RESUMO: a carta de sesmarias, como instrumento jurídico válido a transferir a propriedade de imóvel rural, deve observar tanto a legislação imperial de regência, a qual, por sua vez, impunha condições para validação desse título. O artigo discorre sobre tais condições, delimitando seu contexto histórico a primeira Constituição Republicana de 1891.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Breve história da propriedade rural no Brasil; 3. As sesmarias e o legítimo destaque do patrimônio público; 4. Conclusão.
1. Introdução
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar que o mero registro imobiliário da carta de sesmaria não configuraria domínio pleno e consolidado, incólume a questionamentos relativo à transferência da propriedade pública para a particular.
É bastante comum o senso de que determinada propriedade rural, principalmente aquelas de grande extensão territorial, de origem em sesmaria está mais que concretizada nas mãos de particulares, sendo indiscutível esse caráter.
Contudo, essa ideia geral não encontra respaldo na legislação de terras vigentes à época de implementação do sistema de sesmarias pela Coroa Portuguesa.
Ao sesmeiro eram impostos requisitos e condições para legitimar sua posse, sob pena de cair em comisso, com a retomada e devolução do imóvel rural ao patrimônio público.
A análise do presente estudo terá como base histórica a periodização elaborada por Wellington dos Mendes Lopes que dividiu a história da propriedade territorial rural no Brasil em: I) Sesmarias; II) Posses; III) Lei de Terras; e IV) República.
Ressalve-se que o período da República não será objeto deste artigo, uma vez que a Constituição Federal de 1891 outorgou aos Estados a competência para legislar sobre as terras devolutas localizadas nos seus respectivos territórios, de sorte que se afigura inviável abordar a legislação de terras estadual de cada membro da federação, desde o século XIX até os dias atuais.
2. Breve história da propriedade rural no Brasil[[1]]
Com a descoberta do Brasil, Portugal sentiu necessidade de colonizar as novas terras, com o claro intuito de fortalecer a segurança do reino, incentivar o seu povoamento e, naturalmente, aumentar a sua riqueza. Foi com esse propósito que para aqui veio Martin Afonso de Souza, na condição de Governador-Geral, com poderes de doar a posse de terras aos que nela produzissem, sob pena de retomada. Assim, surgiu o que passou a ser conhecido de donatarialismo.
Sem maiores resultados essa forma de exploração da Colônia, Portugal buscou aplicar também aqui o sistema de capitanias hereditárias vigentes no reino, doando as terras pelo critério de sesmarias, redistribuindo-se aquelas não exploradas entre os novos beneficiários, só que agora, com registro no livro do tombo, o que permitia a fiscalização das doações e cobranças do dízimo anual ao donatário, uma espécie de pagamento pelo uso.
O sistema de exploração sesmeiro da terra, mesmo com o Brasil independente, produziu um caos no tocante à titularidade da terra, levando ao surgimento da Lei nº 601, de 18.09.1850, a chamada Lei da Terra, editada com a clara finalidade de reestruturar o sistema de propriedade no País.
3. As sesmarias e o legítimo destaque do patrimônio público
Ao titular de sesmarias era exigido o aproveitamento, medição, demarcação e confirmação, nos termos da legislação imperial vigente à época, os Alvarás de 3 de março de 1770, 5 de janeiro de 1785, 5 de outubro de 1795, 25 de janeiro de 1809, e o Decreto de 22 de junho de 1808.
Com efeito, para que as sesmarias fossem perfeitamente regulares deveriam obedecer a três condições bastante explícitas no Alvará de 1785: cultura, medição e confirmação. Isto é, o sesmeiro era obrigado a cultivar, demarcar e, por fim, a obter da autoridade o reconhecimento das medidas das glebas[[2]].
O beneficiário da sesmaria que não cumprisse as condições dentro do prazo previsto no título recebido caía em comisso e a terra era devolvida à Coroa[[3]], considerando-se, pois, devolutas as datas de terras tituladas por sesmarias caídas em comisso por descumprimento das condições acima mencionadas.
