A doutrina administrativista tradicional aponta a indisponibilidade, ao lado da supremacia do interesse público, como princípios caracterizadores da atuação administrativa na persecução de seus fins.
A indisponibilidade genérica dos interesses públicos serviu durante muito tempo como impedimento na celebração de acordos ou transações por parte do Poder Público, seja na esfera administrativa, seja na esfera judicial.
Mas o que vem a ser interesse público?
Vários são os autores que definem o interesse público. Segue o conceito dado por MELLO (2005, p. 48 e 51):
Ao se pensar em interesse público, pensa-se, habitualmente, em uma categoria contraposta à de interesse privado, individual, isto é, ao interesse pessoal de cada um. Acerta-se em dizer que se constitui no interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social, assim como acerta-se também em sublinhar que não se confunde com a somatória dos interesses individuais, peculiares de cada qual. Dizer isto, entretanto, é dizer muito pouco para compreender-se verdadeiramente o que é interesse público.
(...) o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelo simples fato de o serem.
Dentre as várias conseqüências deste conceito, destaca-se uma e a que interessa para esse estudo: a tradicional distinção que alguns doutrinadores fazem do interesse público primário e secundário, consistindo o primeiro no autêntico interesse público (e o conceituado acima) e o segundo no interesse do próprio ente estatal “estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito. Similares, mas não iguais (MELLO, 2005, p. 55).
A contraposição, todavia, a essa clássica distinção entre interesse público primário e secundário, a partir de Renato Alessi, na Itália, está delineada na obra de Gustavo BINENBOJM (2005), onde se apresentam novos paradigmas e um moderno conceito de interesse público:
Nesse contexto, os valores encampados constitucionalmente, tidos como paradigmas da ordem jurídica, representam interesses públicos, ou seja, diretrizes e efetivamente vinculantes para a máquina estatal. Ato contínuo, partindo da premissa de que interesses privados e coletivos coexistem como objeto de tutela constitucional, conclui-se que a expressão interesse público consiste em uma referência de natureza genérica, a qual abarca a ambos, interesses privados e coletivos, enquanto juridicamente qualificados como metas ou diretrizes da Administração Pública. Por conseguinte, o interesse público pode, num caso específico, residir na implementação de um interesse coletivo, mas também na de um interesse eminentemente individual. Este é o caso, v.g., da manipulação do aparato policial em defesa de um cidadão, situação que prestigia o valor segurança individual.
Além de introduzir um novo conceito de interesse público no direito administrativo, BINENBOJM desafia o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, sugerindo que o conceito de interesse público se submeta ao escrutínio da proporcionalidade e da razoabilidade (GODOY, 2011, p. 22).
Nesse sentido, é sugerido que o postulado da proporcionalidade seja utilizado para definição do que seja interesse público, em cada caso. Explica-se: não se nega o conceito de interesse público, mas tão somente a existência de um princípio da onde o conteúdo de um interesse público sempre prevaleceria. (BINENBOJM, 2005).
A supremacia do interesse público sobre o privado também constitui um dos pilares do direito público, uma vez que apregoa a posição privilegiada do órgão encarregado de zelar pelo interesse público sobre os particulares. No entanto, BINENBOJM (2005) diz que:
Note-se bem: não se nega a existência de um conceito de interesse público, como conjunto de ‘interesses gerais que a sociedade comete ao Estado para que ele os satisfaça, através de ação política juridicamente embasada (a dicção do Direito) e através de ação jurídica politicamente fundada (a execução administrativa ou judiciária do Direito).” O que se está a afirmar é que o interesse público comporta, desde a sua configuração constitucional, uma imbricação entre interesses difusos da coletividade e interesses individuais e particulares, não se podendo estabelecer a prevalência teórica e antecipada de uns sobre outros. Com efeito, a aferição do interesse prevalecente em um dado confronto de interesses é procedimento que reconduz o administrador público à interpretação do sistema de ponderações estabelecido na Constituição e na lei, e, via de regra, o obriga a realizar seu próprio juízo ponderativo, guiado pelo dever de proporcionalidade.
E essa ponderação de interesses deve ser guiada pela constitucionalização do direito administrativo, e não mais pela estrita vinculação positiva à lei. Ou seja, o que se vê também com os ensinamentos de BINENBOJM é que a Constituição, e não mais a lei, passa a se situar no cerne da vinculação administrativa à juridicidade.
O princípio da juridicidade administrativa abre espaço a uma nova conformação do atuar administrativo, que não deve ficar atrelado apenas aos fins preconizados na lei, e sim aos fins estampados na Constituição Federal. A depender da situação de confronto, é possível o afastamento da norma infraconstitucional para aplicação de uma interpretação segundo a ordem constitucional.
Pois bem. Voltando a questão principal deste tópico, os novos paradigmas do direito administrativo (novo conceito de interesse público, a desconstrução do princípio da supremacia e a transformação do princípio da legalidade em princípio da juridicidade), têm transformado o princípio da indisponibilidade do interesse público, que nos dias atuais não se constitui mais empecilho genérico à ponderação de interesses pela Administração e a prática de procedimentos conciliatórios.
E este quadro vem se alterando, notadamente em nível federal, onde se destacam algumas iniciativas da Advocacia-Geral da União, mediante a edição de súmulas administrativas[1], que permite, por exemplo, aos integrantes da AGU, a não-interposição de recursos ou a sua desistência em matérias já pacificadas na jurisprudência dos tribunais.
