Introdução
A preocupação do Direito com os bens jurídicos transindividuais, tal qual o meio ambiente, tem dedicado aos interesses daí decorrentes as mais profundas discussões já empreendidas no cenário brasileiro.
Por consectário, é salutar a tentativa de estabelecer parâmetros de legitimação para a tutela pretendida, compatibilizando-os com os instrumentos processuais disponíveis. A presente digressão portanto, pretende trazer a lume algumas considerações que podem ser bastante úteis a tal desiderato, especialmente no que tange à atuação do ente político federal em demandas ambientais que, a priori, não comportariam sua intervenção.
Desenvolvimento
Como regra, por força do que insculpido na própria Constituição Republicana, a competência da Justiça Federal encontra-se intimamente relacionada aos atores processuais, em qualquer dos polos. Não é necessário, neste momento, pormenorizar as discussões doutrinárias acerca de legitimidade e capacidade processuais. A ideia de titularidade do bem jurídico a ser tutelado, a legitimidade ad causam, é suficiente para ser o ponto de partida da presente reflexão.
Neste contexto, a Carta de 88 traz importantes disposições acerca das obrigações dos entes públicos em relação à matéria ambiental. O artigo 225, em seu caput, é inequívoco no que tange ao caráter compulsório da atuação do Poder Público e da coletividade:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Ao minudenciar, ainda que exemplificativamente, tais atribuições, o parágrafo seguinte identifica alguns instrumentos e medidas necessárias a tal mister sem, contudo, distribuí-los entre os entes. A análise conjunta de seus incisos permite concluir que, neste plano, tratam-se de competências eminentemente administrativas:
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(omissis)
A ilação anterior também se compatibiliza com o disposto no artigo 23 da Constituição:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
(…)
III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
(...)
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora;
Com o fito de delimitar adequadamente as responsabilidades de cada ente, a relativamente recente Lei Complementar nº 140 promoveu significativas modificações no regime anterior de competências, especialmente no que tange à fiscalização e ao licenciamento ambiental. Eis sua ementa:
Fixa normas, nos termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora; e altera a Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981.
Neste ponto, salta aos olhos que o texto faz menção às ações administrativas de forma expressa. Isso reforça a ideia de que a análise vertical das normas relativas ao dever de proteção ao ambiente, justamente por se tratar de competência administrativa, em nenhum momento tenciona limitar a legitimidade para sua tutela no âmbito judicial.
A problemática que daí exsurge é a potencial conclusão no sentido de que somente o ente político dotado da competência administrativa é que seria legitimado para pretender sua proteção em juízo.
De fato, não se trata de competência solidária (art. 23, VII, CRFB/88), uma vez que perfeitamente possível sua distribuição, por outros instrumentos legais, entre os entes da Federação. Contudo, não se pode admiti-la como sendo excludente. Muito menos confundi-la com as competências institucionais dos entes e do Ministério Público. O raciocínio não afasta sua legitimidade.
Contudo, ainda que se sustente que a competência supletiva mencionada na Lei Complementar nº 140 relaciona-se, de modo geral, ao seu desempenho não satisfatório pelo ente regional ou municipal, tal raciocínio não tem o condão afastar interesse do ente federal, ainda quando o dano, potencial ou concreto, seja circunscrito aos limites municipais ou mesmo estaduais.
Ainda que não haja bens da União envolvidos (aqueles contidos no rol do artigo 20 da CRFB/88), é de se reconhecer seu manifesto interesse em proteger a meio ambiente, em conformidade com a própria legislação infraconstitucional, que se alinha ao comando normativo da Carta:
LC 140/2011
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no exercício da competência comum a que se refere esta Lei Complementar:
I - proteger, defender e conservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, promovendo gestão descentralizada, democrática e eficiente;
(...)
III - harmonizar as políticas e ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre os entes federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições e garantir uma atuação administrativa eficiente;
Lei n° 8.078/90 (CDC)
Art. 81.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
(...)
Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:
I - o Ministério Público,
II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;
(...)
Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
É cediço, portanto, que a natureza difusa do bem jurídico tutelado constitui verdadeiro chamado a todos os entes federativos, independentemente das competências administrativas para regulação. Por óbvio, essa conclusão alinha-se ainda ao que já declinado sobre o artigo 225 e §1º, da CRFB/88. Se a competência para proteger é comum, a legitimidade deve ser a mais ampla possível!
Daí, na hipótese de eventualmente tratar-se de dano local, o indevido afastamento dos atores federais do polo ativo da demanda, quando postulantes, terminará por macular o artigo 225, §1º da CRFB.
Nesse diapasão, não há como segmentar, para fins de interesses protetivos, o todo harmônico em que se deve consubstanciar o ambiente equilibrado. A competência para licenciamento deve ter, portanto, efeitos limitados a sua finalidade administrativa, não havendo falar em exclusão, no plano processual, de qualquer colegitimado para eventual ação por danos. As noções são absolutamente distintas.
Com efeito, a violação a princípios protetivos ao meio ambiente, em prestígio a interesses puramente econômicos, tem o condão de afetar profundamente toda a estrutura material sobre a qual se assenta a sociedade moderna. A solidariedade intergeracional impõe ao Estado o dever de preservação do patrimônio ambiental para os descendentes de seu povo.
A jurisprudência correlata à matéria é bastante profusa em indicativos dessa legitimidade:
Segunda Turma |
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. LEGITIMIDADE PARA A PROPOSITURA DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DE ZONA DE AMORTECIMENTO DE PARQUE NACIONAL. |
O MPF possui legitimidade para propor, na Justiça Federal, ação civil pública que vise à proteção de zona de amortecimento de parque nacional, ainda que a referida área não seja de domínio da União. Com efeito, tratando-se de proteção ao meio ambiente, não há competência exclusiva de um ente da Federação para promover medidas protetivas. Impõe-se amplo aparato de fiscalização a ser exercido pelos quatro entes federados, independentemente do local onde a ameaça ou o dano estejam ocorrendo e da competência para o licenciamento. Deve-se considerar que o domínio da área em que o dano ou o risco de dano se manifesta é apenas um dos critérios definidores da legitimidade para agir do MPF. Ademais, convém ressaltar que o poder-dever de fiscalização dos outros entes deve ser exercido quando determinada atividade esteja, sem o devido acompanhamento do órgão local, causando danos ao meio ambiente. AgRg no REsp 1.373.302-CE, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 11/6/2013. (grifos do autor) |
STJ - Informativo nº 0427 |
Segunda Turma |
MEIO AMBIENTE. LEGITIMIDADE PASSIVA. ESTADO. |
A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de reconhecer a legitimidade passiva de pessoa jurídica de direito público (no caso, estado-membro) na ação que busca a responsabilidade pela degradação do meio ambiente, em razão da conduta omissiva quanto a seu dever de fiscalizá-lo. Essa orientação coaduna-se com o art. 23, VI, da CF/1988, que firma ser competência comum da União, estados, Distrito Federal e municípios a proteção do meio ambiente e o combate à poluição em qualquer de suas formas. Anote-se que o art. 225, caput, da CF/1988 prevê o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, além de impor ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações. AgRg no REsp 958.766-MS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 16/3/2010. (grifos do autor) |
Como reforço argumentativo final, vale cotejar a Lei de Ação Civil Pública, que dispõe no mesmo sentido:
Lei nº 7.347/58 (LACP)
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
l - ao meio-ambiente;
Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
(...)
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; (grifamos)
Conclusão
Diante do exposto, ante os princípios relacionados à proteção ambiental, assim como à natureza jurídica do bem a ser tutelado, o vetor que orienta as regras de competência e legitimidade dos entes federais nesse mister pode e deve merecer a mais ampliativa interpretação.
Advogado da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Lucio Alves Angelo. Breves considerações sobre a legitimidade da União em demandas ambientais locais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39813/breves-consideracoes-sobre-a-legitimidade-da-uniao-em-demandas-ambientais-locais. Acesso em: 22 nov 2024.
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