Eis o conceito inicial de terras devolutas, como bem observa Raymundo Laranjeira:
De princípio, devolutas seriam as terras dadas em sesmarias e que deveriam devolver-se ao domínio régio porque os colonos – a quem incumbiam ainda os pagamentos do foro sobre a terra e do dízimo sobre os seus produtos – não satisfaziam as condições de:
a) cultivo em prazo certo (Cartas de Doação e Forais);
b) registro da Carta de Doação (Regimento dos Provedores);
c) confirmação da concessão (aos fins do século XVII);
d) medição e demarcação da área (1702).
Dentre os detentores de sesmarias, quem verdadeiramente seria senhor do solo, face à superposição de limites e de títulos, se bem que o título de sesmarias, com a condição resolutiva de que lhe era inerente, somente se aperfeiçoava como título de domínio depois da comprovação de haver o sesmeiro nele implantado cultura, ter promovido a medição e, por fim, haver obtido da Coroa a confirmação da data. Sem o atendimento a tais requisitos o título seria nenhum e a terra não se destacaria do patrimônio público[[4]].
Dessa forma, as terras concedidas em sesmarias somente se revestiam do caráter de propriedade particular após confirmadas. Vale dizer, apenas as sesmarias que cumpriram os requisitos retrocitados são consideradas domínio pleno, haja vista que foram incorporadas ao patrimônio particular por título legítimo.
A Carta de Sesmaria, concedida e não confirmada, equivale a mera posse, que, por imperativo lógico, não é e nunca foi documento representativo de domínio, uma vez que não foi legitimado dentro do prazo e condições estipulados em lei.
Denota-se, portanto, que as terras outrora concedidas por título de sesmarias caiam em comisso, porquanto não eram confirmadas, retornaram ao patrimônio público, na qualidade de devolutas.
De fato, segundo a classificação proposta por Paulo Garcia[[5]], considerando as terras públicas brasileiras quanto à sua propriedade no período das sesmarias:
b) Terras Públicas – essas comportavam seis classes:
1) pertencentes às Nações, às Províncias ou aos Municípios;
2) aplicadas a algum uso público, quer fosse nacional, quer provincial, quer municipal;
3) sujeitas à posse de particulares, sem qualquer título, a não ser a ocupação;
4) sujeitas à posse de particulares em virtude de concessões incursas em comisso;
5) as que se acham sob o domínio útil de um particular;
6) as desocupadas, isto é, as que não estavam na posse de alguém.
Não restam dúvidas, portanto, que as datas de terras supracitadas ainda pertenciam ao patrimônio público, na condição, reitere-se, de devolutas, de sorte que sesmarias dependentes de confirmação geram mera expectativa de domínio, conforme explica Gustavo Elias Kallás Rezek[[6]].
Com a entrada em vigor da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, a Lei de Terras, foi reconhecida ao concessionário de sesmarias o direito de revalidar sua concessão, embora não tivesse dado cumprimento às condições legais, ou mesmo não tivesse sequer medido a terra[[7]].
Dessa forma, a sesmaria ou concessão que estivesse incursa em comisso, pelo Direito antigo, o português, por falta de cultivo, medição e/ou, confirmação, poderia ser revalidada pelo Direito Novo, o brasileiro, atendida à condição pré-falada, transformando em domínio[[8]].
A origem da propriedade particular no Brasil ora advém das doações de sesmarias, ora é proveniente de ocupações primárias. Ambas, para se transformarem em domínio pleno, deveriam passar pelo crivo da "revalidação" ou, quanto às "posses de fato", da "legitimação", procedimentos previstos, respectivamente, nos arts. 4º e 5º da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras)[[9]].
As sesmarias para serem consideradas como títulos de domínio deviam ter sido regularizadas, antes de 1850, ou conforme determinava a lei 601/1850[[10]].
Transcreve-se, por relevante, o artigo 4º que versa sobre o instituto jurídico da revalidação das sesmarias:
Art. 4º Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que se acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário, ou de quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas.
De igual forma, o artigo 27, do Decreto nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854, que manda executar a Lei nº 601 de 1850:
Art. 27. Estão sujeitas à revalidação as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral, ou Provincial que, estando ainda no domínio dos primeiros sesmeiros, ou concessionários, se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro, ou concessionário, ou de quem o represente, e que não tiverem sido medidas, e demarcadas.
