RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a garantia constitucional do acesso à justiça, em especial os principais aspectos históricos que levaram ao surgimento de complicadores essenciais ao modo com a qual a referida garantia vem sendo vem sendo abordada e aplicada pelos operadores do direito.
PALAVRAS-CHAVE: acesso à justiça, inafastabilidade da prestação jurisdicional; ondas renovatórias, complicadores.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. DESENVOLVIMENTO; 2.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA MUNDIAL DO DIREITO FUNDAMENTAL AO ACESSO À JUSTIÇA; 2.2. ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO X ACESSO ÀS PRETENSÕES DE JUSTIÇA; 2.3. O ACESSO ÀS PRETENSÕES DE JUSTIÇA E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO; 2.3.1. COMPLICADORES À EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA; 2.3.1.1. CUSTAS JUDICIAIS E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS; 2.3.1.2. MOROSIDADE PROCESSUAL; 2.3.1.3. DESIGUALDADE DAS PARTES; HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA E TÉCNICO-JURÍDICA; 3. CONCLUSÃO; 4. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
Assim como o homem somente consegue viver em sociedade, não é possível que uma sociedade subsista sem o direito. Ubi homo, ibi societas; ubi societas, ibi jus, já dizia Ulpiano no Corpus Iuris Civilis. Conceitos, regras e princípios são essenciais à efetivação da harmonia social, uma vez que a própria história mostra que, não obstante o caráter gregário do homem, a sua convivência com os demais, aliada à necessidade de auto-afirmação e ao instinto de sobrevivência, constitui verdadeiro fato gerador dos conflitos intersubjetivos de interesses.
Com efeito, o direito surge com o fim precípuo de regulamentar a sociedade e de servir como o mais eficiente instrumento de solução de conflitos[1], ou seja, de realização de justiça, a qual, por sua vez, sob o aspecto formal, deve ser entendida como a correta e satisfatória aplicação do direito ao caso concreto[2].
Destarte, não se afigura correto considerar o direito apenas como o complexo de leis e princípios, encarando-o, tão somente, como produto da própria convivência social. O direito também é instrumento, ou seja, o meio utilizado por quem busca a efetivação da justiça. Para tanto, faz-se necessário que o ordenamento jurídico coloque à disposição da sociedade os elementos necessários à consecução deste objetivo, bem como crie e aperfeiçoe normas, princípios e institutos destinados a controlar e orientar o operador do direito quando da aplicação da lei no caso concreto.
O acesso à justiça, pois, sob as suas mais varias concepções, constitui um dos principais, senão o mais importante de tais elementos, consubstanciado na garantia maior de que a qualquer cidadão deve ser oportunizado não só o acesso ao Poder Judiciário, mas também a utilização de mecanismos que assegurem a obediência ao devido processo legal e à legítima defesa e, mais ainda, a sua efetiva participação na formação do convencimento do juiz que irá julgar a causa[3].
O que as sociedades vêm buscando ao longo de toda a história é a efetivação do acesso à justiça não somente no seu aspecto formal, mas, principalmente, no seu aspecto material, concreto. A amplitude do exercício de tal direito, contudo, encontra limites no respectivo ordenamento jurídico, a exemplo da obrigatoriedade de contratação de advogados e do pagamento de custas judiciais.
Ocorre que os sistemas jurídicos existentes em todo o mundo estão em constante transformação e evolução, sendo que houve épocas em que o acesso à justiça, hoje garantido em sede constitucional, nem mesmo era considerado um direito. Os seus limites eram condicionados ao grau de rigidez do ordenamento, que, por vezes, encontrava-se distante das realidades e necessidades sociais. Por essa razão, passaremos a uma breve análise da evolução do próprio conceito de acesso à justiça para que, posteriormente, seja possível analisar como ele se encontra inserido na atual conjuntura brasileira.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA MUNDIAL DO DIREITO FUNDAMENTAL AO ACESSO À JUSTIÇA
O significado da expressão acesso à justiça, bem como a forma com que é aplicada concretamente, tem variado ao longo do tempo, em função da própria evolução das sociedades e, consequentemente, da transformação dos valores, das ideias e necessidades a ela inerentes.
Dentre as mais primitivas normas escritas, já encontramos no Código de Hamurabi vestígios de proteção dos mais fracos, na medida em que os filhos órfãos e as viúvas eram incentivados a procurar a instância judicial a fim de que não restassem desamparados[4].
Bem assim, na Grécia antiga, foi Aristóteles quem primeiro defendeu a possibilidade de o julgador adaptar a norma jurídica à situação concreta posta a sua apreciação. Ressalte-se, inclusive, que o poder-dever de julgar era atribuído à totalidade dos cidadãos, e não a um juiz especializado. A todos era assegurado o direito à deliberação sobre as questões de interesse da comunidade em uma espécie de assembléia, exercendo o magistrado, basicamente, uma função meramente auxiliar[5].
Ademais, sabe-se que, nessa época, o acesso à justiça era comum a todos os homens, os quais possuíam o status de cidadãos e, por conseguinte, o direito à postulação e defesa dos seus próprios interesses nos mesmos foros onde deliberavam acerca dos interesses do seu povo[6]. Aparentemente irrestrito, todavia, o acesso à justiça já encontrava limitações, a exemplo da imposição de multas em razão de acusações infundadas, bem como a exigência do próprio interesse de agir.
De fato, foi a Grécia antiga, mais precisamente Atenas, o berço da assistência judiciária aos hipossuficientes, valendo o destaque, inclusive, ao fato de que, anualmente, eram designados dez advogados para atuarem na defesa das pessoas consideradas carentes[7], o que demonstra, desde aquele tempo, a preocupação com o equilíbrio das partes no momento da resolução de um conflito.
Também em Roma é possível encontrar mecanismos criados pelos governantes com o fim de proteger os menos favorecidos. Cite-se como exemplo a instituição dos “patronos”, responsáveis por auxiliar os necessitados, denominados “clientes”, na defesa dos direitos e interesses destes[8]. Bem assim, ao Código de Justiniano foram incorporados diversos institutos jurídicos, a exemplo do patrocínio em juízo, com a finalidade de dar equilíbrio às partes dentro da relação jurídica conflituosa[9].
