A tutela e a curatela são institutos destinados ao suprimento de incapacidade de fato e de direito daquelas pessoas que não as possui, substanciando-se em um conjunto de direitos e obrigações conferidos a um responsável escolhido pela lei.
No caso da tutela, trata-se de exercício de um munus público, como afirma Maria Helena Diniz: “O tutor exerce um munus público, imposto pelo Estado, para atender a um interesse público, possibilitando a efetivação do dever estatal de guardar e defender órfãos e menores cujos pais foram destituídos do poder familiar. Por isso, o tutor, ao assumir a tutela, deverá prestar compromisso de bem e fielmente desempenhar o cargo (Lei n. 8.069/90, arts. 32 e 190)”.[1]
Partindo desse raciocínio, é perfeitamente possível extrair como fundamento e justificativa da tutela alguns dispositivos constitucionais que, de um modo geral, protegem a família, a criança e o adolescente.
Em geral, ambos os institutos visam garantir o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Sobre o princípio em si, tem-se que a consagração da dignidade da pessoa humana veio com o chamado Estado de Direito constitucional, como primor máximo dos direitos fundamentais. No Brasil, a Constituição de 1988 a consagrou como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III).
Referência obrigatória no direito brasileiro quando se fala em dignidade da pessoa humana é Ingo Wolfgang Sarlet, que a considera uma “qualidade intrínseca e distintiva” reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade. Assim, a dignidade humana implica direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante ou desumano. [2]
Na Alemanha – seguindo o que diz Alexy – o Tribunal Constitucional Federal assentou a fórmula adequada de definir o princípio da dignidade da pessoa humana, considerando-a como “o âmbito essencial absolutamente protegido da configuração da vida privada”. [3]
Partindo dessas premissas, pode-se dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui parte daquele núcleo essencial dos direitos fundamentais.
Frisa-se: o princípio da dignidade da pessoa humana constitui parte do núcleo essencial dos direitos fundamentais, e não seu todo. Nesse ponto, mister são as palavras de Sarlet quando afirma que “a tese de acordo com a qual a dignidade da pessoa humana não se identifica (não se confunde), pelo menos não necessariamente, com o núcleo essencial dos direitos fundamentais tem prevalecido e é também por nós acolhida, seja pelo fato de estarmos convencidos de que nem todos os direitos fundamentais possuem um conteúdo de dignidade, mas todos possuem um núcleo essencial (já que é vedada sua abolição), seja pela circunstância de que – na esteira do que sustenta a doutrina majoritária – tal garantia restaria esvaziada em se aceitando uma identidade absoluta com o conteúdo em dignidade”. [4]
Para o presente trabalho, a faceta que interessa da dignidade humana é a obrigatoriedade de o Estado instituir políticas públicas ou fixar instrumentos que garantam tal premissa. Trata-se de dar concreção à tarefa apontada por Peter Häberle: “Uma correção das doutrinas concernentes à soberania absoluta do povo se encontra tanto no postulado da democracia fundada na divisão de poderes ou nos mandatos do Estado de direito, como também na referência à natureza pluralista da vontade popular. A tarefa segue sendo, não obstante, desligar a soberania popular de sua controvertida origem histórica e contemplá-la em concomitância com a dignidade humana”. [5] (grifamos)
Julgados como o abaixo transcrito honram a magistratura no Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. DIREITO À SAÚDE. MENOR POBRE. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE.
1. Constitui função institucional e nobre do Ministério Público buscar a entrega da prestação jurisdicional para obrigar o Estado a fornecer medicamento essencial à saúde de menor pobre, especialmente quando sofre de doença grave que se não for tratada poderá causar, prematuramente, a sua morte.
2. Legitimidade ativa do Ministério Público para propor ação civil pública em defesa de direito indisponível, como é o direito à saúde, em benefício de menor pobre. Precedentes: REsp 296905⁄PB e REsp 442693⁄RS.
3. O Estado, ao se negar a proteger o menor pobre nas circunstâncias dos autos, omitindo-se em garantir o direito fundamental à saúde, humilha a cidadania, descumpre o seu dever constitucional e ostenta prática violenta de atentado à dignidade humana e à vida. É totalitário e insensível.
4. Embargos de declaração conhecidos e providos para afastar a omissão e complementar, com maior precisão, a fundamentação que determinou o provimento do recurso para reconhecer a legitimidade do Ministério Público, determinando-se que a ação prossiga para, após instrução regular, ser o mérito julgado. [6]
Percebe-se que, se a tarefa geral da tutela é dar concreção à dignidade humana, a tarefa específica e otimizar o disposto pelo art. 227 da Constituição Federal, verbis:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Registre-se, por oportuno, que o caráter sistemático originário das normas constitucionais não afasta a convivência entre ambas as tarefas (geral e específica). Como afirma José Afonso da Silva, “esses direitos especificados no art. 227 da CF não significam que as demais previsões constitucionais de direitos fundamentais não lhes apliquem. Ao contrário, os direitos da pessoa humana referidos na Constituição são também inerentes”.[7]
O mencionado art. 227 da Constituição Federal é considerado típico direito fundamental social, afastando-se do campo meramente programático.
