Vivemos atualmente em uma sociedade tecnológica em que ser devassado ou exposto é, de alguma forma, tornar-se popular ou importante. Parece que a vida privada consiste em um prazer ilegítimo e até mesmo excêntrico, em uma verdadeira inversão de valores.
O tema proposto é atual e envolve extrema relatividade, sobretudo porque estamos na seara de direitos fundamentais em embate: direito à privacidade e direito a informação/liberdade de imprensa. Em que pese o tema não ser novo em doutrina, só recentemente adentra no Superior Tribunal de Justiça, responsável por pacificar a legislação federal.
Das lições de Robert Alexy podemos extrair que não há direito fundamental absoluto, nem mesmo o é a própria vida, excepcionada nos casos de guerra declarada. (art. 5°, XLVII, a da CF/88)
Neste choque entre direitos fundamentais principiológicos a solução do caso jamais pode ser dada em abstrato, ou seja, no mundo das ideias, passa-se necessariamente pela ponderação e não mera subsunção de uma regra a um fato em si, passa sim pela diminuição do grau de abrangência de cada um dos direitos, sem afetar seu núcleo essencial, pendendo mais para um ou para outro valor constitucionalmente albergado, a depender do caso concreto. Ninguém duvida que um artista ou político tem um grau de privacidade relativamente menor que os anônimos, hipertrofiando-se o interesse público pelas suas atividades, por conseguinte aumentando o grau de atuação do direito a informação.
Partindo das premissas alhures fixadas, pode-se dizer que o direito ao esquecimento surge no contexto da possibilidade de se impedir a divulgação de imagens ou informações que apesar de verdadeiras, não são contemporâneas e causam aos seus titulares transtornos de diversas ordens.
Em debates doutrinários recentes foi lançado o Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil do CJF, que preconiza que a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.
O promotor de Justiça do Rio de Janeiro Guilherme Magalhães Martins, autor do enunciado, leciona que o direito ao esquecimento não se sobrepõe ao direito à liberdade de informação e de manifestação de pensamento, mas ressalta que há limites para essas prerrogativas, conforme traçamos linhas acima ao aplicar a ponderação dos valores em choque.
"É necessário que haja uma grave ofensa à dignidade da pessoa humana, que a pessoa seja exposta de maneira ofensiva. Porque existem publicações que obtêm lucro em função da tragédia alheia, da desgraça alheia ou da exposição alheia. E existe sempre um limite que deve ser observado”, diz ele.
Desta feita, imbricado com o direito fundamental à privacidade, cunhado de direito de defesa ou de 1° geração, está o direito ao esquecimento, entendimento diverso implicaria no esvaziamento do próprio direito fundamental e do axioma máximo da dignidade da pessoa humana, fundamento da nossa república. (art. 1, III CF/88)
Em que pese manter-se viva a relatividade e ponderação neste terreno, não se pode deixar de registrar o reconhecimento judicial de uma preferência antropocêntrica por parte do constituinte. Explique-se: o STJ já chegou a registrar que ha?, de regra, uma inclinação ou predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, já que a liberdade de informação é balizada pela intimidade, pela proteção a família e pelo fundamento de todo o ordenamento -, dignidade da pessoa humana. Contudo, registra-se novamente que o melhor equacionamento se dará no caso concreto em análise dos valor em choque, evitando-se abusos.
Em meados de 2013 dois casos chamaram atenção junto ao STJ envolvendo o tema aqui abordado, ambos da Quarta Turma e lançados no Informativo de Jurisprudência de n° 527.
O primeiro deles (REsp. 1.335.153), relativo a exibição não autorizada de imagem da vítima de crime amplamente noticiado a? época dos fatos. Cuidou-se de ação movida por familiares de vítima de abuso sexual e homicídio em 1958. Tal crime foi apresentando em programa policial televisivo com a divulgação do nome da vítima e de fotos reais, o que, segundo seus familiares, trouxe a lembrança do crime e todo sofrimento que o envolve.
Os ministros entenderam que houve a divulgação de somente uma imagem sendo todo o resto do programa baseado em encenação. Registraram não haver direito de compensação por danos morais aos seus familiares, eis que teria sido a imagem teria sido publicada sem nenhum viés vexatório, comercial ou degradante, em que pese a dor familiar pela relembrança dos fatos com a reportagem.
Já em outro caso (REsp 1.334.09), também relativo ao mesmo programa televisivo, a Corte entendeu configurar dano moral a veiculação de imagens sobre fatos ocorridos ha? longa data, com ostensiva identificação de pessoa que tenha sido investigada, denunciada e, posteriormente, inocentada em processo criminal.
A Turma entendeu haver violação do direito ao esquecimento e manteve sentença do TJ/RJ que condenou a emissora ao pagamento de indenização no valor R$ 50 mil. O autor ação teria sido apontado como coautor da chacina da Candelária, no entanto, foi absolvido.
O cerne deste segundo julgamento, sem dívida, foi a forma como a historia foi narrada, apresentaram-se os fatos dolorosos com exposição direta do demandante e com a clara conotação de indiciado e não de absolvido.
De outra banda, importante registrar que o sigilo da folha de antecedentes nos registros criminais após certo lapso de extinção da pena é garantia do condenado, por maiores e melhores razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, sendo-lhes devido o reconhecimento do direito de serem esquecidos.
Afora tais fatos criminais levados a julgamento pelo STJ, consignamos que o tema é fértil e atual no que diz respeito a troca de informações pela internet. Diversas vítimas de fotos e vídeos feitos no passado e que exsurgem atualmente podem, em tese, valer-se do direito ao esquecimento, ou do inglês, right to be let alone.
O direito de ser esquecido gravita em torno da vida digna. A clausula constitucional da dignidade da pessoa humana afiança que o homem seja tratado como sujeito cujo valor supera ao de todas as coisas criadas por ele próprio, como o mercado e ate? mesmo o próprio Estado ou a imprensa.
Percebe-se que um dos fundamentos da república, apenas emoldurado durante décadas, ganha relevo palpável dia após dia, e é materializado judicialmente como um vetor de valores, neste caso, gerando direito à esperança, a paz e a reabilitação.
Bibliografia:
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 7° ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: método, 2012.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 4° Ed. Saraiva, 2013.
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