Resumo: O texto aborda os aspectos gerais, jurídicos e bioéticos que envolvem a antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, assim como as contradições que acompanham o tema, cotejando o ensinamento dos doutrinadores sobre o tema com a jurisprudência hodierna. Trata-se de um tema que será sempre atual, por tratar da vida e dignidade da pessoa humana, sempre em constante evolução. A dinâmica da sociedade em relação a estes valores éticos conduzem o legislador a uma constante adaptação. Com o julgamento da ADPF 54, o Brasil supera uma posição assaz conservadora, para assumir uma posição moderna e com foco no respeito à mulher, como ser humano, sem, contudo, tornar uníssono o pensamento. Enquanto isso, o Direito não pode desamparar tal situação, e o presente trabalho tem por escopo apresentar o que tem sido feito para alcançar tal intuito.
Palavras chave: Antecipação terapêutica do parto; Feto Anencefálico; Vida; Dignidade da pessoa humana; Liberdade.
Abstract: The text discuss the general, juridic and bioetic aspects involving therapeutic anticipation of anencephalic fetus and the contradictions found, comparing the scholars teaching with the actual jurisprudence. It is a current theme because cares about human dignity, always in evolution. The dynamics of society in relation to these ethical values lead the legislature to constant adjustments. After the ADPF 54 judgment, Brazil beats a rather conservative position to assume a modern one, focusing on women respect, as a human, however, this does not make it an unison thought. Meanwhile, Law cannot abandon such a situation, and the present work has the purpose to present what has been done to achieve this objective.
Keywords: Therapeutic anticipation of childbirth; Anencephalic fetus; Life; Human dignity; Freedom.
1. Notas introdutórias
Aborto é tema de grande apelo social e motivo de dissenso entre estudiosos das ciências sociais, jurisconsultos e também da sociedade como um todo desde tempos remotos, principalmente, em decorrência do avanço das ciências médicas, sempre acompanhados de opiniões polarizadas entre sua descriminalização absoluta até sua proibição completa.
No que pertine especificamente à anencefalia, o assunto merece um cuidado especial, dado o reflexo das diversas correntes científicas e de pensamento, posicionamentos extremados, visões religiosas, bioéticas, correntes jurídica que, entre outros aspectos, destacam a ponderação de valores jurídicos de alta hierarquia.
O tema será abordado dentro de um enfoque jurídico-filosófico, partindo do conceito do aborto e suas classificações, demonstrando o posicionamento do Código Penal Brasileiro, os tipos de aborto, os crimes nele fundamentados, as propostas de mudanças discutidas no Congresso Nacional, o posicionamento do Judiciário Pátrio em relação ao aborto de anencefálicos antes e após o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamento n. 54, julgada em 2012, expondo, de antemão, nosso repúdio a tal forma de violência, injustiça, crueldade e tortura aplicada à mulher que, privada de seu direito de liberdade e vulnerada em sua dignidade, é obrigada a carregar em seu ventre uma vida inviável, para não ser vítima do jus puniendi estatal, além da impropriedade no fato de obstacular a atuação dos profissionais da saúde que se propõem a praticar a antecipação do parto em tais circunstâncias.
No sentido etimológico, aborto vem do latim ab, que significa privação, e ortus, nascimento, sendo, pois, a privação do nascimento. Em uma visão estritamente médica, é considerado aborto a interrupção da gestação de até 24 semanas, ou seja, “quando o feto começa a se tornar capaz de vida independentemente do útero materno”[1], depois disso, o que ocorre chama-se de parto prematuro.
Na lição de Mirabete[2], aborto é “a interrupção da gravidez com a morte do produto da concepção, que pode ser o ovo, o embrião ou o feto, conforme a fase de sua evolução. Pode ser espontâneo, natural ou provocado”.
A definição do aborto não carece de maiores detalhamentos, contudo, existem variadas classificações. Dentre elas, destacamos uma bastante pertinente, de autoria da professora Débora Diniz[3], que divide as situações de abortamento em quatro grupos distintos:
a) Interrupção eugenésica da gestação (IEG): são os casos de abortos em nome da eugenia, isto é, situações em que se interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos, etc. contra a vontade da gestante.
b) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): são os casos onde a interrupção da gravidez visa salvar a vida da gestante;
c) Interrupção seletiva da gestação (ISG): são os casos de abortos ocorridos em virtude de anomalias fetais, isto é, situações em que se interrompe a gestação pela constatação de lesões fetais. Em geral, os casos que motivam as solicitações de aborto seletivo são de patologias incompatíveis com a vida extra-uterina, sendo exemplo clássico o da anencefalia;
d) Interrupção voluntária da gestação (IVG): são os casos de abortos ocorridos em nome da autonomia reprodutiva da gestante ou do casal.
O término "seletivo" da gravidez (ISG), como explicado, ocorre no caso de uma má-formação fetal tornar indesejável o prosseguimento da gestação. Entretanto, mesmo dentro da definição de aborto seletivo (ISG), há necessidade de se distinguir os casos em que o feto vai se tornar um portador de deficiência dos casos nos quais o feto não possui qualquer viabilidade para vida extra-uterina. O nascimento de uma pessoa portadora de deficiência é merecedor de proteção legal plena, posto que se trata aqui de viabilidade plena para a vida, mesmo que com alguma limitação. A questão que se debate é com relação às anomalias plenamente incompatíveis com a vida, onde a gestação é conduzida com a certeza absoluta da não sobrevivência, como é o caso dos fetos anencéfalos.