Além da cultura efetiva e morada habitual, o artigo 7º, da Lei de Terras estabeleceu os requisitos da medição, demarcação, e os prazos que devem ser observados para a revalidação das sesmarias:
Art. 7º O Governo marcará os prazos dentro dos quais deverão ser medidas as terras adquiridas por posses ou por sesmarias, ou outras concessões, que estejam por medir, assim como designará e instruirá as pessoas que devam fazer a medição, atendendo às circunstâncias de cada Província, comarca e município, e podendo prorrogar os prazos marcados, quando o julgar conveniente, por medida geral que compreenda todos os possuidores da mesma Província, comarca e município, onde a prorrogação convier.
Nesse contexto, é importante ressaltar que o sesmeiro caso deixasse de cumprir tais obrigações cairia em comisso, por conseguinte, as terras seriam consideradas devolutas, reintegrando-se ao patrimônio público, à luz dos expressos termos dos artigos 8º, da Lei nº 601 de 1850, e 58, do Decreto nº 1.318 de 1854:
Lei nº 601 de 1850
Art. 8º Os possuidores que deixarem de proceder à medição nos prazos marcados pelo Governo serão reputados caídos em comisso, e perderão por isso o direito que tenham a serem preenchidos das terras concedidas por seus títulos, ou por favor da presente Lei, conservando-o somente para serem mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto.
Decreto nº 1.318 de 1854
Art. 58. Findos os prazos, que tiverem sido concedidos, os Presidentes farão declarar pelos Comissários aos possuidores de terras, que tiverem deixado de cumprir a obrigação de as fazer medir, que eles têm caído em comisso, e perdido o direito a serem preenchidos das terras concedidas por seus títulos, ou por favor da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, e desta circunstância farão as convenientes participações ao Delegado do Diretor-Geral das Terras Públicas, e este ao referido Diretor, a fim de dar as providências para a medição das terras devolutas, que ficarem existindo em virtude dos ditos comissos.
Portanto, o interessado tinha a obrigação de comprovar que a sesmaria concedida foi revalidada de acordo com as disposições da legislação imperial vigente à época. Caso contrário, o imóvel rural ainda continuava integrando o patrimônio público como terra devoluta.
Nessa linha, a primeira Constituição Republicana, de 24 de janeiro de 1891, graças à emenda constitucional oferecida pelo líder gaúcho Júlio de Castilhos no art. 64, transmitiu para o patrimônio dos Estados federados as terras devolutas da Nação – da Coroa Portuguesa, como se dizia no tempo do Império – situadas nos seus respectivos territórios. Por força deste dispositivo constitucional, os Estados-membros passaram a gerir suas terras devolutas[[11]].
Assim, por exemplo, no Estado do Pará, a primeira Lei de Terras foi o Decreto nº 410 de 8 de outubro de 1891, regulamentado por outro Decreto, sem número, de 28 de outubro do mesmo ano, ambos baixados por Lauro Sodré, primeiro Governador constitucional republicano do Estado. Mencionada legislação de terras devolutas estaduais, assim como sucedeu nos demais Estados-membros, nada mais fez que copiar os princípios gerais inspiradores da Lei de Terras nº 601, de 1850, do Império brasileiro. Toda legislação do Estado do Pará que se seguiu à primitiva tem como pontos básicos: o estabelecimento de uma Repartição de Terras para controle de assuntos fundiários; as normas de medição e demarcação administrativa; os processos de venda, revalidação e legitimação; a ressalva das terras reservadas; o registro das posses e propriedades[[12]].
Nessa esteira, os prazos para registro, medição e demarcação das posses e cumprimento dos demais requisitos legais foram sucessivamente prorrogados por lei até a Lei nº 5.295, de 23 de dezembro de 1985 que estabeleceu como data-limite para as legitimações de posse a data de 31 de dezembro de 1995, culminando com o Decreto Estadual nº 1.054, de 14 de fevereiro de 1996, que em seu art. 1º determinou[[13]]:
Art. 1º Fica declarada a caducidade dos títulos de terras cuja legitimação não tenha sido requerida junto ao Instituto de Terras do Pará - ITERPA até 31 de dezembro de 1995, consoante dispõe o art. 29, § 6º da Lei n.º 4.584/75 e art. 1º da Lei n.º 5.295/95.