O período medieval, por sua vez, fora marcado por uma concepção religiosa de direito, representando, pois, um retrocesso, ou, pelo menos, uma restrição aos direitos até então conquistados pela sociedade. Isso porque a imensurável influência da religião sobre o direito colaborou para a carência de acesso dos cidadãos aos mais diversos mecanismos de realização de justiça, a qual, cumpre ressaltar, era considerada uma virtude, esta atribuída tão somente às autoridades, detentoras do poder de distribuição do justo, segundo os seus próprios conceitos[10].
A partir do século XVII, ganhou força a Escola Clássica do Direito Natural, que passou a defender a existência de um direito hierárquica e valorativamente superior a todo o direito positivo[11]. Com efeito, o acesso à justiça passou a ser considerado um direito natural, e, como tal, não necessitaria de uma ação do Estado para a sua proteção[12].
O acesso apenas formal à justiça era uma das características do sistema laissez-faire, que não se preocupava com a efetivação dos direitos fundamentais, mas tão somente com a sua existência e previsão, de modo que ao Estado era vedado qualquer interferência nas liberdades individuais do homem. O caráter abstencionista estatal, portanto, contribuía para consolidar a tendência de uma igualdade apenas formal, uma vez que se encontrava o Estado excluído dos assuntos que diziam respeito à sociedade.
Ocorre que o demasiado abstencionismo passou a incomodar aqueles que tinham os seus direitos violados, mas nada podiam fazer, haja vista que, na prática, a busca pela realização de justiça não se concretizava, ainda mais porque eram poucos os que possuíam condições financeiras de arcar com os altos custos de um processo.
Assim, o surgimento de uma visão mais coletiva dos direitos e deveres sociais também fez surgir a necessidade de uma participação positiva, e não mais negativa, do Estado, o qual se mostrava, cada vez mais, imprescindível à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, dentre eles o direito ao efetivo acesso à justiça.
O verdadeiro debate sobre o acesso à justiça ganhou maior destaque no período pós-guerra, mais precisamente a partir da década de sessenta, quando teve início a primeira das três chamadas “ondas renovatórias” do acesso à justiça, elaboradas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, a saber: a “primeira onda” – a assistência judiciária para os pobres; a “segunda onda” – representação dos interesses difusos; e a “terceira onda” – um novo enfoque de acesso à justiça.
A primeira grande onda, com início em 1965, concentrou-se na assistência judiciária. Teve por objetivo estudar métodos para proporcionar o acesso à justiça àqueles que não poderiam custeá-lo, uma vez que, até então, a assistência judiciária da maioria das nações mostrava-se insuficiente e não atendia às expectativas e necessidades da população[13].
A segunda onda buscou o rompimento da concepção tradicional do processo civil, de modo que a problemática do acesso à justiça também alcançasse a representação dos interesses difusos. Para tanto, tornou-se necessário o aperfeiçoamento de técnicas e institutos processuais, tais como o ato de “citação”, o “direito ao contraditório e à ampla defesa” e a noção de “coisa julgada”. Bem assim, passou-se a admitir que grupos representativos demandassem direitos coletivos, quando o Ministério Público não o tivessem feito de forma eficiente[14].
Por último, mas não menos importante, temos a terceira grande onda renovatória do acesso à justiça, consubstanciada na idéia de reprodução das experiências anteriores, porém de forma mais compreensiva e articulada[15]. Exemplo disso é o fortalecimento dos programas de assistência judiciária, responsáveis por possibilitarem uma maior consciência de seus direitos por partes daqueles que usufruem de tais serviços. Ainda, foram criados mais mecanismos de representação dos direitos difusos, de modo a proteger não apenas aqueles referentes aos mais carentes, mas também aos consumidores, preservacionistas e à população como um todo. A implantação de métodos alternativos para decidir causas judiciais, tais como o juízo arbitral, a conciliação e incentivos econômicos para a solução extrajudicial das lides, também foram alvo de pesquisas e discussões por parte dos reformadores.
Não obstante os inúmeros estudos realizados no sentido de colocar em prática as premissas de cada um dos referidos movimentos, é possível afirmar que sequer a primeira fase restou consolidada, em razão das evidentes dificuldades para institucionalizar mecanismos eficientes e capazes de solucionar os problemas relacionados ao acesso à justiça.
Por outro lado, certo é que o novo enfoque sugerido pela terceira onda renovatória favorece o surgimento de críticas construtivas, aptas a considerar o acesso à justiça não como o simples acesso do cidadão ao sistema judiciário de seu país, mas sim que este mesmo sistema judiciário seja capaz de solucionar um conflito de interesses de forma justa, com a efetiva participação do julgador, de modo que o processo – judicial ou extrajudicial – não se torne um reflexo de desigualdades entre as partes.
Importante mencionar, nesse contexto, a relevância que a modificação da noção de justiça representou ao longo do tempo, na medida em que, em um passado próximo, a justiça era compreendida, tão somente, como a correta aplicação das normas ao caso concreto. Ocorre que, com a nova interpretação que se tem dado à expressão acesso à justiça, proporcionada, dentre os outros fatores, pelas premissas defendidas no último movimento reformista, passou a sobressair, em verdade, a busca pela “justiça social”, a qual, na concepção de Cappelletti, representa "[...] a busca de procedimentos que sejam conducentes à proteção dos direitos das pessoas comuns. [...] é a tentativa, em larga escala, de dar direitos efetivos aos despossuídos contra os economicamente poderosos: a pressão, sem precedentes, para confrontar e atacar as barreiras reais enfrentadas pelos indivíduos"[16].
Destarte, forçoso concluir que os entraves relacionados ao acesso à justiça são tão antigos quanto a própria origem das grandes civilizações, que lutam, há muito, pela construção, positivação e efetivação dos direitos fundamentais, mormente aqueles relacionados a uma ordem jurídica justa e acessível a todos que dela necessitarem. A incessante busca pelo acesso à justiça faz com que as sociedades contemporâneas repensem o verdadeiro conceito deste instituto, face aos diversos obstáculos encontrados ao longo da história.
2.2. ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO X ACESSO ÀS PRETENSÕES DE JUSTIÇA
A amplitude da concepção de acesso à justiça contribuiu para o surgimento de outras expressões que com ele se relacionam e podem ser confundidos em determinadas circunstâncias.
Em um primeiro momento, o acesso à justiça pode ser entendido como o tradicional direito de ação, ou seja, com a faculdade que tem o cidadão de recorrer às instâncias judiciárias, defendendo e postulando em juízo interesses próprios ou alheios[17].