Nosso Código Penal tutela a vida em toda sua extensão, seja ela a vida endo-uterina, enquanto se fizer ela biologicamente dependente de outro organismo (o materno) para que se processem suas funções vitais, bem como a vida extra-uterina, quando essa dependência não mais existir, já tendo ganho o novo ser condição, viabilidade, maturidade orgânica e autonomia para viver no mundo externo.
O diploma atual que data de 1940 distingue seis figuras no Capítulo sobre o aborto: o auto-aborto (art. 124), o consentimento da gestante para que outrem lhe provoque o abortamento (art. 124), o aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (art. 125), aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante (art. 126), o aborto qualificado (art. 127) e o aborto legal (art. 128).
O bem jurídico atingido pela ação típica abortiva é a vida humana em sua esfera intra-uterina, ou seja, desde o momento da concepção até o estágio anterior ao momento do parto, que se caracteriza pelas contrações do colo do útero da mulher, com o rompimento da bolsa amniótica e o desprendimento do novo ser. Iniciado o processo de parto, já não haveria viabilidade jurídica de prática do crime de aborto e sim de infanticídio, se praticado pela mãe, ou homicídio, quando praticado por terceiro.
Aqui vale inserir a adoção do conceito de “antecipação terapêutica do parto” para designar a interrupção da gestação de fetos anencefálicos. Isso pois, o aborto pressupõe possibilidade de vida extrauterina. A antecipação não pressupõe sequer vida em potencial.
Vale salientar que o Código Penal, no Capítulo “Dos Crimes contra Vida”, protege a vida da pessoa humana. Não há crime de homicídio contra seres irracionais ou inanimados, como plantas ou animais. Da mesma forma, já que o feto não é uma pessoa, não é cabível incriminar sua morte nos moldes do art. 121 do CP. O tipo penal aborto foi criado para proteger a potencialidade que possui o nascituro de ser uma pessoa. A ratio deste tipo é proteger a dignidade relativa do feto, para que ela possua, com o nascimento, plena dignidade da pessoa humana.
No caso da antecipação terapêutica da gestação de feto anencefálicos, não há potencial de vida a ser protegido, de modo que falta à hipótese o suporte fático exigido pela lei. Com efeito, apenas o feto com capacidade potencial de ser pessoa pode ser sujeito passivo de aborto. Assim, não há como se imprimir à antecipação do parto nesses casos qualquer repercussão jurídico-penal, de vez que somente a conduta que frustra o surgimento de uma pessoa ou que causa danos à integridade física ou à vida da gestante tipifica o crime de aborto.
Com base na literatura médica, a anencefalia é definida “como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico"[4].
A anencefalia é um defeito caracterizado pela ausência da calota craniana e da pele que a recobre, sendo que o cérebro fica exposto. Esta anomalia está incluída entre os Defeitos do Tubo Neural (DTN) acontecida entre a 16 º e 26º dia de gestação. O tubo neural é a estrutura embrionária que dará origem ao cérebro e à medula espinhal. Quando ocorre o fechamento inadequado da parte superior do tubo neural (cabeça), o resultado é a anencefalia. Quando o defeito de fechamento acontece na parte inferior do tubo neural (medula espinhal), resulta na espinha bífida, também conhecida como meningocele e mielomeningocele, podendo provocar paralisia dos membros inferiores, incontinência urinária e intestinal, dentre outros transtornos. Esse problema, porém, diagnosticado precocemente permite operação inclusive intraútero.
Esta anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central - responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Restam apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal.
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP, atendendo à consulta n° 8.905/98, deixou assentado que:
[...] o diagnóstico de anencefalia fetal pré-anuncia uma situação de impossibilidade de vida prolongada, após o nascimento. A ciência não oferece recursos para a correção desta anomalia, até mesmo para o prolongamento da vida de um anencéfalo: muito menos, ao que se sabe, para atenuar os danos no seu neuro-psiquismo. (...) Em termos científicos, não existe qualquer perspectiva de vida do anencéfalo[5] (grifado).
Embora em alguns casos os fetos anencefálicos consigam sobreviver por algumas horas fora do útero materno, torna-se impossível a sobrevida dessas crianças no mundo exterior, sendo fatal em 100% (cem por cento) dos casos, quando não ocorre a morte ainda no período intrauterino, frequente em 65% (sessenta e cinco por cento) dos casos[6].
A incidência de casos de anencefalia no Brasil é de 1:1600 nascimentos; Nos Estados Unidos, de 1:1000; Na França e Japão, de 0,1 a 0,6:1000 nascimentos[7].
De origem genética, a perturbação provém habitualmente da mãe, quando submetida a determinadas condições. As evidências têm demonstrado que a diminuição do ácido fólico materno está associada com o aumento da incidência desta anomalia, daí sua maior frequência nos níveis socioeconômicos menos favorecidos[8].
Considerando os avanços da medicina, hoje já é possível diagnosticar problemas na gestação uterina outrora impossíveis, como a anencefalia que, detectável a partir da 12º semana, através de ressonância magnética, ultrassonografia e ecografia, os quais têm se mostrado importantes meios de diagnóstico na identificação desta e de outras malformações dos fetos, com margem de erro praticamente nula.
