrinja ou anule o princípio da autonomia, interferindo no âmbito de atuação autônoma dos entes federados. Além disso, prevê o ordenamento, em caso de não observância desse princípio, possibilidade de intervenção, considerada a forma mais agressiva de cerceamento de autonomia. (AGUIAR, 1995).
Ter conquistado esse status no ordenamento jurídico representa significativa conquista, afinal, por meio dessa forma de Estado há maior aproximação entre o poder e o seu titular - o cidadão - garantindo, de forma mais eficaz, a participação popular e em conseqüência, maior satisfação das necessidades suscitadas, assegurando equilíbrio nos interesses representados e reforçando a democracia. No entanto, como se observa na trajetória histórica desse instituto no país, seus fundamentos ficaram, por muito tempo, a mercê de decisões políticas tendenciosas. (ROCHA, 1996).
Em 1891, a Constituição dispôs textualmente sobre a forma de Estado federado, dando autonomia aos Estados e aos Municípios. Entre 1937-1945 o federalismo praticamente desapareceu, sendo restaurado com a Constituição de 1946, inclusive no que tange à autonomia municipal. Novamente, em 1967, com uma Constituição oriunda de golpe militar, houve enfraquecimento dessa forma de Estado, estabelecendo-se como característica principal dessa fase a concentração de poderes na União. Com o advento da crise política na segunda metade de 1968, por meio do Ato Institucional 5, foi totalmente extinta a Federação. Com a Carta de 1969, formalmente EC1/67, nota-se indiscutível preeminência da União frente aos Estados e Municípios, que, cada vez mais, viam diminuir suas prerrogativas, embora se mantivesse a forma federativa. (BASTOS, 1995).
Sem afastar a soberania nacional, entende-se por Federação a reunião de vários Estados, autônomos política e administrativamente, com a participação de todos na configuração da vontade nacional. Importante ressaltar que, apesar de se caracterizar como forma de descentralização política, não se confunde com a Confederação, onde tanto a entidade nacional quanto as entidades confederadas gozam de soberania. (ROCHA, 1996).
O processo de desconcentração de poderes, que atravessou fases de progresso e retrocesso, como se viu, alcançou significativo avanço com a Carta Política de 1988. Nela, o sistema federativo conferiu autonomia à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. (BASTOS, 1995). Com relação a esse último ente, não resta dúvidas de que faça parte de nossa Federação. As Constituições anteriores não faziam essa referência de forma expressa, inovação trazida pela Carta Magna de 1988, que inaugura no cenário mundial uma modalidade ímpar de forma de Estado. (AGUIAR, 1995).
Como esclarece Hely Lopes Meirelles:
“ O Município brasileiro é entidade estatal integrante da Federação, e essa integração é uma peculiaridade nacional, sendo que em nenhuma outra nação se encontra o Município constitucionalmente reconhecido como peça do regime federativo.” (BASTOS, 1995, p. 32).
Atualmente, a Constituição estabelece em seu art. 1º:
“ Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos [...]”
Ademais, define o art. 18 da mesma Carta:
“ Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição. [...]”
A reformulação do federalismo se fez de forma bastante significativa em relação a repartição das competências. A atual Constituição enumera os poderes da União, deixa os remanescentes aos Estados, e explicitamente, elenca àqueles de responsabilidade dos Municípios. (BASTOS, 1995).
Nesse cotejo, e com objetivo de resguardar a autonomia dos entes, o sistema constitucional vigente define:
- Competências exclusivas e privativas de cada uma das entidades (União, Estados, DF e Municípios), traçando-lhes a respectiva esfera de autonomia.
- Competências concorrentes da União, dos Estados-membros e do DF, referindo-se à função legislativa. Nota-se que, pela letra da lei, se excluiu os Municípios dessa parcela de concorrência, entretanto, pela determinação contida no art. 30, II, da mesma Lei Maior, onde se estabelece que: “compete aos Municípios (...): II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”, essa competência é conferida.
