INTRODUÇÃO
A adoção de crianças e adolescentes indígenas, por suas próprias especificidades, demanda atuação cautelosa por parte do Estado – Poderes Executivo e Judiciário.
Na defesa dos interesses do adotando, devem ser observadas as peculiaridades atinentes à organização social, aos costumes, à cultura, as crenças, tradições e modo de vida dos índios, nos termos do artigo 231 da Constituição Federal.
PECULIARIDADES NA ADOÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES INDÍGENAS.
As noções de família e parentesco são essenciais para compreender a lógica da organização social dos povos indígenas e, consequentemente, as práticas relacionadas à formação e aos cuidados com suas crianças e adolescentes. Em muitos casos, as crianças e adolescentes indígenas recebem cuidados de todos os seus familiares, sejam eles consanguíneos ou afins, e a convivência familiar e comunitária é plenamente exercida com notáveis autonomia e independência.
Neste sentido, nos termos do inciso I do parágrafo 6º do artigo 28 da Lei 8.069/90, introduzido pela Lei 12.010/2009, merecem respeito as práticas indígenas que atribuem não apenas aos pais, mas à coletividade, os compromissos e responsabilidades atinentes à educação, formação e proteção de crianças e adolescentes. Tais práticas não podem, por si sós, ensejar a perda ou a suspensão do pátrio poder, porquanto as questões a ele concernentes devem ser compreendidas em consonância com a realidade dos povos indígenas.
Tatiana Azambuja Ujacow Martins fala dos costumes indígenas atinentes ao tema (in Direito ao Pão Novo: o princípio da dignidade humana e a efetivação do direito indígena. 1. ed. São Paulo: Pillares, 2005. 171 p.):
“É costume, entre os índios, a adoção de crianças por parentes, quando estas ficam órfãs, ou quando a família não tem condições de criá-las. Na maioria das famílias visitadas, encontra-se um sobrinho, ou outro parente, morando junto, que é criado e educado como se fosse filho.
Conforme o Capitão L. esclarece, no caso de crianças órfãs, quando os pais não têm condições de sustentar a criança, ou quando algumas famílias moram mais perto das escolas, é comum um “parente” entregar a criança para morar com o outro, que passa a criá-lo como filho. […]
Observa-se que, para os índios, a adoção é algo que faz parte do seu modo de ser.”
Por outro lado, nas hipóteses de ameaça à vida ou à integridade física da criança ou adolescente indígena, o Estado – por meio da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) –, em diálogo com a respectiva comunidade, deverá promover o encaminhamento adequado à sua proteção integral, conforme exposto a seguir.
Será priorizada a permanência da criança/adolescente no seio de sua família. Neste caso, a proteção será garantida por meio de ações educativas e preventivas desenvolvidas junto à comunidade, e, em especial, junto à família da criança e adolescente. A medida está em consonância com o art. 129, IV, do Estatuto da Criança e Adolescente, o qual estabelece, como medida aplicável aos pais ou responsável, “encaminhamento a cursos ou programas de orientação”.
São diversas as situações envolvendo crianças e adolescentes indígenas em que a comunidade tem plena condição, a partir de deliberações internas, de apresentar soluções.
Apenas quando esgotadas todas as possibilidades de manutenção da criança ou do adolescente indígena no seio de sua família, será promovida, por meio de ação judicial, a colocação em família substituta, a qual deverá ser prioritariamente uma família pertencente à comunidade de origem da criança ou adolescente, ou, não sendo possível, uma família de outra comunidade indígena.
A orientação segue o espírito do inciso II do parágrafo 6º do artigo 28 da Lei 8.069/90, introduzido pela Lei 12.010/2009, verbis: “§ 6º. Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório: (...) II – que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia”.
A colocação em família substituta não-indígena deverá ocorrer apenas nas hipóteses em que não houver família indígena que acolha a criança ou adolescente, não sendo recomendada, em nenhuma hipótese, a colocação em família substituta estrangeira.