A interrupção da gestação de fetos anencefálicos, deixa-se claro, não corresponde, rigorosamente, ao “aborto eugênico”, embora, por vezes, esses termos sejam usados indistintamente. Este ocorre diante de anomalia comprometedora da higidez mental e física do feto, mas com perfeita possibilidade de sobrevida pós-parto. Ontologicamente, a eugenia trata da reprodução e do aperfeiçoamento da raça, portanto, a interrupção da gravidez para “preservar a qualidade de vida do ser” não encontra, por ora, sustentação em causa legal.
A antecipação terapêutica do parto, tecnicamente, cuida dos fetos cuja vida extrauterina torna-se incompatível ou inviável, sem qualquer imposição Estatal ao seu abortamento, como ocorre no eugênico.
A interrupção da gestação de anencéfalos é praticada em países como França, Suíça, Bélgica, Áustria, Israel e Rússia, e, mesmo em países de grande tradição católica como a Itália e Espanha, a prática dita abortiva chega a 85% dos casos. No Brasil, embora dito país laico, essa era uma conduta vedada pela legislação penal positivada, até 2012, quando o STF demonstrou ser inconstitucional a interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencefálico ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.
Diante da lacuna legislativa, as decisões sobre o tema percorreram vários tribunais que, sem unanimidade, concediam alvarás ora permissivos ora denegatórios da prática abortiva de fetos anencefálicos.
Enquanto não catalogado como espécie de aborto legal, a interrupção da gestação de fetos anencefálicos era considerada causa de exclusão da ilicitude, pela inexigibilidade de conduta diversa. Confere-se, pois, preponderância ao interesse materno de preservar a própria saúde ante a vida do nascituro, despojada de garantias mínimas de bem-estar, recaindo, destarte, numa modalidade de aborto terapêutico, dado o risco de vida que, frequentemente, é acometido à gestante.
Nesta senda, registre-se excerto de voto da Desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos, do vanguardista Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul[9], em que foi dado provimento ao recurso para consentir que a apelante realizasse o aborto de feto portador de anencefalia:
O caso sob apreciação é excepcional pelas suas características e, mesmo não estando apoiado nos dispositivos penais vigentes (artigo 128, I, II do CP) tem embasamento na causa supra-legal de inexigibilidade de outra conduta, exatamente, por que nem o direito, tampouco a lei positiva podem exigir heroísmo das pessoas a ponto de violar sua higidez mental e psíquica e a própria dignidade humana, no caso da gestante. (Grifo nosso).
Como era de se esperar a discussão acerca do aborto de fetos anencéfalos chegou ao Supremo Tribunal Federal, através de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental[10], a ADPF nº. 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), com apoio técnico do ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, cuja mais conhecida representante é a antropóloga e pesquisadora Debora Diniz), por meio do advogado e professor da UERJ, Luís Roberto Barroso, atual Ministro do STF.
Tal medida judicial teve como objetivo resguardar a segurança jurídica dos profissionais da área de saúde, eis que supostamente ameaçados de serem responsabilizados pelo cometimento do crime de aborto nas hipóteses de "antecipação terapêutica do parto" de fetos anencefálicos.
Propugnava o proponente o reconhecimento da interrupção da gravidez de fetos anencefálicos, com base no direito à saúde, direito à liberdade, direito à preservação da autonomia da vontade e direito à dignidade da pessoa humana cabíveis às gestantes, aduzindo que “não há na farmacologia médica nada que se possa fazer para salvar esse feto, só se pode fazer algo para preservar a mãe, que terá gravidez de mais alto risco, sim”[11].
Na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 54, Barroso[12] define, com base na literatura médica, a anencefalia “como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico"[13].
Proposta em 17 de junho de 2004, a ADPF teve liminar deferida em 01 de julho de 2004, para autorizar o abortamento de feto anencefálico, acolhendo os argumentos apresentados pelo proponente. Contudo, somente em 12 de abril de 2012 a mesma foi julgada em definitivo, para considerar inconstitucional a interpretação que enquadra a interrupção da gravidez, ou antecipação terapêutica do parto, em caso de comprovada anencefalia, como crime de aborto. O acórdão restou assim ementado:
ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações.
FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencefálico ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal
Em seu bem lançado voto, o insigne Ministro Relator Marco Aurélio Melo assim expôs:
Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social.
O Ministro Carlos Ayres Brito, acompanhando o relator, também proferiu voto merecedor de destaque[14]:
[...] Quero dizer: o crime deixa de existir se o deliberado desfazimento da gestação não é impeditivo da transformação de algo em alguém. Se o produto da concepção não se traduzir em um ser a meio caminho do humano, mas, isto sim, em um ser que de alguma forma parou a meio ciclo do humano. (...). Já não corresponde ao fatotipo legal, pois a conduta abortiva sobre a qual desaba a censura legal pressupõe o intuito de frustrar um destino em perspectiva ou uma vida humana in fieri. (grifado).
Em 2007, várias audiências públicas foram realizadas no STF, reunindo profissionais das mais diversas áreas para debater conceitos como início e fim da vida de modo a amparar a decisão judicial que veio a ser proferida por aquela corte, quando do julgamento definitivo no mérito da presente questão, em 12 de abril de 2012.
Como outrora mencionado, o caso comporta uma minuciosa ponderação entre valores distintos: a potencialidade de vida do nascituro e a liberdade e autonomia privada da gestante. Há de se ter em mente que no caso do feto anencefálico há certeza científica da inviabilidade da vida extrauterina. Igualmente, merecem atenção os direitos constitucionais pertinentes à gestante que têm o condão de retirar qualquer ilicitude de sua conduta.