§1º - Incluem-se nas disposições do "caput" deste artigo os registros de posse feitos perante as Intendências Municipais e repartições de terras do Estado, inclusive os chamados "registros paroquiais" ou "de vigário", a que se refere à legislação imperial anterior.
Cumpre observar, nesse passo, os “considerandos” do Decreto Estadual nº 1.054/96:
Considerando que, mesmo respeitando as concessões anteriormente confirmadas, a dita Lei n.º 601 e seu regulamento, baixado com o Decreto n.º 1.318, de 30 de janeiro de 1854, estabeleceram condições especificas para a revalidação de outras tantas concessões, ainda que à época incursas em comisso, e instituíram a Legitimação de Posse como formula para transformar em domínio as ocupações consolidadas;
Considerando que, em decorrência destes preceitos traçados pela Lei n.º 601 e seu Regulamento, foi criado o registro das terras que à época se achassem ocupadas a qualquer título, atribuindo-se aos vigários das paróquias de cada uma das freguesias do Império o encargo de receber e tomar por termo as declarações correspondentes nas áreas de sua jurisdição, não havendo qualquer dúvida quanto aos efeitos meramente estatísticos desse registro;
Considerando que, com o advento da Constituição Republicana de 1891, foram transferidas para o domínio dos Estados-membros as terras devolutas existentes no âmbito dos respectivos territórios, inclusive aquelas registradas como posses sujeitas à legitimação;
Considerando que, através do Decreto n.º 410, de 8 de outubro de 1891, o Estado do Pará teve o primeiro estatuto de terras, nitidamente inspirado na lei n.º 601 e no seu Regulamento de 1854, mantido o instituto da Legitimação de Posse, com a mesma terminologia adotada pela legislação do Império;
Considerando que, toda a legislação fundiária paraense que sucedeu o decreto n.º 410 adotou os mesmos requisitos de demarcação, ocupação e pagamento de custas como pressupostos essenciais à obtenção do domínio das áreas registradas como posse;
Considerando que, apesar de reiteradamente prorrogados por lei os prazos para a legitimação das áreas cobertas por título de posse, os detentores dos direitos deles decorrentes não cumpriram suas obrigações para com o Estado, a partir da falsa presunção de domínio emanada de registros imobiliários irregulares, ensejando muitas vezes, o superdimensionamento das respectivas áreas, com metragens superiores aos limites máximos permitidos no procedimento legitimatório;
Considerando que os títulos desta natureza, hoje em grande circulação e erroneamente apresentados como documentos representativos de domínio, têm sido utilizados, ao longo do tempo, para os mais diversos negócios freqüentemente ilícitos, com vendas a terceiros de boa-fé, obtenção de financiamentos e autorizações para desmatamento;
Considerando, mais, que a precariedade descritiva desses registros, quase sempre baseados em meros acidentes geográficos de difícil localização, vem contribuindo para a ocorrência de numerosos conflitos possessórios no meio rural paraense, além de impedir a elaboração do cadastro fundiário do Estado;
Wellington dos Mendes Lopes[[14]] dividiu a história da propriedade territorial rural, no Brasil, com a seguinte periodização: I) Sesmarias; II) Posses; III) Lei de Terras; IV) República.
O primeiro período, o das sesmarias, retroage a Portugal medieval, à ocasião da Lei de Sesmarias, publicada em Santarém, em 1375, por D. Fernando I e vai até a Resolução nº 76, de 17 de julho de 1822, que manda suspender a concessão de sesmarias futuras até a convocação da Assembléia Geral Constituinte.
Segundo período, o das Posses, vai de 17-7-1822 até a data da edição da Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850.
Terceiro período, é o da Lei de Terras (Lei n. 601, de 18-9-1850, regulamentada pelo Dec. n. 1.318, de 30-11-1854, entre a primeira data e 1891).
O quarto e último período é o da República, inaugurado com a Constituição Federal de 1891, até os nossos dias, a qual, nos artigos 63 e 64, outorgou aos Estados autonomia federativa para legislar sobre as terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios.
Aplicando os ensinamentos do ilustre professor, deve-se observar a legislação de terras de cada um desses períodos para verificar se a posse das terras se consolidou em domínio pleno.
No regime de sesmarias, se não foi confirmada, equivale a mera posse, que não é e nunca foi documento representativo de domínio, uma vez que não foi legitimado dentro do prazo e condições estipulados em Lei.
