I – Introdução.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CR/88 assegura o direito de propriedade e o prevê no rol das Garantias e Direitos Fundamentais (cf. artigo 5º, inciso XXII[1]). Entretanto, ao mesmo tempo em que expressa a garantia ao direito de propriedade, condiciona a proteção constitucional desse direito ao cumprimento de sua função social. Trata-se de regra expressa, constante do artigo 170, inciso III, da Carta Magna[2].
Além de vincular a proteção da propriedade à realização da sua função social, outros artigos da Constituição apresentam situações nas quais o interesse individual de natureza patrimonial cederá ao interesse público, o que demonstra o caráter não absoluto da norma prevista no já citado artigo 5º, inciso XXII, da CR/88.
Diante desse quadro, se o direito de propriedade for exercido em descompasso com a sua função social, deve o Estado intervir, a fim de garantir o bem da coletividade. José dos Santos Carvalho Filho conceitua a intervenção do Estado na propriedade como toda e qualquer atividade estatal que, amparada em lei, tenha por fim ajustá-la aos inúmeros fatores exigidos pela função social a que está condicionada.
A intervenção do Estado na propriedade pode se dar de forma restritiva ou supressiva. São modalidades de intervenção restritivas: a Servidão Administrativa, a Requisição, a Ocupação Temporária, as Limitações Administrativas e o Tombamento. A desapropriação é a forma supressiva de intervenção.
Na intervenção restritiva o Estado impõe restrições e condicionamentos ao uso da propriedade sem, contudo, retirá-la de seu titular. Já na intervenção supressiva o Estado transfere, coercitivamente, para si a propriedade de terceiro, em nome do interesse público.
Finalizando essa parte introdutória do trabalho, cumpre dizer que a competência para legislar sobre direito de propriedade, desapropriação e requisição é da União, nos termos da norma constante do artigo 22, incisos I, II e III, da CR/88[3], mas a competência para legislar sobre as restrições e condicionamentos ao uso da propriedade reparte-se entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
II – Modalidades de Intervenção do Estado na Propriedade
II.I – Servidão Administrativa
A Servidão Administrativa é conceituada por Carvalho Filho (2009, p. 740) como o direito real público que autoriza o Estado a usar a propriedade imóvel para permitir a execução de obras e serviços de interesse coletivo. O diploma legal que faz referência à Servidão Administrativa é o Decreto-Lei nº 3.365, de 1941[4], que regula as desapropriações por utilidade pública.
Por meio dessa modalidade de intervenção, o Poder Público restringe o uso da propriedade, impondo ao dono do imóvel um dever de suportar. Distingue-se da servidão de direito privado (ou servidão civil), pois nessa ocorre a submissão de um bem a outro (ambos particulares), para a consecução de interesse exclusivamente privado. A relação, aqui, que é de direito real, não conta com a participação do Estado como parte.
O objeto da Servidão Administrativa é a propriedade de imóvel (particular, ou público) alheio (uma vez que o instituto pressupõe uma relação jurídica entre dois sujeitos). Existem doutrinadores, como Lucia Valle Figueiredo e Adilson de Abreu Dallari, que defendem a possibilidade de bens móveis e serviços também serem objeto da Servidão Administrativa.
No que se refere à Servidão Administrativa sobre imóveis públicos, em pese possível, há uma restrição: decorrência do princípio da hierarquia federativa, não pode um Município instituir servidão sobre imóveis estaduais e federais, ou um Estado fazê-lo em relação a um bem da União.
A Servidão pode ser instituída por meio de acordo a ser firmado entre o proprietário do bem e o Poder Público, ou através de sentença judicial, quando o ajuste não se mostra viável.
Como dito acima, nesta modalidade de intervenção apenas o uso da propriedade é restringido. Isso, visando à execução de obras e serviços de interesse coletivo. Por não haver perda da propriedade, a regra é que não haja direito à indenização.
É importante dizer, por fim, que a Servidão, em princípio, é permanente; a utilização do bem permanece enquanto compatível com objetivos públicos que a motivaram.
II.II – Requisição Administrativa
A segunda modalidade de intervenção do Estado na propriedade que será aqui tratada é a Requisição.
“Requisição é a modalidade de intervenção estatal através da qual o Estado utiliza bens móveis, imóveis e serviços particulares em situação de perigo público iminente”.[5]
Raquel Melo Urbano de Carvalho apregoa que Requisição Administrativa seria o “ato administrativo que consiste na utilização de bens ou de serviços particulares pela Administração, para atender necessidades coletivas em tempo de guerra ou em caso de perigo público iminente, mediante pagamento de indenização a posteriori”.[6]
A Constituição Federal de 1988 tratou desta modalidade em artigo específico (artigo 5º, inciso XXV): no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.
A competência para legislar sobre Requisições civis e militares é privativa da União, restando às demais pessoas políticas a prática de atos de requisição.
O ato administrativo que formaliza a Requisição é auto-executório, independe de decisão judicial para surtir efeitos.
Diferentemente da Servidão, a Requisição tem caráter transitório.