Esta é a perspectiva leiga do acesso à justiça, a qual é encarada como a mera oportunidade de se estar perante o juiz. Tal visão, por óbvio, decorre das forças do poder econômico e político que não alcançam a maioria da população, que, diante das dificuldades encontradas para recorrer ao Poder Judiciário, entendem que a “justiça” somente estaria ao alcance dos ricos, em detrimento dos menos favorecidos[18].
Adiante-se que, no ordenamento jurídico brasileiro, o acesso à justiça tal como considerado alhures encontra amparo no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988[19], também denominado princípio do direito de ação ou da inafastabilidade da jurisdição. Positivado no rol dos direitos fundamentais, este princípio tem por escopo vedar ao legislador a imposição de restrições objetivas de acesso ao Poder Judiciário[20].
Em que pese uma melhor abordagem sobre a relação entre o acesso à justiça e o ordenamento jurídico brasileiro no próximo tópico, certo é que não é essa visão restrita e pragmática de acesso à justiça que aqui defendemos. Nem tampouco a ideia segundo a qual o referido instituto compreende tão somente a noção de assistência jurídica[21], esta aqui entendida em sentido amplo, ou seja, abrangendo tanto a assistência judiciária como também a prestação de outros serviços jurídicos extrajudiciais, a exemplo da consultoria.
De fato, o acesso à justiça não se resume apenas ao direito do cidadão de defender direitos e interesses junto o Poder Judiciário, vale dizer, à mera postulação em juízo. Também não se refere a todo e qualquer auxílio jurídico destinado aos hipossuficientes. Trata-se, em verdade, de um direito à acessibilidade formal e, principalmente, material às instâncias judiciárias. Certo é que utilidade não há ao cidadão, ora parte na relação jurídica processual, não poder, ou pior, não possuir mecanismos para participar, efetivamente, da formação do convencimento do magistrado, de modo que, ao final do processo, reste satisfeita a sua verdadeira pretensão de justiça.
Esta, inclusive, é a expressão que melhor representa as principais premissas defendidas neste trabalho, quais sejam, a de que o acesso à justiça não significa, apenas, o direito (formal) de acesso ao Poder Judiciário, bem como a de que resta patente a necessidade de que o ordenamento jurídico crie instrumentos e aperfeiçoe os já existentes, a fim de que os mesmos sejam eficazes na concretização dos direitos do cidadão.
O acesso às pretensões de justiça, assim, vai muito além do simples acesso formal ao sistema judiciário. Compreende também o direito segundo o qual os conflitos de interesses, levados à via judicial, sejam solucionados mediante a adoção de procedimentos justos, céleres, eficazes e, principalmente, que respeitem as garantias individuais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
Ademais, cumpre frisar que não há necessidade de que, em toda e qualquer circunstância, os conflitos de interesses sejam solucionados tão somente em sede judicial, uma vez que devem ser estimulados os procedimentos de mediação e conciliação, os quais, da mesma forma, contribuiriam para a efetivação do acesso às pretensões de justiça e também para a redução de volume dos serviços jurisdicionais.
Assim sendo, estar-se-ia diante de uma verdadeira ordem jurídica justa, à qual todos devem ter acesso. Com efeito, Kazuo Watanabe assevera que "cabe a todos que tenham qualquer problema jurídico, não necessariamente um conflito de interesses, uma atenção por parte do Poder Público, em especial do Poder Judiciário. Assim, cabe ao Judiciário não somente organizar os serviços que são prestados por meio de processos judiciais, como também aqueles que socorram os cidadãos de modo mais abrangente, de solução por vezes de simples problemas jurídicos, como a obtenção de documentos essenciais para o exercício da cidadania, e até mesmo de simples palavras de orientação jurídica. Mas é, certamente, na solução dos conflitos de interesses que reside a sua função primordial, e para desempenhá-la cabe-lhe organizar não apenas os serviços processuais como também, e com grande ênfase, os serviços de solução dos conflitos pelos mecanismos alternativos à solução adjudicada por meio de sentença, em especial dos meios consensuais, isto é, da mediação e da conciliação"[22].
O mesmo autor, destaque-se, entende que o acesso à ordem jurídica justa, aqui entendida como expressão sinônima de acesso às pretensões de justiça, representa a consagração de direitos e do pleno exercício da cidadania, por meio da preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos, além da remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à justiça[23].
Destarte, faz-se imperiosa a conclusão de que a expressão “acesso à justiça” pode ser objeto de diversas conceituações, podendo significar desde o mero acesso ao Poder Judiciário, consubstanciado no chamado direito de ação, até o acesso aos demais valores e direitos fundamentais do ser humano[24]. O acesso às pretensões de justiça, como preferimos chamar, certamente não se esgota nos aparelhos judiciários, indo mais além, ou seja, representa, primordialmente, o acesso a uma ordem jurídica justa.
2.3. O ACESSO ÀS PRETENSÕES DE JUSTIÇA E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A garantia constitucional do acesso à jurisdição, também considerada pela doutrina como o princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional, é a nomenclatura utilizada pelo ordenamento jurídico brasileiro e pelos operadores do direito para se referirem à consagrada e difundida expressão acesso à justiça.
Atualmente positivada no art. 5º, XXXV, da Constituição da República, ao dispor que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, certo é que tal garantia encontra, até os dias atuais, inúmeros obstáculos à sua efetivação.
No Brasil, de fato, a insuficiência dos recursos de acesso à justiça é um problema histórico, resultado de um país dotado de uma cultura política autocrática, centralizadora e elitista, com uma escassa participação popular na formação de sua história[25]. Apenas a partir da segunda metade do século XX, com o retrocesso social causado pelo poder militar instaurado em 1964, é que o povo brasileiro passou a criar uma maior consciência de que somente a ele cabia a autoria de sua própria libertação[26].
Assim é que, antes de se passar à análise dos complicadores à efetivação do acesso à justiça no Brasil, faz-se necessário um breve retrospecto histórico acerca do longo caminho percorrido por este instituto até a sua positivação em sede constitucional. Após, melhor será a compreensão das razões pelas quais o país ainda se depara com as inúmeras dificuldades à efetivação, em favor dos cidadãos, do acesso à justiça.