Para fins de aferir com precisão o diagnostico da anencefalia, foi conferido ao Conselho Federal de Medicina o dever de definir os critérios para o diagnóstico, o que foi feito através da edição da Resolução n. 1989/2012.
Nos termos da Resolução, o diagnóstico é realizado por meio de exame ultrassonográfico, realizado a partir da 12ª semana de gestação, com laudo assinado por dois médicos capacitados para tal diagnóstico.
A partir desta certeza, caberá à gestante a OPÇÃO de manter a gravidez, ou interrompê-la a qualquer tempo, sendo informada das consequências e riscos de cada ato.
3.1 Do argumento VIDA
Como já exposto, não se cuida aqui de vida própria, mas de vida que sobrevive a custa de outrem. Diferente do aborto, não se cuida de vida viável em formação.
Contrapondo-se ao fundamento esposado alhures, é mister seja levantado que a tutela da vida humana experimenta graus diferenciados conforme as diversas fases do ciclo vital, e desta forma, recebe tratamentos distintos do ordenamento jurídico. É por isso que a lei faz distinção de tipos e penas para as condutas homicidas, infanticidas e abortivas.
Na gestação de feto anencefálico não há vida humana viável em formação. Vale dizer, não há potencial de vida a ser protegido, de modo que falta à hipótese o suporte fático exigido pela norma. Com efeito, apenas o feto com capacidade potencial de ser pessoa pode ser sujeito passivo de aborto. Assim, não há como se imprimir à antecipação do parto nesses casos qualquer repercussão jurídico-penal, de vez que somente a conduta que frustra o surgimento de uma pessoa ou que causa danos à integridade física ou à vida da gestante tipifica o crime de aborto.
Atestando-se que o feto é verdadeiramente inviável, vale dizer, é anencefálico, não se cuida de “vida” própria, mas de um ser que sobrevive à custa do organismo materno, uma vez que a própria lei considera cessada a vida tão logo ocorra a morte encefálica. Assim, a ausência de cérebro pode ser motivo mais que suficiente para a realização da antecipação terapêutica da gestação, que não é baseado em características monstruosas do ser em gestação, e sim em sua completa inviabilidade como pessoa, com vida autônoma fora do útero materno. Não é preciso ser especialista para entender que sem o órgão vital, que comanda todas as funções básicas do corpo humano, estaria comprometida a vida extrauterina.
Consoante expresso na lei brasileira de doação de órgãos (Lei nº 9434/1997), e admitido na maioria dos países do mundo, considera-se a completa extinção de todas as funções cerebrais como o instante da morte do ser humano[15]. Desta forma, é imperiosa aplicação deste conceito ao aborto de anencefálicos, para considerar que, cessada a atividade cerebral, não resta vida ao feto, caracterizando, destarte, um crime impossível.
Como bem leciona o Professor paraibano Genival Velloso França, autoridade nacional em Medicina Legal[16]:
“[...] não se está admitindo por indicação eugênica com o propósito de melhorar a raça, ou evitar que o ser em gestação venha nascer cego, aleijado ou mentalmente débil. Busca-se evitar o nascimento de um feto cientificamente sem vida, inteiramente desprovido de cérebro e incapaz de existir por si só.”
Neste mesmo norte, observa o eminente professor e jurista alemão Claus Roxin, em palestra no Rio de Janeiro[17],
[...]a vida vegetativa, que existe de forma variada também na natureza, não é o suficiente para fazer de algo um homem. A pessoa encefalicamente morta carece, de antemão, de qualquer possibilidade de pensar ou sentir; falta-lhe o centro de integração, que estruturará as diversas funções do corpo numa unidade. O critério da morte encefálica como o momento da morte é, assim, um dado prévio antropológico, e não como que uma construção para possibilitar transplantes de órgãos.
Como bem vaticina Roxin, a concepção da “morte total” não merece guarida, notadamente no campo dos transplantes de órgãos. Ora, considerar uma pessoa viva até que a última célula morra, é inviabilizar o transplante, pois, caso contrário, para retirada dos órgãos, cometer-se-ia homicídio.
Vale reproduzir aqui a lição de Nélson Hungria que, embora escrita décadas antes de ser possível o diagnóstico de anencefalia, aplica-se perfeitamente ao caso:
Não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as consequências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para que se caracterize o aborto) deve ser um produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto (grafia original)[18].
Contrariando este entendimento, o então Subprocurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, lançou parecer na ADPF 54, resumindo esta grande celeuma jurídica, opinando que a anencefalia não se coaduna nas situações de exclusão de ilicitude referidas no art. 128; o feto anencefálico não causa a morte da mãe, se assim fosse, ter-se-ia o aborto terapêutico. Prossegue ainda o referido parecer, espancando a tese de inexistência de vida a ser tutelada pelo Direito Penal, in verbis:
Mas se há normal processo de gestação, vida intra-uterina existe. E nos casos de anencefalia há o normal desenvolvimento físico do feto: formam-se seus olhos; nariz; ouvidos; boca; mãos, enfim o que lhe permite sentir, e também braços; pernas; pés; pulmões; veias; sangue que corre, o coração.
Alude o citado Procurador que a tutela da vida desde a concepção está presente em diplomas internacionais, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (“Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito estará protegido pela lei, no geral, a partir do momento da concepção”), bem como na Convenção sobre os Direitos da Criança, cujo preâmbulo assim dispõe: “A criança, por falta de maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidados especiais, aí incluída a proteção legal, tanto antes como depois do nascimento”.