É que a adoção por família não-indígena pode acarretar grande ruptura cultural, prejudicial ao desenvolvimento psíquico-social da criança/adolescente indígena. Ademais, o vínculo e a identidade que os povos indígenas mantêm com o seu habitat natural (espaço e recursos naturais) são basilares para a formação e o bem-estar psíquico e físico de suas crianças/adolescentes, motivo pelo qual a colocação em família substituta não-indígena só deve ocorrer em situações excepcionais.
Sempre que a adoção por família não-indígena for, todavia, necessária, a FUNAI deverá, em juízo, instruir o adotante quanto ao significado e as consequências legais do ato, bem como acerca da cultura da comunidade da qual o adotado provém, de modo a minorar os efeitos nocivos à integridade físico-psíquica da criança/adolescente.
O inciso III do parágrafo 6º do artigo 28 da Lei 8.069/90, introduzido pela Lei 12.010/2009, prevê a indispensabilidade da oitiva, da atuação e do acompanhamento, pela FUNAI, do procedimento de adoção de crianças e adolescentes indígenas
Merecem cautela, por fim, as situações que envolvem práticas tradicionais que atentam contra direitos e garantias fundamentais das crianças e adolescentes indígenas.
Tais práticas deverão ser respeitadas, desde que decorrentes de deliberação conjunta da comunidade, e estejam em conformidade com os direitos indígenas estabelecidos na Constituição Federal e tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos de que a República Federativa do Brasil seja signatária.
Nas hipóteses em que as práticas contrariarem a Constituição Federal ou os tratados/convenções internacionais, a FUNAI deverá orientar e capacitar a comunidade indígena acerca de sua conduta, buscando uma solução satisfatória que garanta a proteção integral da criança/adolescente. Deste modo, a proteção das crianças e adolescentes será obtida mediante diálogo com a comunidade, por meios não-discriminatórios aos usos e costumes indígenas, conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Com efeito, o art. 6º, “a”, da Convenção 169/OIT determina que os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados, sempre que tenham em vista medidas legislativas ou administrativas capazes de afetá-los diretamente.
CONCLUSÃO
Não podem ser ignorados, portanto, na adoção de crianças e adolescentes indígenas, os conceitos diferenciados de família extensa ou ampliada; a necessidade de observância à identidade cultural e social, bem como aos costumes, tradições e instituições; a prioridade de colocação familiar do adotando no seio da própria comunidade ou de outra comunidade indígena; e, finalmente, a indispensável intervenção da FUNAI e de antropólogos.
A atuação diferenciada do Poder Público – Executivo e Judiciário – na adoção de crianças e adolescentes indígenas materializa a proteção constitucional à criança e ao adolescente, insculpida no artigo 227 da Constituição Federal, bem como o reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos índios, nos termos do caput do artigo 231 da Constituição Federal.
Ensina Sávio Bittencourt (in A Nova Lei de Adoção – Do Abandono à Garantia do Direito à Convivência Familiar e Comunitária. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 36 p.:
“O princípio da proteção integral sugere que a criança e o adolescente devem encontrar no poder público todo o apoio necessário para que seus interesses sejam atendidos, propiciando uma criação sadia e em condições de proporcionar a formação de seus caráter e personalidade. Destarte, se insere nesse contexto a inclusão do atendimento em todas as necessidades, como alimentação, educação, vida familiar e social, dentre outras. A própria família da criança deve ser amparada através de uma rede de atendimento que lhe dê condições de criá-la com carinho e cuidado.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTENCOURT, Sávio. A Nova Lei de Adoção – Do Abandono à Garantia do Direito à Convivência Familiar e Comunitária. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 36 p.
MARTINS, Tatiana Azambuja Ujacow. “Direito ao Pão Novo: o princípio da dignidade humana e a efetivação do direito indígena”. 1ª ed. São Paulo: Pillares, 2005. 171 p.
Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARENSI, Marcela de Andrade Soares. Adoção de crianças e adolescentes indígenas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jun 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39642/adocao-de-criancas-e-adolescentes-indigenas. Acesso em: 22 nov 2024.
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