Relembrando, inicialmente, o quanto exposto no início do presente trabalho, não restam dúvidas acerca do fato de que, assim como o Estado, o direito processual e a jurisdição surgem em resposta à necessidade imposta pela sociedade de se estabelecerem normas e princípios destinados à orientar o operador do direito quando da resolução dos mais váriados conflitos intersubjetivos de interesses existentes.
Com efeito, posiciona-se Fernando Pagani Mattos, no sentido de que a jurisdição possui a função de "[...] assegurar a aplicação hegemônica do direito na sociedade, promover a pacificação social e a educação, garantir o livre exercício de direitos e afirmar o poder do Estado e dos institutos democráticos que o caracterizam"[27]. Para tanto, contudo, "[...] faz-se necessária a criação – ou correta utilização – de mecanismos eficazes de acesso ao poder judiciário (direitos de ações especificamente voltadas à concretização de fins) para que este, por meio do processo, proceda à resolução dos conflitos que não puderam ser solvidos na esfera privada"[28].
Nesse aspecto, cumpre observar a inegável importância que reside na relação entre o acesso às pretensões de justiça e o ordenamento jurídico pátrio. Inicialmente, mostra-se relevante analisar a origem da justiça no Brasil, a fim de que seja possível compreender adequadamente as razões pelas quais grande parte da população não possui acesso a uma ordem jurídica justa.
Sabe-se que o Poder Judiciário, tal como hoje se apresenta, é resultado dos movimentos liberais burgueses do século XVIII, que pregavam por uma atuação abstencionista do Estado, ao qual caberia, apenas, a preservação dos direitos individuais, não permitindo a sua infringência por outrem. Ocorre que a atuação estatal passiva passou a gerar descontentamento por parte da população, que via a concessão formal de seus direitos, porém não a sua efetivação.
Surge, dessa forma, a necessidade de se resgatar a função social do Estado, mormente no que se refere à ordem jurídica, a qual passa a assumir a função e a responsabilidade de atuar protetiva e ativamente, em prol da igualdade material, por meio do Poder Judiciário[29].
Divergente não foi a preocupação do ordenamento jurídico brasileiro com tal questão, ainda que de forma tímida e pouco legitimada pelos governantes. Reconhecendo a devida importância do Poder Judiciário no que toca à constante busca pela pacificação social, face à ineficiência de resolução dos conflitos no âmbito privado, as primeiras ideias referentes ao acesso à justiça foram amadurecendo.
Da mesma forma, foi-se consolidando, cada vez mais, a evidente necessidade de criação de instrumentos que fossem aptos a garantir o acesso, pelos cidadãos, aos órgãos do Poder Judiciário. O acesso à justiça, assim, seria o primeiro grande passo à consolidação dos demais direitos fundamentais do ser humano, transferindo ao Poder Judiciário a responsabilidade pela consecução de tal objetivo.
Com efeito, cumpre destacar que as Constituições Brasileiras de 1934, 1946, 1967 e 1969 já previam o acesso à justiça como garante de todos os outros direitos fundamentais dos cidadãos, revelando, assim, que o prestígio ao princípio da inafastabilidade da jurisdição sempre fez parte, de certa forma, da tradição constitucional brasileira[30].
Cumpre salientar, entretanto, que, muito antes, a preocupação com o acesso à justiça já se encontrava presente, mormente no que se refere à proteção dos direitos dos cidadãos menos favorecidos economicamente. Em verdade, tal questão começou a ganhar maior espaço de discussão quando, ainda na época do Império, o ex-Ministro da Justiça, o estadista Nabuco de Araújo (pai de Joaquim Nabuco), tomou a iniciativa de criar uma espécie de “conselho” do Instituto dos Advogados no Rio de Janeiro, em 1870, com o fim de proporcionar a assistência judiciária gratuita aos mais carentes nas causas cíveis e criminais[31].
Na sequência, é possível afirmar, por outro lado, que a verdadeira e maior preocupação do ordenamento jurídico brasileiro com o acesso à justiça iniciou-se após o movimento abolicionista que culminou na Proclamação da República, em 1989. Mesmo que ainda em nível infraconstitucional, foram editadas as primeiras normas destinadas a instituir oficialmente a assistência judiciária gratuita no Brasil, quais sejam, o Decreto nº. 1.030, de 14 de novembro de 1890, e o Decreto nº. 2.457, de 8 de fevereiro de 1897.
O primeiro Decreto, acrescente-se, foi o responsável pela formalização da assistência judiciária gratuita, enquanto o segundo, publicado apenas sete anos depois, implementou, de fato, a referida assistência no Distrito Federal, na medida em que buscou estabelecer parâmetros, por exemplo, para o conceito de “pobre” como destinatário do novo serviço público[32].
Apenas a título ilustrativo, vale trazer alguns dispositivos do Decreto nº. 1.030, de 14 de novembro de 1890:
Art. 175 - Os curadores geraes se encarregarão da defesa dos presos pobres, à requisição do presidente do Jury ou da camara criminal.
Art. 176 - O Ministro da Justiça é autorizado a organizar uma commissão de patrocínio gratuito dos pobres no crime e cível, ouvindo o Instituto da Ordem dos Advogados, e dando os regimentos necessários[33].
E também do Decreto nº. 2.457, de 8 de fevereiro de 1897, cujas premissas, ressalte-se, foram seguidas pelas demais unidades da Federação por mais de vinte anos:
Art. 1º. - É instituída no Districto Federal a Assistencia Judiciária, para o patrocínio gratuito dos pobres que forem litigantes no cível ou no crime, como autores ou réos, ou em qualquer outra qualidade.
Art. 2º. - Considera-se pobre, para os fins desta instituição, toda pessoa que, tendo direitos a fazer valer em Juízo, estiver impossibilitada de pagar ou adeantar as custas e despezas do processo sem privar-se de recursos pecuniários indispensáveis para as necessidades ordinárias da própria manutenção ou da família.
Art. 4º A Assistencia Judiciaria aos pobres consistirá na prestação de todos os serviços necessarios para a defesa de seus direitos em Juizo, independentemente de sellos, taxa judiciaria, custas e despezas de qualquer natureza, inclusive a caução judicatum solvi[34].