Desta feita, conclui-se que o bebê anencefálico nascerá podendo viver segundos ou minutos. E, para os que comungam desta tese, vale a lição do Procurador Cláudio Fonteles:
se o tratamento normativo do tema,[...] marcadamente protege a vida, desde a concepção, por certo é inferência lógica, inafastável, que o direito à vida não se pode medir pelo tempo, seja ele qual for, de uma sobrevida visível. Estabeleço, portanto, e em construção estritamente jurídica, que o direito à vida é atemporal, vale dizer, não se avalia pelo tempo de duração da existência humana.
Por fim, suscita o Procurador que o abortamento por anencefalia prejudicaria a aplicabilidade do princípio da solidariedade (art. 3º, inciso I, da Carta Magna), dado que impediria a doação de órgãos do bebê anencefálico a outros bebês que têm grave deficiência em outros órgãos vitais, a qual poderia ser suprida mediante transplante. Ora, não se pode querer justificar a aplicabilidade de uma conduta tortuosa com o fito de alcançar fins altruísticos. Não se podem exigir comportamentos heroicos de seres comuns cujos sentimentos seriam vulnerados em nome de uma remota possibilidade de transplantar-se órgãos. Como suscitado em Kant, o homem, como todo ser racional, existe como fim em si mesmo. Não pode a mulher, se transformar em meio para atingir um outro fim. Além disso, os fetos anencefálicos, costumam possuir órgãos menores que os fetos saudáveis, e o protocolo para doação exige a idade mínima de 7 dias, o que raramente ocorre com fetos anencefálicos.
3.2 Do argumento feminista - utilitarista
Muito se discute acerca do conflito dos princípios envolvidos no aborto em geral. De um lado, estaria a autonomia de vontade da mulher, os seus direitos sexuais, o direito à integridade corporal, e de outro lado, o direito à vida do feto.
Callaham[19] assim vaticina:
o aborto deve ser encarado como um problema que envolve uma multiplicidade de valores que se encontram freqüentemente em conflito aparente, quando não real. Qualquer solução ao problema que tente reduzi-lo à manutenção ou ampliação de um único valor, ou, em outros termos, qualquer solução simplista, unidimensional, é uma solução pobre.
Para os mais conservadores, admitindo que o feto seja pessoa desde o momento da concepção, coloca-se que toda pessoa tem direito à vida, então o feto também o tem. À mulher caberia decidir o que acontece no seu corpo, mas o direito à vida, certamente prevaleceria, por ser mais forte do que aquele. Portanto, o aborto não poderia ser realizado.
Mas será que existe vida a ser protegida? Filósofos como Mary Anne Warren e Michael Tooley sugerem que, para ser pessoa é preciso consciência, sensibilidade, a presença de conceitos de si próprio e conhecimento de si. Além disso, é preciso possuir capacidades desenvolvidas de usar a razão, de comunicar-se e de ocupar-se em atividades motivadas por si. Diante disso, argumentam que os fetos não são pessoas, pois não têm quaisquer desses traços em grau suficientemente significativos, e conclui: “uma criatura tem direito à vida apenas se ela possuir um conceito de si como um sujeito contínuo de experiências [...] dado que um feto não tem um conceito de si como um tal sujeito, o feto não tem direito à vida”[20] .
Para o filósofo australiano Peter Singer[21], neo-utilitarista de grande renome atualmente, o critério da autoconsciência pode ser usado até para justificar o infanticídio ou o aborto do ponto de vista moral, em algumas situações, como é o caso de um feto sem cérebro ou um recém-nascido extremamente debilitado, se considerado que o feto/bebê não tem consciência de si, sentido de futuro ou capacidade para se relacionar com os demais.
Dentre os argumentos liberais melhor elaborados, encontra-se o das feministas. Ele consiste em afirmar que a vida é realmente importante para o ser humano, mas, sem liberdade, perde todo e qualquer significado. Acreditam, então, que deve ser respeitado o direito subjetivo de liberdade de escolha da mulher, cabendo apenas a ela a decisão de levar ou não adiante uma gravidez. Elas consideram que ninguém tem mais direito à vida do que os que a possuem em plenitude, e as mulheres possuem uma estrutura ontológica bem mais completa. Essa questão da liberdade é combatida pelos conservadores ao ressaltarem que liberdade alguma é atingida através do sacrifício de vidas inocentes.
Complementando o entendimento feminista, Peter Singer[22] afirma ser o feto não uma vida humana propriamente dita, mas sim em potencial. Diante disso, diz ele, o argumento que atribui ao feto direitos de um ser humano adulto é equivocado, já que um ser em potencial não é um ser real, e jamais deveria possuir os mesmos direitos. Assim, num dilema ético a respeito da prática ou não do aborto, devem prevalecer os interesses da mulher e não do feto, por serem estes mais rudimentares e menos complexos. Faz ainda uma observação bastante importante: da mesma forma que o feto é ser humano em potencial, o espermatozóide também o é, guardando-se as devidas proporções. Então, para ele, haveria uma grande incoerência se condenar o aborto, mas permitir práticas como o uso de anticoncepcionais, comportamento de abstinência sexual, e até mesmo o celibato.
3.3 Direito à saúde
O direito à saúde é assegurado pela Constituição Federal (art. 6º) cujos limites são definidos no Capítulo Da Ordem Social, onde reza o artigo 196:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Essa é uma projeção difusa, e deve ser interpretado como “o completo bem estar físico, mental e social”, como preceitua a Organização Mundial de Saúde, e não apenas a ausência de doença. Desta forma, não se pode mitigar o ultraje à saúde física e psicológica da mulher ao impor uma gestação inviável e de maior risco. Impedir o aborto neste caso é uma indevida e injustificável restrição ao direito à saúde.