Pela Lei de Terras, há necessidade de provas de que a posse dos ocupantes do imóvel rural foi revalidada.
Ressalve-se que a forma como está medido o imóvel, demonstra que não se procedeu a sua demarcação, pois as sesmarias eram concedidas por extensão não determinada, muitas vezes balizada por limites vagos e imprecisos ou características impróprias[[15]], indicando acidentes geográficos como marcos limítrofes. É irregular, para fins de registro, o título omisso em relação à área, ao perímetro e às confrontações do imóvel (RT, 598:107)[[16]].
Sobre o tema, importante julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que bem ilustra a tese ora defendida:
ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. INDENIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA DO TÍTULO LEGÍTIMO. SESMARIAS. CARTAS DE CONCESSÃO. LEI 601/1850. BENFEITORIAS INDENIZÁVEIS INEXISTENTES.
1. Indevida a indenização a quem não detém título legítimo. No caso, ante o inafastável defeito da aquisição primária, em face do descumprimento das condições do regime sesmarial e inobservância do procedimento para validação, ou legitimação de eventual direito pela efetiva posse de terras devolutas previsto na Lei 601 de 1850 c/c Decreto nº 1318, de 1854 não se demonstrou a transferência do domínio para o particular.
2. A ausência de demonstração da cadeia dominial aliada à não regularização da posse para efeito de aquisição de terras devolutas faz concluir que não há propriedade porque a área mantém sua natureza original, constituindo terra devoluta legitimamente arrecadada pela União.
3. Os possuidores que deixarem de proceder à medição nos prazos marcados pelo Governo serão reputados caídos em comisso, e perderão por isso o direito que tenham a ser preenchidos das terras concedidas por seus títulos, ou por favor da Lei 601/1850, conservando-o somente para serem mantidos na posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura, havendo-se por devoluto o que se achar inculto. Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, compreenderá, além do terreno aproveitado ou do necessário para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outro tanto mais de terreno devoluto que houver contíguo, contanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual ás ultimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha.
4. In casu, a inexistência de posse efetiva sobre a área e a grande extensão da gleba são também elementos evidenciadores da impossibilidade legal de o imóvel ter ingressado no domínio particular.
5. Apelação improvida.
(AC 2004.01.00.044971-1/MT, Rel. Desembargador Federal I'talo Fioravanti Sabo Mendes, Juíza Federal Rosimayre Gonçalves de Carvalho Fonseca (conv.), Quarta Turma, DJ p.22 de 23/11/2006) (Grifei)
Em resumo, passando pela legislação da Coroa Portuguesa e monarquia brasileira, os ocupantes de terras públicas tinham a obrigação legal de convalidar sua posse em propriedade, transmudando-se o caráter público do imóvel rural objeto da demanda desapropriatória.
A carta de sesmaria que inaugura a cadeia dominial de determinado imóvel rural para configurar um título legítimo, que autoriza o regular destaque do patrimônio púbico ao particular, reclama confirmação, revalidação ou legitimação.
Deve-se analisar as certidões cartorárias e o extrato de cadeia dominial se foi outorgado pelo Poder Público, titular do domínio do imóvel, algum instrumento legítimo a transmitir a propriedade aos ocupantes, de acordo, com a legislação que rege a matéria, quer colonial ou imperial, que respaldado juridicamente, inaugurou uma cadeia de registros públicos apta a ser reconhecida como geradora de domínio privado, levando-se à conclusão de que jamais entrou, por direito, ao patrimônio particular, caracterizando, portanto, apropriação irregular de terras públicas.
Trata-se, se comprovado, de meras posses cuja antiguidade não serve a transformá-las em propriedade. Isso significa que não é qualquer documento que obriga o Estado e terceiros a reconhecer o direito de propriedade apresentado por qualquer um: só um título legítimo, isto é, baseado no respeito às normas legais em vigor, deve ser respeitado. Toda e qualquer transferência que se operou com vícios deve ser considerada nula de pleno direito e o imóvel em questão será considerado como ainda integrante do patrimônio público podendo o Estado retomar sua posse quando achar necessário[[17]].