Não obstante as diversas previsões infraconstitucionais nesse sentido, a problemática da assistência judiciária gratuita e, consequentemente, do acesso à justiça, somente ganhou a atenção do legislador constituinte em 1934, que, positivando o instituto em sede constitucional, transferiu à União e aos Estados a responsabilidade pela concessão da assistência judiciária gratuita aos necessitados[35].
Ocorre que, assim como na primeira Constituição da República de 1891, o dispositivo acerca da assistência judiciária foi suprimido também na Constituição de 1937, somente retornando a sua previsão com a Carta de 1946. A preocupação com o acesso à justiça, assim, até então limitada ao mero acesso aos órgãos do Poder Judiciário, passou a ganhar novos contornos, de modo a adequá-los às necessidades emergentes da sociedade, que não mais se contentava apenas com a facilidade de ingresso em juízo, oportunizado com a assistência gratuita. O anseio social era muito maior, qual seja, o de que, por meio do Poder Judiciário, fossem alcançadas as verdadeiras pretensões de justiça.
Assim é que a Carta Magna de 1988 estabeleceu em seu texto diversas normas e valiosos princípios, de modo a caracterizar, enfim, o acesso à justiça como um preceito ou ordem maior, que, na acepção de Paulo Bonavides[36], constitui “[...] a pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada”.
Nesse sentido, podemos citar como exemplos das normas e princípios acima mencionados aqueles constantes do art. 5º, LV[37] (princípios do contraditório e da ampla defesa), XXXV[38] (princípio da inafastabilidade da jurisdição), LXXIV[39] (assistência jurídica gratuita) e LXXVIII[40] (princípios da razoável duração do processo e da celeridade processual).
Não obstante o seu caráter constitucional, alçado também à categoria dos direitos fundamentais, certo é que, por razões alheias à teoria jurídica, o instituto do acesso à justiça não se concretiza de maneira integral, uma vez que existem inúmeros limitadores, a serem abordados no próximo tópico, que impedem a efetivação desse mandamus constitucional[41].
Destarte, passaremos a uma abordagem crítica dos referidos entraves à concretização do acesso à justiça para que, na sequência, sejam apontadas algumas possíveis soluções.
2.3.1 Complicadores à Efetivação do Acesso à Justiça
Inicialmente, cumpre advertir que, no presente tópico, não se objetiva o esgotamento exaustivo dos obstáculos, mas sim uma abordagem crítica e analítica dos principais e mais destacados entraves à efetivação do acesso à justiça no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, parte-se da premissa inicial estabelecida por Cappelletti, ao afirmar que “um estudo sério do acesso à Justiça não pode negligenciar o inter-relacionamento entre as barreiras existentes”[42].
Assim, os complicadores a serem aqui analisados serão tratados separadamente, apenas por razões didáticas e para facilitar a compreensão por parte do leitor. Contudo, não se pode jamais esquecer que as barreiras encontradas à efetivação do acesso à justiça são inter-relacionadas, ou seja, o estudo de uma perpassa pelo conhecimento de outra, bem como as técnicas possivelmente utilizadas para superá-las.
2.3.1.1 Custas Judicias e Honorários Advocatícios
A distribuição da justiça constitui uma das atividades essenciais do Estado e, como tal, não deveria trazer ônus àqueles que dela necessitam. Contudo, em razão de tradições históricas e também por opção política do legislador pátrio, a prestação da atividade jurisdicional, a cargo do Poder Judiciário, é serviço público remunerado. Assim, devem as partes, em regra, arcar com os ônus financeiros respectivos, suportando as custas e as despesas realizadas ao longo do processo.
Cumpre diferenciar, inicialmente, custas judiciais e despesas processuais. Aquelas consistem em verbas pagas aos serventuários da Justiça e aos Cofres Públicos, em razão da prática de determinado ato processual, conforme a tabela da lei ou do regimento respectivo. As despesas processuais, por sua vez, abrangem todos os demais gastos dispendidos pelas partes quando da prática de atos ao longo de todo o processo, nelas incluídos os honorários periciais[43]. Os honorários advocatícios, vale dizer, estão à parte, ou melhor, não se enquadram nem como custas judiciais nem como despesas processuais.
De todo modo, como já destacado, subsiste o dever de pagamento das custas judiciais tão somente em virtude da movimentação do aparelho jurisdicional.
O Código de Processo Civil estabelece a regra da obrigatoriedade de antecipação das despesas dos atos que vierem a ser realizados ou requeridos durante a tramitação do processo judicial[44]. Assim, por exemplo, postulando a parte autora a concessão do benefício previdenciário de aposentadoria por invalidez, em face do Instituto Nacional do Seguro Social, imprescindível se faz a realização de exame pericial para a constatação da existência de incapacidade laboral temporária e permanente, para fins de concessão do referido benefício. Ocorre que, antes da realização do exame, faz-se necessário o depósito antecipado dos honorários periciais pelo próprio autor, salvo se a este for concedido os benefícios da justiça gratuita.
Determina o mesmo diploma legal que não só devem ser antecipadas as despesas referentes aos atos que vierem a ser realizados ou requeridos durante todo o desenvolvimento do feito, como também cada parte deve responder pelas despesas dos atos que perseguir, arcando o autor, ainda, com o dever de suportar os gastos efetuados em situações determinadas de ofício, pelo juiz ou a requerimento do Ministério Público[45]. Bem assim, tais despesas devem ser pagas, ao final, pelo vencido, segundo o princípio da sucumbência[46].
Imperioso ressaltar que, apenas os necessitados, declarados pela lei como tal[47], são isentos do dever legal de suportar os encargos financeiro de um processo judicial, quais sejam, as custas judiciais, as despesas processuais e os honorários advocatícios.
Ocorre que, por vezes, nem mesmo aqueles que não se enquadram no conceito legal de hipossuficiente possuem condições reais de arcar com os altos custos de um processo. Isso porque a resolução formal de litígios, mormente na instância superior, é muito dispendiosa na maioria das sociedades contemporâneas[48]. Não é preciso pesquisar a fundo para obter a constatação de que grande parte da população brasileira é fortemente caracterizada pela carência de recursos financeiros.
Como se não bastasse, não é incomum a ocorrência de situações em que os próprios custos do processo são tão elevados a ponto de desmotivar o litigante a ajuizar a demanda ou, até mesmo, dar prosseguimento ao feito, se abstendo, por exemplo, de interpor recurso contra decisão que lhe foi desfavorável.