O Comitê de Direitos Humanos da ONU, em decisão histórica proferida em novembro de 2005, no Caso KL contra Peru, entendeu como cruel, desumano e degradante, equiparado a tortura o tratamento conferido à gestante de 17 anos, que diagnosticada com gravidez de anencefálico, optando por realizar a interrupção da gestação, teve negada a autorização pelo diretor do hospital que obrigou a paciente a dar a luz ao feto, muito embora a lei penal peruana permitisse o aborto terapêutico. Como consequência, a gestante de 17 anos foi acometida de depressão profunda, com prejuízos a saúde mental e ao próprio desenvolvimento.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a mulher, ratificada em 1995 pelo Brasil, em seu artigo 4º inclui como direitos humanos das mulheres o direito à integridade física, mental e moral, à liberdade, à dignidade e a não ser submetida a tortura. Define como violência qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
Nesta linha de pensamento, é bastante lúcida a contribuição de Sally Markowitz[23], ao propor dois princípios: o Princípio do Sacrifício Inaceitável e a Cláusula Feminista.
Para o primeiro, quando um grupo social é sistematicamente oprimido por outro, é inaceitável exigir do grupo oprimido que se sacrifique de modo a agravar ou perpetuar esta opressão (genérico).
A Cláusula Feminista (especifico), por seu turno, revela que as mulheres são, enquanto grupo, oprimidas pelos homens, e esta opressão não pode ser reduzida a opressões de outros tipos.
Dito isso, ela conclui que tais princípios justificam sempre a possibilidade de aborto, porque as mulheres vivem em uma sociedade sexista. Que lhes impede de controlar sua vida reprodutiva e ainda, lhes impõe todos os encargos financeiros decorrentes da criação dos filhos. Daí que, uma política que impede as mulheres de fazer aborto serve para perpetuar a opressão das mulheres e, é destarte, inaceitável.
3.4 A dignidade da pessoa humana e a contradição frente o aborto sentimental
A dignidade da pessoa humana, princípio mater da ordem jurídica hodierna, mais que consagrado nas diversas legislações estrangeiras, deve ser o eixo de toda interpretação jurídica, conduzindo desde o elaborador até o aplicador da norma jurídica. É ele o parâmetro para se estabelecer a fundamentalidade de um direito, sendo inerente a todo ser humano, oponível ao Estado e à coletividade. Sua aplicação à hipótese em debate é mais que justificada, dado o desrespeito ao princípio de dignidade da pessoa humana quando da imposição à gestante de manter, em seu útero, durante o tempo exigido para um parto normal, um feto completamente inviável para a vida. A dor e o sofrimento causado à mulher podem ser comparados à tortura psicológica, conduta esta vedada pela Constituição Federal em seu art. 5º, III, e punida pela legislação infraconstitucional, em casos especificados (Lei 9.455/97).
Alçado à categoria de direito fundamental, no art. 5º, II da Constituição quando preleciona “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, o princípio da legalidade é indispensável ao Estado de Direito e assume distintas conotações quando aplicável ao Poder Público e ao particular. Para estes, aplica-se o critério da não contradição à lei, que significa a liberdade do agir, salvo quando a lei proíba. Dito isto, extrai-se a conclusão óbvia de que, aplicável ao caso concreto, a gestante que carrega em seu ventre um feto portador de anencefalia não encontra no ordenamento jurídico pátrio nenhum óbice à antecipação terapêutica do parto, de modo que, a liberdade de escolha vige em toda sua plenitude, e as decisões judiciais contrárias a esse preceito carecem de amparo legal.
Neste diapasão, é mister suscitar a contradição que envolvia a interrupção da gestação de anencefálicos e aquela decorrente de violência sexual, leia-se estupro (art. 128, II). Nestes casos, a lei brasileira chancela a autonomia de vontade da mulher em optar pela continuidade ou não da gravidez. Nestes casos, não se atenta para a viabilidade ou inviabilidade do feto, mas tão somente à liberdade da mãe.
Em se tratando, porém, de feto com absoluta inviabilidade de vida extrauterina, a antecipação desse evento morte em nome da saúde física e psíquica da mulher não se contrapõe ao princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à vida. A questão assume, assim, uma feição contraditória em face da ponderação de valores jurídicos tutelados pelo Direito. O direito à vida extrauterina inviável não deve prevalecer sobre a liberdade e autonomia privada da mulher, caso contrário, estar-se-ia gerando uma grande contradição diante do aborto sentimental.
Nesta senda, bastante elucidativo o posicionamento do Min. Joaquim, Barbosa[24]:
Seria um contra-senso chancelar a liberdade e a autonomia privada da mulher no caso de aborto sentimental, permitido nos casos de gravidez resultante de estupro, em que o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual da mulher, e vedar o direito a essa liberdade nos casos de malformação fetal gravíssima, como a anencefalia, em que não existe um real conflito entre bens jurídicos detentores de idêntico grau de proteção jurídica.
O filósofo norte-americano Dworkin[25] bem retrata tal contradição quando percebe que tanto conservadores como liberais acreditam ser a vida humana sagrada, mas são incoerentes quando afirmam ser o aborto inaceitável, mas acreditam-no justificável em caso de gravidez por estupro, ou até mesmo quando são favoráveis à eutanásia. Se, contudo, a razão pela qual se opõem ao aborto é a sacralidade e o direito absoluto à vida, não se pode sustentar jamais tal posição, isto porque, a posição moral do feto independe de como ele veio a surgir.