Portanto, não se provando a regularidade, validade e legitimidade da cadeia sucessória desde o início da existência e relevância jurídica do imóvel, a presunção é a de que pertence ao Poder Público, somente podendo ser afastada diante da prova cabal da transferência do domínio público ao particular[[18]].
4. Conclusão
Conforme os Alvarás de 3 de março de 1770, 5 de janeiro de 1785, 5 de outubro de 1795, 25 de janeiro de 1809, e o Decreto de 22 de junho de 1808, as sesmarias teriam que atender os seguintes requisitos constantes no título para serem consideradas regulares: implantar cultura, promover a medição e ter obtido a confirmação pela monarquia portuguesa. Tratava-se de condições resolutivas. Na hipótese de descumprimento dessas condições, a sesmaria caia em comisso, por conseguinte, o imóvel rural não se destacaria, retornando ao patrimônio público na qualidade de devoluta.
A Lei nº 601/1850, contudo, possibilitou a regularização pelo sesmeiro das terras caídas em comisso por intermédio do instituto da revalidação (art. 4º). Para tanto, era necessário cultura efetiva e morada habitual, além da medição, demarcação e observância de prazos previstos na lei de Terras para revalidação (art. 7º).
Pela análise da legislação pretérita, os ocupantes de imóveis rurais deviam atender requisitos e condições para convalidar sua posse em propriedade. Na hipótese contrária, aplicava-se a penalidade do comisso, com o regresso das terras ao patrimônio público.
Dessa forma, a cadeia dominial inscrita e matriculada no serviço registral de imóveis com origem em sesmarias somente configura justo título que autoriza o regular destaque do patrimônio público ao particular se ocorreu sua confirmação, revalidação ou legitimação, nos termos dos diplomas legais acima mencionados.
Referências
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BALBINO FILHO, Nicolau. Registro de Imóveis: doutrina, prática e jurisprudência. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008.
DINIZ, Maria Helena. Sistemas de registro de imóveis. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
FALCÃO, Ismael Marinho. Direito Agrário Brasileiro. Bauru, SP: EDIPRO, 1995. p. 152.
FORSTER, Germano de Rezende. A privatização das terras rurais. Barueri, SP: Manole, 2003.
LARANJEIRA, Raymundo. Propedêutica do Direito Agrário. 2 ed. São Paulo: LTr, 1981.
LIMA, Rafael Augusto Mendonça. Direito Agrário. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.
MATTOS NETO, Antonio José. O título de posse à luz da legislação de terras do estado do Pará. Belém: UNAMA, 2003.
REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – agrariedade, ruralidade e rusticidade. Curitiba: Juruá, 2007.
STEFANINI, L. Lima. A propriedade no direito agrário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.
TENÓRIO, Igor. Curso de Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1984.
TRECCANI, Girolamo Domenico. violência e grilagem: instrumentos de aquisição da propriedade da terra no Pará. Belém: UFPA, ITERPA, 2001.
[[1]] Este do item do artigo foi transcrito do livro de BARROS, Wellington Pacheco. Curso de Direito Agrário. vol I. 5ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 44/45.
[[5]] GARCIA, Paulo. Terras Devolutas. Belo Horizonte: Oscar Nicolai, 1959. p. 29 apud LARANJEIRA, Raymundo. Propedêutica do Direito Agrário. 2 ed. São Paulo: LTr, 1981. p. 34-35.
[[6]] REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – agrariedade, ruralidade e rusticidade. Curitiba: Juruá, 2007. p. 92.
[[8]] FORSTER, Germano de Rezende. A privatização das terras rurais. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 52.
[[9]] REsp 389.372/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 04/06/2009, DJe 15/06/2009.
[[10]] TRECCANI, Girolamo Domenico. violência e grilagem: instrumentos de aquisição da propriedade da terra no Pará. Belém: UFPA, ITERPA, 2001. p. 78.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União. Pós-graduado em Direito Público e Direito do Trabalho. Ex-advogado da Caixa Econômica Federal. Ex-advogado da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão. Ex-analista processual do Ministério Público da União. Ex-conciliador federal. Ex-advogado privado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ERICEIRA, Cássio Marcelo Arruda. As Sesmarias e o legítimo destaque do patrimônio público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jul 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40039/as-sesmarias-e-o-legitimo-destaque-do-patrimonio-publico. Acesso em: 22 nov 2024.
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