Tal desmotivação se dá em virtude da adoção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, do chamado princípio da sucumbência, que estabelece o dever de pagamento, pela parte vencida (autor ou réu) das custas processuais e honorários advocatícios em favor da parte vencedora.
Nesse sentido também entende Pagani Mattos, para quem as custas processuais, os honorários advocatícios, os honorários periciais e ônus da sucumbência “são custos que, não raro, desmotivam a propositura de ações judiciais e, por vezes, até mesmo a apresentação defesas”[49].
Além disso, pesa-se também o fato de que, muitas vezes, a relação entre o valor da causa e o custo da sua litigação é inversamente proporcional, ou seja, quanto menor a primeira, maior esta última. Nas demandas de menor valor, pois, a parte se depara com uma justiça proporcionalmente mais cara, o que configuraria, na visão de Souza Santos, “um fenômeno da dupla vitimização das classes populares face à administração da justiça”[50].
Demandas judiciais que envolvem custos relativamente baixos são as mais prejudicadas, uma vez que tais encargos podem, até mesmo, exceder o montante da causa, a ponto de tornar a demanda uma futilidade[51].
Destarte, é correto afirmar que a elevada onerosidade de um processo judicial, na medida em que uma ou ambas as partes devam suportá-la, configura uma importante e evidente barreira ao acesso à justiça, uma vez que todas as despesas que envolvem um litígio, aliado ao desgaste emocional das partes, contribuem para o verdadeiro afastamento do cidadão do Judiciário.
2.3.1.2 Morosidade Processual
A demora na prestação jurisdicional também constitui outra barreira ao acesso à justiça. De fato, o fator tempo, inerente a todo e qualquer processo judicial, é um dos, senão o principal motivo de crise da justiça. Em que pese o conhecido ditado popular “a justiça tarda, mas não falha”, certo é que uma justiça tardia nada mais corresponde do que a sua verdadeira denegação[52].
Cumpre destacar, inicialmente, a intrínseca relação existente entre o envolvimento emocional dos litigantes, em especial daquele que postula em juízo, e a morosidade processual. Com efeito, quanto maior o tempo de duração do processo, também o é o desgaste psicológico da parte e o seu descontentamento com o aparelho jurisdicional oferecido pelo Estado.
O direito constitucional e fundamental à razoável duração do processo encontra-se demasiado mitigado, em evidente prejuízo aos cidadãos que dependem única e exclusivamente do Poder Judiciário para a resolução da lide em que se envolveram.
Por vezes, inclusive, a própria parte verdadeiramente detentora do direito que postula, mormente se tal direito refletir em futura prestação pecuniária, acaba por ceder em face da lenta máquina jurisdicional, de modo que a tão esperada e fomentada “conciliação” nada mais representa do que o “preço” que a parte paga ao Estado para ver resolvida a sua lide em tempo razoável.
Ressalte-se que nem mesmo é necessária a prática da conciliação para que a parte se renda ao vagaroso trâmite processual. O próprio ordenamento jurídico prevê mecanismos, ainda que não criados com esse fim, que oportunizam à parte optar pela definitiva resolução do seu conflito de interesses de modo mais célere.
Podemos citar como um corriqueiro exemplo o que ocorre no âmbito dos Juizados Especiais Federais, os quais são os responsáveis pela tramitação e julgamento da grande maioria das demandas previdenciárias, especialmente aquelas atinentes à concessão ou restabelecimento de benefícios, com o respectivo pagamento dos valores retroativos. Após a realização dos cálculos, pode constatar o magistrado que, em caso de procedência do pedido, o montante a ser pago a título de atrasados supera o teto dos Juizados Federais, qual seja, o de sessenta salários mínimos[53]. Dadas as normas legais de competência, as quais no âmbito de tais juizados é de caráter absoluto[54], deve o pagamento dos retroativos ser realizado conforme as regras de precatório, e não por meio de Requisição de Pequeno Valor, esta cumprida, vale dizer, incomparavelmente mais rápido.
Verificada tal circunstância, o julgador não adota a providência que melhor entende adequada, segundo o seu próprio convencimento. Em verdade, ele intima a parte autora para que, no prazo estabelecido, faça a opção entre o pagamento por meio do regime de precatórios ou pela Requisição de Pequeno Valor. Sucede que não é incomum que processos judiciais, mesmo tramitando junto aos Juizados Federais, sejam tão lentos, que demorem anos até que suas sentenças sejam, finalmente, executadas. Daí reside, como já exposto, o “preço” que, muitas vezes, a parte se vê “obrigada” a pagar ao Estado: renuncia grande parte do seu direito para que possa receber os valores retroativos (limitados ao teto de sessenta salários mínimos) em tempo menor.
Caso a máquina jurisdicional se caracterizasse por uma maior rapidez e eficácia, certamente, não teríamos que depositar no litigante parte da responsabilidade quando surge a possibilidade de resolver uma lide de forma definitiva. Esse papel é do Estado, e só dele. Ao ordenamento jurídico pátrio cabe a criação e o aperfeiçoamento das técnicas processuais, de modo que a solução da demanda levada ao conhecimento do Poder Judiciário seja obtida em tempo razoável, que permite ao pleiteante usufruí-la da maneira mais completa e oportuna[55].
A legislação processual vigente, entretanto, possui graves defeitos, constituindo, por vezes, um verdadeiro entrave ao acesso às pretensões de justiça. Com efeito, a nossa ordem jurídica ainda não valoriza como deveria os direitos fundamentais do cidadão. Bem assim, o despreparo de alguns operadores do direito, hoje produtos de uma indústria “concurseira” sem limites, reproduz uma máquina jurisdicional lenta e burocratizada. Tais fatores resultam na triste realidade: a busca pela solução das lides torna-se cada vez mais cara e pouco vantajosa[56].
Ora, assim é que tamanha morosidade processual contribui para o crescente descrédito da população em relação ao Poder Judiciário, tornando-se mais uma razão para justificar a desmotivação do cidadão em ajuizar demandas ou, pelo menos, a elas dar prosseguimento. O “impulso oficial” determinado pelo art. 262 do Código de Processo Civil encontra-se tão mitigado quanto o princípio da razoável do processo, influenciando econômica e psicologicamente a lide e os seus envolvidos.