O princípio da autonomia da vontade ou liberdade individual da mulher tem prevalecido nas cortes constitucionais e supremas que já se manifestaram sobre o tema. Assim, como já esposado alhures, a Corte Suprema dos Estados Unidos, no famoso leading case Roe v. Wade, de 1973, assim pronunciou-se, através do voto do juiz Harry Blackmun:
Os prejuízos que o Estado causa a uma mulher ao recusar-lhe esta escolha é manifesto. Podem envolver danos específicos e diretos, medicalmente diagnosticáveis até mesmo no início da gravidez. Uma maternidade, ou filhos indesejados, podem conduzir uma mulher a uma situação ou a um futuro de miséria. Danos psicológicos podem ser iminentes. A educação de uma criança pode afetar a saúde mental e psíquica da mãe. Há, também, para todas as pessoas envolvidas, o problema do stress (distress) associado à criança não desejada, bem como o problema de se criar uma criança em uma família desprovida de meios, tanto no plano psicológico como em qualquer outro plano.
O que se deve ter em mente, para que não se torne desarrazoada toda e qualquer manifestação de inviabilidade fetal extrauterina, é o procedimento clínico adequado, de modo a certificar a anencefalia, e impedir que fetos deformados, com doenças mentais ou características monstruosas sejam mortos arbitrariamente.
Não seja a sociedade hipócrita, nem sejam os opositores da liminar ingênuos. A ação e a liminar aqui referidas, em verdade, estão a proteger mulheres desprovidas de recursos financeiros que necessitam ir a juízo, pleiteando alvará autorizador, porque vão utilizar-se dos serviços públicos de saúde. Aquelas que têm condições financeiras sabem qual clínica ou qual médico devem procurar, para a prática interruptiva da gravidez.
O mesmo Dworkin, em sua obra “Freedom´s Law”, sob o epíteto “Conformidade e Coerção”[26], sustenta brilhantemente que:
Proibir o aborto não é a mesma coisa que tomar decisões coercitivas no campo do zoneamento urbano ou da proteção de espécies em perigo. O impacto em certas pessoas (mulheres grávidas) é bem maior. Uma mulher que é obrigada a levar adiante uma gravidez em razão da pressão da sua comunidade não tem mais o controle do seu corpo. Isto é uma escravidão parcial, uma privação de liberdade muito mais séria do que os ônus sofridos pelos cidadãos em razão do poder de polícia do Estado em matéria urbana! Ter um filho pode significar a destruição da vida de uma mulher. (Grifo nosso).
Impor a continuidade dessa gestação fadada ao fracasso é prolongar o sofrimento de um parto de alto risco, além de dilatar despesas ao casal e ao sistema de saúde. O que se propugna é abreviar essa tenebrosa passagem, e permitir que o casal tome, livremente, a decisão que melhor lhe aprouver, exercendo sua autonomia de vontade em plenitude, sem imposições e sem implicações legais.
4. Conclusão
O estudo apresentado neste trabalho tratou da antecipação terapêutica da gestação de fetos anencefálicos em toda sua problemática jurídica, filosófica, moral e ética, buscando, primariamente, trazer à lume uma discussão atual dentro de nossa sociedade e da comunidade acadêmica.
Negar à mulher o direito de praticar o abortamento de um ser que não traz em si capacidade de sobrevida é praticar a maior das injustiças, é ferir o direito fundamental à dignidade, à liberdade, à saúde. O Estado não pode ser insensível, moralista, algoz nem intervencionista a ponto de impor o flagelo da pena, do sofrimento àquela que já convive com tal sentimento desde quando é tomada pela certeza de que não terá, ao cabo dos nove meses, em seus braços, o bebê que tanto esperou.
O julgamento do STF não está admitindo qualquer indicação eugênica, de cunho nazista, com o propósito de melhorar a raça ou evitar que o ser em gestação venha a nascer cego, aleijado ou mentalmente débil. Busca-se proteger uma opção que não pode ser objeto de punição pelo Estado.
Não se podem tolerar contradições, como a que permite o abortamento de um feto com vida, viável, mas decorrente de um estupro, aplicando-se, analogicamente, uma pena de morte, que não é aplicada no país ao pior dos criminosos, a um inocente, enquanto àquele que, já desprovido de vida, insiste-se em mantê-lo até a morte. A posição moral do feto independe de como ele veio a surgir.
A partir desta tomada de posição na ordem normativa nacional – cujo julgamento demorou 8 anos –é possível fornecer uma resposta a todas as gestantes, de modo que a par de todo o sofrimento pessoal, físico e psicológico, não tenha ela, ademais, a preocupação com a possível criminalidade de sua conduta.
Não se pode permitir que o anacronismo da legislação penal impeça de fazer valer a real intenção da norma, tutelando os direitos fundamentais, para privilegiar o positivismo exacerbado em detrimento da interpretação evolutiva.
Assim, é de vital importância estabelecerem-se as bases para uma mudança de consciência em defesa da vida, sim, mas de uma vida viável e plena, de modo a garantir a liberdade, a incolumidade física e moral da mulher, assegurando-lhe a faculdade de dispor de seu corpo.