- Competências comuns a todas as entidades federadas em iguais condições de titularidade para o desenvolvimento de determinadas funções.
O conceito de competência está intimamente relacionado ao grau que um ente tem de se impor em relação aos demais no desenvolvimento de alguma responsabilidade atribuída pela Constituição. A repartição do poder entre os vários níveis de governo é da essência do federalismo e deve estar pautada no estatuto fundamental do Estado, vez que a mera delegação do governo central não a legitima. (AGUIAR, 1995). Nesse sentido, a questão das autonomias, eixo basilar da Federação, vincula-se, apesar de existirem competências comuns ou complementares, à idéia de competências próprias ou exclusivas, sendo utilizado o critério da prevalência de interesses para sua distribuição entre os entes federados. (ROCHA, 1996).
Por mais que a autonomia configure-se pela capacidade de auto-organização, auto-governo e de auto-administração, isso não se sustenta sem uma independência mínima, o que também pressupõe capacidade de auto-suficiência financeira. É imprescindível haver correlação entre as competências repartidas e os recursos destinados aos respectivos entes federados, afinal, de outra forma, as atribuições ficam inviabilizadas e a descentralização, inoperante. (ROCHA, 1996). As Constituições brasileiras têm beneficiado de forma incontroversa a União, concentrando nesse ente a distribuição de rendas tributárias. Esse quadro denota uma inevitável dependência econômica entre os órgãos federais e os federados, o que prejudica sobremaneira a efetiva autonomia entre as diferentes esferas de poder. (BASTOS, 1995).
Nada mais contraditório ao espírito federativo que a submissão de um ente federado a outro no sentido de conquistar as somas necessárias ao desenvolvimento de seus propósitos. A idéia da autonomia, como foi dito, carrega em seu bojo a questão da auto-suficiência financeira. Portanto, a possibilidade de criação e arrecadação de tributos nos diferentes níveis de governo se faz necessária, sendo imprescindível a observação do sistema tributário frente aos preceitos constitucionais, vez que o contribuinte não deve ser objeto de reincidências motivadas por identidade de fatos geradores. (BASTOS, 1995).
Tratando de modo especial da questão do Município, considerados pessoa jurídica de direito público interno, a Carta de 1988 conferiu a eles maior participação na gestão administrativa. Preceitua, por exemplo, em seu art. 29, disposição relativa à elaboração da Lei Orgânica, que confere os fundamentos da organização municipal, observadas as peculiaridades locais.
“Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...]”
No entanto, como bem destaca Carmem Lúcia Antunes Rocha:
“Sem recursos próprios, com encargos a cumprir, obrigado a ver-se a braços com pedidos de favores para o acatamento de seus interesses específicos, como poderia um Estado federado fazer-se independente do poder nacional, como poderia assegurar o cumprimento de sua autonomia? E se tem como única via pedir favores econômico-financeiros ao poder nacional, como se desvencilhar de seu correspectivo dever de a ele obedecer, com subordinação inconciliável com a autonomia? “ (ROCHA, 1996, p. 186)
A autonomia municipal, entendida como a faculdade que tem o Município de se auto-organizar politicamente e administrativamente, por meio de legislação própria, de se autogovernar, além de legislar, originária ou supletivamente sobre assuntos de interesse local e de se auto-administrar, respeitando as limitações estabelecidas pela Constituição, sofre limitações, que, de certo modo, afastam a essência do verdadeiro significado do pacto federativo, vez que se estabelece uma hierarquia entre os entes.