Destarte, resta patente a necessidade que a ordem jurídica cumpra o seu papel perante a sociedade, de modo a assegurar o verdadeiro acesso às pretensões de justiça, atualmente obstaculizado pela lenta e burocrática máquina jurisdicional existente. Ainda, não deve o próprio litigante ser responsabilizado, de qualquer forma, pelas graves deficiências do Poder Judiciário. Compete ao Estado, portanto, a busca pela resolução das lides com equidade, celeridade e, principalmente, justiça.
2.3.1.3 Desigualdade das Partes: Hipossuficiência Econômica e Técnico-Jurídica
A hipossuficiência, seja de caráter econômico ou técnico-jurídica, pode ser considerada como uma das principais características inerentes à grande parte da população brasileira. Ambas as vertentes de hipossuficiência acima mencionadas, ressalte-se, estão intimamente ligadas, uma vez que uma tem o condão de justificar a existência da outra e vice-versa.
Inicialmente, em breves linhas, cumpre observar que uma pessoa economicamente hipossuficiente é aquela desprovida de recursos financeiros suficientes para a prática de determinados atos da vida civil, a exemplo da contratação de um advogado para o patrocínio de um processo judicial.
A hipossuficiência técnico-jurídica, por sua vez, constitui, de fato, um dos efeitos da referida deficiência educacional pátria, na medida em que, segundo Pagani Mattos, diz respeito ao “desconhecimento por parte do cidadão dos seus direitos básicos e, principalmente, dos instrumentos processuais que os possam garantir”[57].
Tais espécies, em conjunto, nada mais são do que o reflexo de um país em que a educação nunca foi prioridade, do que resultou em uma das mais altas taxas de analfabetismo do mundo e um ensino de péssima qualidade.
Com efeito, a hipossuficiência técnico-jurídica possui relação direta com a capacidade individual da parte de prover informações de cunho relevante ao seu processo, gerando, assim, incerteza quando ao futuro reconhecimento do direito pleiteado[58].
Certo é que ambas as vertentes de hipossuficiência aqui expostos, no âmbito do processo civil, estão intrinsecamente conectados, na medida em que, nas palavras de Souza Santos, “[...] os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afecta como sendo um problema jurídico”[59].
Não obstante algumas poucas tentativas governamentais no sentido de elevar o nível educacional dos cidadãos, o mesmo ainda se mostra insuficiente, o que representa um grave complicador ao acesso à justiça no Brasil, uma vez que subsiste a falta de conhecimento e iniciativa da população em ingressar nos meios formais e oficiais de resolução de conflitos[60].
Em contrapartida, o que se percebe na atual sistemática processual brasileira é a existência de algumas espécies de litigantes que gozam de inúmeras vantagens estratégicas[61], uma vez detentoras de recursos financeiros e de conhecimento técnico-jurídico suficientes a suportar a demora processual.
Certo é que a presença, no pólo contrário da relação jurídica processual, de uma parte com maior poder econômico contribui para consolidar a existência da chamada hipossuficiência técnico-jurídica, a qual, por sua vez, é capaz de, até mesmo, inibir o “mais fraco” no que toca ao próprio ajuizamento da demanda.
Destarte, tal circunstância, evidentemente, constitui forte barreira ao acesso às pretensões de justiça tão almejado pela sociedade. Se a realidade dos fatos sociais não pode ser modificada, deve o ordenamento jurídico cumprir o seu papel de, no caso concreto, promover a devida equidade entre as partes dentro da relação jurídica processual.
3. CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, nota-se que existem verdadeiros e graves entraves à efetivação do acesso à justiça no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que os operadores do direito devem sempre atuar de forma a retirar os obstáculos que impedem a efetiva e justa aplicação do direito ao caso concreto.
Isso porque, assim, como existem inúmeros entraves à efetivação do acesso à justiça, os principais deles abordados no tópico anterior, existem também algumas possíveis soluções apontadas por doutrinadores e pesquisadores do direito, a fim de que tais barreiras sejam superadas ou, ao menos, minimizadas, facilitando aos cidadãos o alcance das chamadas pretensões de justiça. São exemplos a assistência judiciária gratuita, a Defensoria Pública e o ius postulandi.
Com efeito, o despertar do interesse em torno do efetivo acesso à justiça levou Cappelletti a sequenciar três movimentos reformistas destinados, justamente, a solucionar os principais problemas envolvendo tal questão. Esses movimentos, também chamados de “ondas renovatórias”, já foram sinteticamente abordados quando procedemos a uma análise da evolução histórica do acesso à justiça ao longo do tempo.
Pode-se concluir, assim, que os complicadores acima mencionados devem ser estudadas em seu conjunto, e também face às possíveis soluções, uma vez que a concretização destas pode - e, efetivamente, irá - contribuir para a superação daqueles.
4. REFERÊNCIAS
ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos!. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do direito. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2009.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direto processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2007. v. 1.
______. Teoria do processo e teoria do direito: o neoprocessualismo. Disponível em: <http://ufba.academia.edu/FredieDidier/Papers/159075/Teoria_do_Processo_e_Teoria_dos_Direitos. Acesso em: 22 out. 2011.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MATTOS, Fernando Pagani. Acesso à justiça: um princípio em busca de efetivação. Curitiba: Juruá, 2009.
MELO, Larissa Weyne Torres de. A Defensoria Pública como meio de acesso do cidadão à justiça. 2007. 75 f. Monografia (Graduação em Direito). Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2007.
ROCHA, Alexandre Lobão. A garantia fundamental do acesso necessitado à justiça. Disponível em: <http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_alexandre.pdf>. Acesso em: 29 set. 2011.
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SOUZA, Rogério de Oliveira. Da hipossuficiência. Disponível em <http://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=f397314c-6e89-4e94-b2e9-d05e06d3b6ca&groupId=10136>. Acesso em 07 de outubro de 2011.
SOUZA, Silvana Cristina Bonifácio. Assistência jurídica. São Paulo: Método, 2003.
[1] Cf. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio apud BEZERRA, Paulo Cesar Santos. Acesso à justiça: um problema ético-social no plano da realização do direito. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 42.
[2] Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 93.
[3] Cf. BEZERRA, 2008, p. 129.
[4] Cf. LIMA FILHO, Francisco das C. Os movimentos de acesso à justiça nos diferentes períodos históricos. Revista Jurídica UNIGRAN, Dourados, v. 2, n. 4, p. 33, jul/dez. 2000, p. 33.