II.III – Ocupação Temporária
A Ocupação Temporária é instituto de utilização da propriedade imóvel, por certo período de tempo, para que seja viabilizada a execução de serviços e obras públicas, em situações em que não exista perigo público iminente.
Considera-se como fundamento legal desta modalidade de intervenção também o Decreto-Lei nº 3.365, de 1941, artigo 36.
A Ocupação pode ser vinculada à Desapropriação do imóvel objeto da intervenção e neste caso surgirá para o Poder Público, de acordo com José do Santos Carvalho Filho, o dever de indenizar o proprietário. Se não existir a desapropriação, a indenização será devida tão somente nos casos de prejuízo comprovado.
II.IV – Limitações Administrativas
“Limitações Administrativas são determinações de caráter geral, através das quais o Poder Público impõe a proprietários indeterminados obrigações positivas, negativas ou permissivas, para o fim de condicionar as propriedades ao atendimento da função social. [7]”
Nas Limitações Administrativas o Poder Público visa ao condicionamento das propriedades à verdadeira função social que delas se exige.
A lei nº 10.257, de 2001, instituiu importantes instrumentos de Limitações Administrativas de natureza urbanística, tais como o Parcelamento e Edificação compulsórios, previstos em seu artigo 5º.
Característica importante de se destacar é a natureza geral dos atos que impõem as obrigações na Limitação Administrativa, que não se destina a imóveis específicos, mas a um grupo de propriedades, sendo dispensável a identificação daqueles.
Imposições de ordem geral que são, não dão ensejo a indenização em favor dos proprietários dos bens atingidos.
II.V – Tombamento
Outra modalidade de intervenção do Estado na propriedade privada, por meio da qual o Poder Público promove a proteção de bens de interesse cultural, é o Tombamento.
O diploma legal que regulamenta o Tombamento é o Decreto-Lei nº 25, de 1937.
O Tombamento é ato de limitação individual, em que cada bem a ser tombado deve ser individualmente analisado. Pode incidir sobre bens móveis e imóveis, desde que relevantes ao patrimônio cultural do país. Consiste na restrição do uso de propriedades determinadas.
O Tombamento pode ser voluntário, quando realizado com o consentimento do proprietário do bem ou compulsório, quando necessária a inscrição do bem pelo Poder Público, ainda que resistente o proprietário.
Para José dos Santos Carvalho Filho o Tombamento é ato administrativo típico, por meio do qual o Poder Público protege, de possível danos ou destruição, um bem que considerou de relevância para o país. Não se trata, deste modo, para aquele doutrinador, de competência legislativa a instituição interventiva.
A competência para legislar sobre Tombamento é concorrente de todas as pessoas legislativas.
Apesar de incomum, é possível o desfazimento do ato de tombamento, com o cancelamento do ato de inscrição, quando desaparecido o fundamento de sua realização.
O Tombamento de determinado bem cria para seu proprietário o dever de conservá-lo, mantendo-o dentro de suas características culturais. O instituto impõe, ademais, restrições à vizinhança, que se vê proibida de realizar qualquer construção que impeça ou reduza a visibilidade em relação ao prédio tomado. Ademais, a alienação do bem deve ser precedida da expedição de notificação à pessoa política onde se encontra o bem.
Em regra o Tombamento não gera o dever de indenizar.
II.VI – Desapropriação
Segundo a professora Raquel Melo Urbano de Carvalho[8], a Desapropriação pode ser conceituada como “o procedimento por meio do qual o Estado, fundado em interesse público, despoja compulsoriamente alguém de um bem e o adquire para si, de forma originária e mediante indenização, ressalvada a exceção constitucional” (cf. artigo 243 da Constituição da República). Pelo que se percebe do conceito, a desapropriação possui a natureza jurídica de forma originária de aquisição da propriedade. Quanto ao ponto, o professor Celso Antônio Bandeira de Mello[9] afirma que a desapropriação é causa autônoma, bastante, por si mesma, para gerar o título constitutivo da propriedade. Importante perceber, ainda, que o fato de o Estado poder, fundado no interesse público, adquirir compulsoriamente um bem por meio da desapropriação, não o dispensa do dever de indenizar o proprietário. A regra, portanto, é a de que o bem é convertido em dinheiro ou em títulos especiais que poderão ser resgatados.
O fundamento político da desapropriação é a supremacia do interesse público sobre o interesse do particular titular do bem. Nesse passo, não custa lembrar que a Constituição da República de 1988 – CR/88 consagra essa modalidade de intervenção do Estado na propriedade modo expresso em seus artigos 5°, XXIV, 182, § 4°, III, 184 e 243, sendo esses dispositivos os fundamentos constitucionais do instituto em exame. Em âmbito legal, as bases da desapropriação são o Decreto n° 3.365, de 1941 (desapropriação por utilidade pública), a Lei n° 4.132, de 1962 (desapropriação por interesse social), a Lei 8.629, de 1993, a Lei n°10.257, de 2001 (desapropriação para fins de reforma urbana), e a Lei Complementar n° 76, de 1993 (desapropriação para fins de reforma agrária).