Federalismo e descentralização, temas afins, são responsáveis pela reorganização democrática do Estado. A descentralização política, possibilitada em razão da repartição das atribuições constitucionais entre os entes federados, tornou mais fortes os Estados e Municípios, sendo que a União teve enfraquecido seu poder. Mesmo diante dessa conquista, os Municípios, principalmente, ainda precisam se afirmar no que tange a autonomia financeira, para tanto, é imprescindível aumentar seu poder tributário para melhor desempenho de suas tarefas como protagonistas do pacto federativo. (BASTOS, 1995). Nos dizeres de Meigla Maria Araújo Merlin:
“ Apesar de ter sua autonomia assegurada pela constituição, é inegável o enfraquecimento do Município brasileiro, com a crescente adoção de medidas centralizadoras. O grau de autonomia e de fortalecimento municipal costuma ser o termômetro da democracia”
A autonomia financeira diz respeito a capacidade que têm os municípios de instituir e arrecadar seus próprios tributos, bem como aplicar suas rendas como melhor lhes aprouver, observado, nesse cotejo, as limitações estabelecidas pela Constituição. (AGUIAR, 1995).
O sistema tributári possui, em razão das grandes desigualdades do Brasil, o papel de redistribuir rendas: transferir recursos das unidades mais desenvolvidas para as mais carentes, o que em princípio, deveria advir de fatos geradores ou incidências tributárias ocorridas no próprio território. A Constituição de 1988 induziu a transferência de verbas do centro para periferia, o que pressupõe, também, a transferência de competências, fortalecendo, ao menos na teoria, os Estados e Municípios. (BASTOS, 1995).
A repartição das receitas tributárias se refere à partilha de recursos arrecadados entre os entes que compõem a Federação, observando, a conjugação do princípio da autonomia ao da solidariedade, afinal, se busca resultados que correspondam aos interesses comuns e de cada unidade em separado. Esse cotejo ilustra o chamado “federalismo cooperativo”, onde atos complexos entre as entidades autônomas são realizados, como, por exemplo, convênios e consórcios. (BASTOS, 1995).
A repartição das competências a nível constitucional viabiliza o exercício das atribuições entre as esferas de poder político, mas a falta de independência em relação aos repasses de verbas tributárias coloca os municípios em um nível inferior quando comparado à União, por exemplo.
Os municípios, em virtude da representatividade que lhes é peculiar, deveriam ter maior expressividade na política nacional, mas nota-se que essa não é uma realidade. Nesse sentido, esses entes federados, detentores de autonomia, efetivam a descentralização, mas a fariam de forma mais significativa se a autonomia política fosse acompanhada pela financeira.
Por fim, para evidenciar a relevância do tema, ressalta a autora Cármen Lúcia:
“[...] Na história constitucional brasileira, a Federação é mais que apenas a forma de Estado escolhida e acolhida pelo sistema de Direito: é uma garantia contra as investiduras centralizadoras e antidemocráticas que teimam em rondar o poder. Federação é garantia de democracia no Brasil, por isso mesmo impõe uma vigília permanente.” (ROCHA, 1996, p. 257).
CONCLUSÃO
Em resumo, de forma expressa, os entes federados - União, Estados, Municípios e DF - constituem a atual configuração política do Brasil, sendo dotados de autonomia. No entanto, a simples expressão constitucional acerca da autonomia não é suficiente para resguardá-la no mundo fático. Faz-se necessário delimitar as atuações dos entes, atribuindo-lhes, por meio de normas, competências, e por óbvio, prevendo destinação de recursos financeiros para dar suporte às demandas dentro do cenário prático.
Posto isso, essa questão da Federação merece discussão não apenas por suas peculiaridades, mas por estar estritamente ligada à importantes garantias constitucionais. Reforçar a autonomia dos entes é fazer cumprir os preceitos da Lei Maior, que, cumpre admitir, é digna de elogios em virtude das grandes conquistas que representa.
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Joaquim Castro. Competência e autonomia dos municípios na nova constituição. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
BASTOS, Celso (Coord.). Por uma nova Federação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 2006.
MERLIN, Meigla Maria Araújo. O Município e o Federalismo: a participação na construção da democracia. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2004.
ROCHA, Carmén Lúcia Antunes. República e Federação no Brasil: traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAIXETA, Eder Antunes. Autonomia dos entes federados Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 fev 2014, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38233/autonomia-dos-entes-federados. Acesso em: 22 nov 2024.
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