[5] Ibid., p. 34.
[6] Cf. MELO, Larissa Weyne Torres de. A Defensoria Pública como meio de acesso do cidadão à justiça. 2007. 75 f. Monografia (Graduação em Direito). Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, 2007.
[7] Cf. PEÑA DE MORAES, Humberto apud LIMA FILHO, 2000, p. 37.
[8] Cf. ROCHA, Alexandre Lobão. A garantia fundamental do acesso necessitado à justiça. Disponível em: <http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_alexandre.pdf>. Acesso em: 29 set. 2011.
[9] Cf. LIMA FILHO, op. cit., p. 38.
[10] Cf. Ibid., p. 41.
[11] Cf. BEZERRA, 2008, p. 113.
[12] Cf. CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 9.
[13] Cf. Ibid., p. 32.
[14] Cf. CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 49-58.
[15] Cf. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 804.
[16] CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 93-94.
[17] Cf. ROCHA, Cesar Asfor. A luta pela efetividade da jurisdição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 200, p. 71.
[18] Cf. BEZERRA, 2008, p. 127.
[19] Art. 5º, “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
[20] Cf. SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 753.
[21] Adota-se aqui a distinção feita por Pontes de Miranda entre assistência jurídica e assistência judiciária. Segundo o autor, esta última envolveria os recursos e os instrumentos necessários para o acesso aos órgãos jurisdicionais, seja mediante o benefício da justiça gratuita, seja pelo patrocínio de advogado (com a dispensa do pagamento de honorários advocatícios). A assistência jurídica, por sua vez, seria bem mais ampla, abrangendo a orientação e consultoria jurídica, bem como a conscientização dos direitos do cidadão. Cf. MIRANDA, Pontes de. apud ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos!. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 37.
[22] WATANABE, Kazuo. Política pública do Poder Judiciário nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/movimento-pela-conciliacao/arquivos/cnj_portal_artigo_%20prof_%20kazuo_politicas_%20publicas.pdf> . Acesso em: 04 out. 2011.
[23] Cf. Id. A assistência judiciária como instrumento de acesso à ordem jurídica justa. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 22, jan./dez. 1984, p. 88.
[24] Cf. MATTOS, Fernando Pagani. Acesso à Justiça: um princípio em busca de efetivação. Curitiba: Juruá, 2009. p. 60.
[25] Cf. BEZERRA, 2008, p. 108.
[26] Cf. PASSOS, J.J. Calmon de apud BEZERRA, op. cit., p. 109.
[27] MATTOS, 2009, p. 62.
[28] MATTOS, 2009, p. 63.
[29] Cf. Ibid., p. 65.
[30] Cf. MATTOS, 2009, p. 69.
[31] Cf. MOREIRA, José Carlos Barbosa apud ROCHA, 2011.
[32] Cf. ROCHA, op. cit.
[33] BRASIL. Decreto nº 1.030, de 14 de novembro de 1890. Organiza a Justiça no Districto Federal. Coleção de Leis do Brasil – 1890, p. 3653, v. fasc. XI. Disponível em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1030-14-novembro-1890-505536-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 05 out. 2011.
[34] BRASIL. Decreto nº 2.457, de 8 de fevereiro de 1897. Organisa a Assistencia Judiciaria no Districto Federal. Senado Federal: Subsecretaria de Informações. Disponível em <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=69524>. Acesso em: 05 out. 2011.
[35] Art. 113, nº 32. “A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito órgãos especiais e assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.”
[36] BONAVIDES, Paulo apud MATTOS, 2009, p. 70.
[37] Art. 5º, “LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”
[38] Art. 5º, “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”
[39] Art. 5º, “LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;”
[40] Art. 5º, “LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
[41] Cf. MATTOS, 2009, p. 74.
[42] CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 29.
[43] Cf. SANTA CATARINA. Poder Judiciário de Santa Catarina. Custas, emolumentos. Disponível em <http://www.tjsc.jus.br/jur/custas/custasjudiciais.htm>. Acesso em 10 de outubro de 2011.
[44] “Art. 19. Salvo as disposições concernentes à justiça gratuita, cabe às partes prover as despesas dos atos que realizam ou requerem no processo, antecipando-lhes o pagamento desde o início até sentença final; e bem ainda, na execução, até a plena satisfação do direito declarado pela sentença.”
[45] Art. 19, “§ 2o Compete ao autor adiantar as despesas relativas a atos, cuja realização o juiz determinar de ofício ou a requerimento do Ministério Público.”
[46] “Art. 20. A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Esta verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria.”
[47] O diploma legal a que se refere é a Lei nº. 1.060/50, que estabelece as normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados, objeto de estudo nos tópicos seguintes.
[48] Cf. CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 15.
[49] SANTOS, Boaventura Souza, apud MATTOS, 2009, p. 77.
[50] MATTOS, op. cit., p. 78.
[51] Cf. CAPPELLETTI; GARTH, op. cit., p. 19.
[52] Cf. TUCCI, José Rogério Cruz. Questões práticas de processo civil. São Paulo: Atlas, 1998, p. 134.
[53] Lei nº. 10.259/01, art. 3º - “Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças”.
[54] Lei 10.259/01. § 3o – “No foro onde estiver instalada Vara do Juizado Especial, a sua competência é absoluta”.
[55] Cf. ROCHA, 2007, p. 72.
[56] Cf. MATTOS, 2009, p. 79.
[57] MATTOS, 2009, p. 80.
[58] Cf. SOUZA, Rogério de Oliveira. Da hipossuficiência. Disponível em <http://portaltj.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=f397314c-6e89-4e94-b2e9-d05e06d3b6ca&groupId=10136>. Acesso em 07 de outubro de 2011.
[59] SANTOS, Boaventura Souza, apud MATTOS, op. cit., p. 81.
[60] Cf. SADEK, Tereza apud MATTOS, op. cit., p. 81.
[61] Cf. GALANTER apud CAPPELLETTI; GARTH, 1998, p. 21.
Advogada, Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Pós Graduanda em Direito Previdenciário pela UNIDERP - Universidade Anhanguera.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARAIVA, Izabela Novaes. O acesso às pretensões de justiça e os seus complicadores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 maio 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39390/o-acesso-as-pretensoes-de-justica-e-os-seus-complicadores. Acesso em: 22 nov 2024.
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