A polêmica existe e sempre suscitará discussões calorosas. Contudo, deve-se sempre distinguir a posição de um Estado laico em face de todas as concepções religiosas que cercam este debate. A secularização que conduziu a formação dos Estados não permite que as convicções de um grupo sejam impostas a todos. Com a permissão, cada um pode agir segundo suas crenças, por outro lado, com a proibição, a fé de alguns é imposta a todos.
REFERÊNCIAS
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DWYER, Susan. Entendendo o problema do aborto. Filosofia Política: nova série. Porto Alegre:1998, p. 148.
FRANÇA, Genival Veloso. Aborto eugênico- considerações ético-legais. In: França, Genival Veloso. Direito médico, São Paulo: Fundo Editorial Byk, 7 ed., 2001.
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MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1999.
PRADO, Luis Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Parte especial – arts. 121 a 183. Volume 2. 4. ed. Revista dos Tribunais. 2005.
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ROXIN, Claus. A proteção da vida humana através do Direito Penal. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 14 de março de 2008.
Richard E. Behman, Robert M. Kiegman e Hal B. Jenson, Nelson. Tratado de Pediatria, Ed. Guanabara Koogan, 2002, p. 1777.
[1] ALMEIDA, Silmara J.A. Chinelato. Tutela Civil do Nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 17.
[2] MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado, 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.845.
[3]DINIZ, Débora. Bioética e aborto. Disponível em <http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/bioetica/ParteIIIaborto.htm>. Acesso em 20 de julho de 2013. Doutora em antropologia e professora da UnB, Débora Diniz é autora de numerosos títulos sobre Bioética e uma das vozes mais expressivas na luta em favor do aborto de anencéfalos.
[4] Richard E. Behman, Robert M. Kiegman e Hal B. Jenson, Nelson.Tratado de Pediatria, Ed. Guanabara Koogan, 2002, p. 1777.
[5] Em <http://www.portalmedico.org.br/pareceres/CRMSP/pareceres/1998/8905_1998.htm>, Acesso em 25 de novembro de 2005. É interessante verificar que, em conclusão à consulta em questão ( formulada por gestante que queria levar até o fim a gestação de feto anencefálico) , o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo esclareceu ser possível, em tese, o transplante dos respectivos órgãos, após o seu nascimento e a sua morte, para outro recém nascido.
[6] Débora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro. Aborto por anomalia fetal: Brasília: Letras Livres, 2003, p.102.
[7] Informações disponíveis no site da FEBRASGO – Federação Brasileira de Finecologia e Obstetrícia. Em <http://www.febrasgo.org.br>. Acesso em 18 de junho de 2013.
[8] DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. p. 283.
[9] Apelação Nº 70011918026.
[10] Esse instrumento jurídico previsto na Constituição Federal no art. 102, §1º e art. 1º da Lei nº. 9882/99 visa evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. In casu, invoca-se como preceito fundamental violado o princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, IV da CF), a cláusula geral da liberdade, extraída do princípio da legalidade (art. 5º,II da CF), e o direito à saúde (art. 6º e 196, da CF).
[11] BARROSO, Luís Roberto. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 [Petição inicial]. Disponível em <http:// www.stf.gov.br> . Acesso em: 12 junho de 2013.
[12] Id Ibdem. Nota 13.
[13] A petição inicial em questão, neste tópico, faz referência a Richard E. Behman, Robert M. Kiegman e Hal B. Jenson, Nelson/Tratado de Pediatria, Ed. Guanabara Koogan, 2002, p. 1777.
[14] Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em 12 de junho de 2013.
[15] Art. 3º. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina
[16] FRANÇA, Genival Veloso. Aborto eugênico- considerações ético-legais. In: França, Genival Veloso. Direito médico, São Paulo: Fundo Editorial Byk, 7 ed., 2001.
[17] ROXIN, Claus. A proteção da vida humana através do Direito Penal. Conferência realizada no dia 07 de março de 2002, no encerramento do Congresso de Direito Penal em Homenagem a Claus Roxin, Rio de Janeiro. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 14 de abril de 2013.
[18] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol V, 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p.297-298.
[19] CALLAHAM apud ROCHA, Fernando José. O aborto, o Estado e as políticas populacionais. Filosofia Política. Porto Alegre: L&PM, 1998, p.153.
[20] Mary Anne Warren e Michael Tooley apud DWYER, Susan. Entendendo o problema do aborto. Filosofia Política: nova série. Porto Alegre:1998, p. 127.
[21] SINGER, Peter. Ética Prática. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 29.
[22] Id ibdem. p. 70.
[23] MARKOWITZ, Sally apud DWYER, Susan. Entendendo o problema do aborto. Filosofia Política: nova série. Porto Alegre:1998, p. 148.
[24] HC 84.025/RJ. Data: 04.03.2004. Rel. Min. Joaquim, Barbosa. Disponível em <http://www.stf.gov.br>
[25] DWORKIN, apud DWYER, Susan. op.cit., p. 142. Nota 23.
[26] DWORKING apud Min. Joaquim Barbosa, no HC 84.025/RJ STF.
Procuradora Federal da PGF/AGU. Mestranda do Programa de Direitos Humanos da UFPB. Pós-Graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Gama Filho. Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Camilla Guedes Pereira Pitanga. Quando vida e morte convivem: considerações éticas e jurídicas sobre a gestação de fetos anencefálicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jul 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40142/quando-vida-e-morte-convivem-consideracoes-eticas-e-juridicas-sobre-a-gestacao-de-fetos-anencefalicos. Acesso em: 22 nov 2024.
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