Com base nele, tem-se um vetor interpretativo de toda legislação infraconstitucional. A propósito, já declarou o Superior Tribunal de Justiça: “Na linha de precedentes desta Corte, a legislação que dispõe sobre a proteção à criança e ao adolescente proclama enfaticamente a especial atenção qye deve dar ao seus direitos e interesses e à hermenêutica valorativa e teleológica na sua exegese” (RSTJ 120/341).[8]
A título de exemplo, sobre tal dispositivo, veja o que declarou o Supremo Tribunal Federal:
As paixões condenáveis dos genitores, decorrentes do término litigioso da sociedade conjugal, não podem envolver os filhos menores, com prejuízo dos valores que lhes são assegurados constitucionalmente. Em idade viabilizadora de razoável compreensão dos conturbados caminhos da vida, assiste-lhes o direito de serem ouvidos e de terem as opiniões consideradas quanto à permanência nesta ou naquela localidade, neste ou naquele meio familiar, alfim e, por conseqüência, de permanecerem na companhia deste ou daquele ascendente, uma vez inexistam motivos morais que afastem a razoabilidade da definição. Configura constrangimento ilegal a determinação no sentido de, peremptoriamente, como se coisas fossem, voltarem a determinada localidade, objetivando a permanência sob a guarda de um dos pais. O direito a esta não se sobrepõe ao dever que o próprio titular tem de preservar a formação do menor, que a letra do artigo 227 da Constituição Federal tem como alvo prioritário.[9]
Nota-se que, com base no que foi dito pelo Supremo Tribunal Federal, já é possível justificar as causas consignadas pelo legislador que autorizam a tutela (CC, art. 1728), tema do próximo item.
Tudo o que foi dito até então serve de crítica ao propósito perseguido pelo Código Civil de 2002, como já tinha feito o Código Civil de 1916: buscar proteger o patrimônio do menor, não sua dignidade.
Tal objetivo foi relatado por Silvio de Salvo Venosa nos seguintes termos:
A tutela disciplinada pelo Código Civil de 1916 era instituto destinado fundamentalmente à proteção e administração dos bens do menor. Ao disciplinar a tutela, o legislador do Código Civil de 1916 e de 2002 teve em mira, primordialmente, o menor com patrimônio. A tutela também é referida no Estatuto da Criança e do Adolescente para os menores sob o seu enfoque, em situação irregular, embora pouca alteração tenha sido feita à estrutura do Código. Modernamente, a tutela deve ter uma compreensão mais ampla, fazendo com que o tutor assuma efetivamente as prerrogativas e deveres do poder familiar.[10]
Ou ainda, nas palavras de Silvio Rodrigues: “o legislador de 1916, ao cuidar da tutela, preocupou-se, principalmente, com o órfão rico, pois ao disciplinar o tema teve em vista, em primeiro lugar, a preservação dos bens; aliás, dos quarenta artigos consagrados ao assunto, apenas um se refere aos menores abandonados”.[11]
Tal crítica serve para legitimar uma contemporânea tendência do direito civil em geral substanciada em sua despatrimonialização, exaltando a necessidade de se proteger os valores constitucionalmente protegidos também no direito privado, sobretudo no direito de família.
Bibliografia
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002.
DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado, 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005.
HÄBERLE, Peter. Constitución como cultura. Bogotá: Instituto de Estudios Constitucionales Carlos Restrepo Piedrahita, 2002.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. 6ª ed., São Paulo: Atlas, 2007.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Direito de Família. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 1996.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004.
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, vol. VI, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2004.
[1] DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado, 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 1415.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3ª ed., Porto Alegre: Livraria do advogado, 2004, p. 59-60.
[3] ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002, p. 107.
[4] SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 119.
[5] HÄBERLE, Peter. Constitución como cultura. Bogotá: Instituto de Estudios Constitucionales Carlos Restrepo Piedrahita, 2002, p. 25.
[6] STJ, EDcl no REsp nº 662.033/RS, Rel. Min. José Augusto Delgado, Dário da Justiça, 13/6/2005.
[7] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, p. 855.
[8] Cf. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. 6ª ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 2228.
[10] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, vol. VI, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 417.
[11] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Direito de Família. 24ª ed., São Paulo: Saraiva, 1996, p. 380.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. A tutela como meio de garantir a dignidade humana: despatrimonialização do direito civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39950/a-tutela-como-meio-de-garantir-a-dignidade-humana-despatrimonializacao-do-direito-civil. Acesso em: 22 nov 2024.
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