Tomando-se por base o texto constitucional, a desapropriação pode ser classificada em três modalidades, consoante a forma de indenização prevista: 1) desapropriação mediante indenização prévia, justa e em dinheiro (utilidade pública e interesse social); 2) desapropriação mediante indenização paga em títulos especiais (hipóteses de desapropriação-sanção – reforma agrária e reforma urbana) e 3) Desapropriação confisco (artigo 243 da CR/88).
No que é concernente à “competência declaratória”, cumpre dizer que, no caso da desapropriação por utilidade pública e interesse social, possuem competência executória incondicionada a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal, assim como, nos casos específicos do artigo 83, inciso IX, da Lei n° 10.233, de 2001, e do artigo 10, da Lei n° 9.074, de 1995, o DNIT e a ANATEL, respectivamente. No caso da desapropriação para fins de reforma urbana, por outro lado, a competência para a sua declaração é privativa dos Municípios (e do Distrito Federal, por força do artigo 32, § 1°, da CR/88). Já na hipótese da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, a competência é da União (artigo 184 da CR/88). Do mesmo modo, tratando-se de desapropriação confisco, a União possui competência privativa para realizá-la.
No que se refere ao seu objeto, vale destacar a possibilidade de serem desapropriados quaisquer bens que tenham valor econômico, sejam bens móveis ou imóveis, corpóreos ou incorpóreos, sejam direitos reais ou pessoais. O importante é que o objeto tenha conteúdo econômico mensurável e que não tenha sido excluído, pelo ordenamento jurídico, da possibilidade de submissão à desapropriação.
Importante dizer, noutro giro, que a desapropriação é um procedimento vinculado, ou seja, é uma sucessão de atos administrativos definidos no ordenamento jurídico. De regra, o procedimento seguido é aquele definido na chamada Lei Geral das Desapropriações (Lei n° 3.365, de 1941), com a possibilidade de ocorrência de duas fases: a administrativa e a judicial. No caso da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, contudo, existe um rito especial e sumário, estabelecido pela Lei Complementar n° 76, de 1993.
É relevante mencionar, ainda, a existência da chamada Desapropriação Indireta, irregular procedimento de aquisição da propriedade, por meio do qual o Estado, ao invés de cumprir as regras que condicionam o modo de aquisição originária e coercitiva da propriedade, limita-se a materialmente tomar posse da coisa alheia. Neste caso, há duas situações bem distintas: antes da incorporação do bem ao patrimônio público, mediante afetação, o seu titular poderá lançar mão das ações de interdito proibitório, de manutenção de posse, ou de reintegração de posse para a defesa do seu direito. Depois da vinculação material do bem a um fim público qualquer, torna-se descabida a utilização de quaisquer dos expedientes de proteção possessória acima mencionados. Nessa hipótese, restará ao proprietário apenas a possibilidade de pedir indenização pelo bem que lhe foi irregularmente expropriado.
A utilização do bem expropriado para finalidade alheia ao interesse público, porém, garante ao expropriado o direito de pedir a reintegração do objeto da desapropriação ao seu patrimônio. Fala-se, aqui, da retrocessão, consequência jurídica de uma desapropriação que se realizou sem lastro, sendo inútil à luz do bem comum. Segundo o professor Celso Antônio Bandeira de Mello[10], “retrocessão, em sentido técnico próprio, é um direito real, o do ex-proprietário de reaver o bem expropriado, mas não preposto a finalidade pública”.
III – Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Vade mecum universitário de direito. 8.ed. São Paulo: Editora Rideel, 2010.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21 ed. rev., ampl., atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. 2009.
CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Salvador: Juspodivm. 2008.
DALLARI, Adilson Abreu. Servidões Administrativas, in RDP 59-60, 1988.
FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. Malheiros : São Paulo, 1995.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20 ed. Malheiros : São Paulo, 2006
[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXII - é garantido o direito de propriedade;
[2] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
III - função social da propriedade;
[3] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
II - desapropriação;
III - requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra;
[4] Art. 40. O expropriante poderá constituir servidões, mediante indenização na forma desta lei.
[5] Idem, p. 747.
[6] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo – Parte Geral, Intervenção do Estado e Estrutura da Administração. JusPODIVM : Salvador, 2008. p. 979.
[7] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21. ed. rev., ampl., atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. 2009. p. 754.
[8] CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo – Parte Geral, Intervenção do Estado e Estrutura da Administração. JusPODIVM : Salvador, 2008, p. 1045.
[9] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20 ed. Malheiros : São Paulo, 2006, p. 818.
[10] Idem, p. 839.
Procurador Federal - Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), bacharel em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Especialista em Direito Público pelo Centro Universitário Newton Paiva e Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera e Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TORRENT, Paulo Timponi. Apontamentos sobre as modalidades de intervenção do estado na propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jun 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39971/apontamentos-sobre-as-modalidades-de-intervencao-do-estado-na-propriedade. Acesso em: 22 nov 2024.
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