Ademais, ainda no âmbito da AGU, com a regulamentação do disposto no inciso VI do art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, pela Lei 9469/97, foi permitido ao Advogado-Geral da União desistir, transigir, acordar e firmas compromisso nas ações de interesse da União, nos termos da legislação vigente. Também a referida Lei autorizou e definiu as autoridades competentes para a celebração de acordos judiciais, a depender do montante pecuniário envolvido no litígio.
Por fim, na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal, regulamentada pela Portaria AGU nº 1.281, de 27 de setembro de 2007 e prevista no Decreto 7.392[2], de 13 de dezembro de 2010, os interesses públicos se contrapõem constantemente, mas são apresentados à discussão e conciliados, de forma a construir uma solução onde haja a compatibilização de um interesse público com outro, ou a disponibilidade de um em detrimento de outro.
Ainda temos os Juizados Especiais, que são entes voltados preponderantemente à solução de litígios pela via consensual conforme a Lei 10.259, de 2001 (nível federal), e mais recentemente a Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009 (que dispõe sobre os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios). Nesses órgãos, os entes públicos realizam transações em juízo.
A Lei da Ação Civil Pública, Lei n. 7.347/85, autoriza o Ministério Público a conciliar nos casos envolvendo interesse público. Informa DALLARI (apud BERTOLO, 2012, p. 10).
O parágrafo 6 do art. 5 da Lei n. 7.347/85 que disciplina a ação civil pública, prevê, expressamente, a possibilidade de solução amigável. (...) O que se pretende destacar, entretanto, é a previsão legal expressa de solução amigável. Ou seja, que já existe previsão legal expressa de solução amigável dos conflitos envolvendo a Administração Pública, sem que isso signifique lesão ao princípio da indisponibilidade dos interesses públicos. (...) O que se sustenta é que não se pode mais aceitar uma submissão absoluta à letra da lei, em detrimento da realização dos fins a que ela se destina. Cumpre-se a lei quando se atinge o resultado por ela almejado.
Acredita-se, portanto, que o princípio em estudo está passando por um período de transformação tendo em vista a nova leitura que tem sido feita a partir dos conceitos administrativos tradicionais. Esse movimento ainda tem permitido a abertura de novos critérios normativos e possibilitado a prática de procedimentos conciliatórios, caminho que tem sido adotado pela Administração Pública de forma cada vez mais corrente.
Por meio das linhas traçadas sobre o princípio da indisponibilidade, o que se tentou demonstrar foi que a desconstrução do direito, a partir da transformação de conceitos, da doutrina, de decisões e da lei, possibilita uma abertura crítica do universo jurídico e a modernização de conceitos e de estruturas jurídicas.
Esse processo, acompanhando as transformações inerentes ao direito, privilegia um espaço para discussão do caso concreto, do direito aplicável, dos interesses públicos envolvidos e da possibilidade de disponibilidade desse interesse. O diálogo ainda constrói uma solução comprometida com os interesses apresentados, coincidido com a solução possível, a melhor ou a mais eficiente.
BERTOLO, Patrícia Batista. A transação do Interesse Público e o dogma da sua indisponibilidade: Uma abordagem teórica a partir das experiências iniciais da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal. 2010. (Especialização em Direito Público) - Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília.
BINEMBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=228. Publicado em 2005. Acesso em 4.10.2010.
Cartilha da CCAF. Disponível em: http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=80350&id-site=1104. Acesso em 25.08.2012.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Análise Econômica do Direito e Políticas Públicas: Câmaras de Conciliação e Arbitragem no Executivo Federal e a Busca de Eficiência nos Marcos Regulatórios Administrativos. Disponível em http://www.arnaldogodoy.adv.br/arnaldo/artigos/analisepeblica.htm;jsessionid=B9213619FE0877BECED4717E6DF3E564. Acesso em 19.08.2012.
___________________________ Construção e Desconstrução doutrinária do conceito de interesse público no Direito brasileiro. Revista da AGU. Ano X. Número 28, Brasília-DF, abril/junho/2011.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 18° ed., São Paulo: Malheiros, 2005.
[1] Dentre as competências do Advogado-Geral da União, está a de editar enunciados de súmula administrativa, resultantes de jurisprudência iterativa dos Tribunais artigo 4º, inciso XII, da Lei Complementar 73/93.
[2] “Art. 18. A Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal compete: I - avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da Advocacia-Geral da União; II - requisitar aos órgãos e entidades da Administração Pública Federal informações para subsidiar sua atuação; III - dirimir, por meio de conciliação, as controvérsias entre órgãos e entidades da Administração Pública Federal, bem como entre esses e a Administração Pública dos Estados, do Distrito Federal, e dos Municípios; IV - buscar a solução de conflitos judicializados, nos casos remetidos pelos Ministros dos Tribunais Superiores e demais membros do Judiciário, ou por proposta dos órgãos de direção superior que atuam no contencioso judicial; V - promover, quando couber, a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta nos casos submetidos a procedimento conciliatório; VI - propor, quando couber, ao Consultor-Geral da União o arbitramento das controvérsias não solucionadas por conciliação; e VII - orientar e supervisionar as atividades conciliatórias no âmbito das Consultorias Jurídicas nos Estados.”
Formada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB e em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Procuradora Federal desde 2004.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Helena Dias Leão. A desconstrução do princípio da indisponibilidade do interesse público e a prática de procedimentos conciliatórios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38939/a-desconstrucao-do-principio-da-indisponibilidade-do-interesse-publico-e-a-pratica-de-procedimentos-conciliatorios. Acesso em: 22 nov 2024.
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