Resumo: O presente artigo tem por finalidade abordar o conflito de interesses fundamentais quando há sobreposição de unidade de conservação de proteção integral em território quilombola.
Palavras-chaves: Constitucional. Meio Ambiente. Unidades de Conservação. Proteção Integral. Territórios Quilombolas. Conflito de direitos fundamentais.
INTRODUÇÃO.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, estabeleceu-se, no art. 68 do ADCT, o direito de propriedade aos territórios tradicionais pertencentes às comunidades quilombolas: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”
Com a edição do Decreto nº 4.887/2003, firmou-se, definitivamente, a competência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA para a “identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (Art. 3º).
É durante esse procedimento de identificação que surgem os maiores conflitos de interesses, seja com interesses de particulares seja com outros interesses públicos, como é o caso das unidades de conservação.
O Decreto estabelece:
Art. 11. Quando as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos estiverem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às áreas de segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a Fundação Cultural Palmares tomarão as medidas cabíveis visando garantir a sustentabilidade destas comunidades, conciliando o interesse do Estado.
Nota-se que é imperioso “garantir a sustentabilidade destas comunidades”. Em que pese existir clareza no dispositivo citado, as comunidades quilombolas vem encontrando há vários anos dificuldades para obterem a titulação do seu território (que não é o mesmo que terra, imóvel, lote, etc).
É comum os órgãos ambientais negarem a conciliação dos interesses das comunidades com os interesses de preservação do meio ambiente, sob o argumento de que a presença de seres humanos na área implica em degradação ambiental.
É essa problemática que pretendemos abordar, sugerindo, ao final, solução para o conflito de interesses.
1 TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS: definição e necessidade de preservação como direito fundamental.
O Decreto nº 4.887/2003, no seu art. 2º, § 2º, estabelece que “São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.”
A identificação desses territórios é sempre precedida de estudos multidisciplinares e de reuniões com a comunidade, resultando em uma complexa análise técnica e científica, com informações antropológicas, cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas e históricas.
Daí já se percebe que não é qualquer pedaço de terra que se configura território tradicional. Naquele “chão” deve estar a história, a memória e as raízes de um povo.
Em razão disto, é que resta evidente a intenção dos defensores da causa quilombola em não fazer prosperar a tese defendida por várias entidades governamentais e não governamentais de que só se deve titular a área efetivamente ocupada hoje pelas comunidades quilombolas, ou seja, que a interpretação a ser dada ao art. 68 do ADCT deve ser a literal. [1] Essa teoria configura retrocesso.
E essa preocupação é porque nem todas as comunidades ocupam hoje seus territórios integralmente.
Como seria possível preservar a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), como seria possível garantir o direito de propriedade e de posse das terras que não estejam exclusivamente ocupadas atualmente pelas comunidades, mas que, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência (art. 14, 1, da Convenção nº 169 da OIT, a qual deve ser plenamente observada pelo Estado brasileiro, como determina o Decreto nº 5.051), se prevalecesse a interpretação literal do art. 68 do ADCT?
Assim, o território de uma comunidade quilombola não é uma simples área geográfica, um simples espaço que a comunidade ocupa hoje, ou que ocupava na data da promulgação da CF/88, ou na abolição da escravatura.
O território é muito mais que um espaço físico, é um espaço de identidade histórica e cultural.
Além disso, considera-se território quilombola as áreas necessárias à manutenção e reprodução da comunidade, ou seja, aquelas necessárias ao desenvolvimento físico e cultural do grupo étnico-racial.
O art. 5º, inciso XXII, da CF/88 garante o direito de propriedade. Nesse mesmo dispositivo (onde estão as garantias e direitos fundamentais), há o seguinte preceito: §1º “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” Sendo assim, o direito à titulação dos territórios quilombolas é direito fundamental.
As comunidades remanescentes de quilombos fazem parte do patrimônio cultural brasileiro (art. 216, CF/88). Elas retratam e preservam a cultura afro-brasileira, remanescente do povo africano que colonizou este País, e, portanto, devem ser protegidas pelo Estado, de acordo com o art. 215, § 1º, da CF/88.
O art. 216, § 1º, da CF estabelece que o Poder Público deverá promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro por meio de todas as formas de acautelamento e preservação existentes.
De acordo com o então Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Fonteles, no Parecer nº 3.333/CF lançado nos autos da ADI nº 3.239-6/600-DF[2]:
Mister se faz ressaltar, antes de tudo, que o art. 68 do ADCT requer cuidadosa interpretação, de modo a ampliar ao máximo o seu âmbito normativo. Isso porque trata a disposição constitucional de verdadeiro direito fundamental, consubstanciado no direito subjetivo das comunidades remanescentes de quilombos a uma prestação positiva por parte do Estado. Assim, deve-se reconhecer que o art. 68 do ADCT abriga uma norma jusfundamental; sua interpretação deve emprestar-lhe a máxima eficiência. (grifo nosso)
2 PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: DIREITO FUNDAMENTAL.
O direito ambiental é, também, considerado direito humano fundamental. Segundo Paulo de Bessa Antunes[3]:
Assim é porque o meio ambeinte é considerado um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Isto faz com que o meio ambiente e os bens ambientais integrem-se à categoria jurídica da res comune omnium[4].
O art. 225 da Constituição Federal estabelece:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; (grifo nosso)
Para regulamentar tal dispositivo constitucional, editou-se a Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que criou o SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA – SNUC.
Tal Sistema é constituído por duas espécies de unidades de conservação: Unidades de Proteção Integral e Unidades de Uso Sustentável. A primeira não permite o uso direto dos recursos naturais, ou seja, não se admite a coleta e o uso, seja comercial ou não, dos recursos naturais (art. 7º, §1º, Lei do SNUC). Já a segunda, visa compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais (art. 7º, §2º, Lei do SNUC).
Tem-se forte conflito quando unidades de conservação sobrepostas aos territórios de comunidades quilombolas são classificadas como Unidades de Proteção Integral, não admitindo a presença dessas comunidades, muito menos a utilização dos seus recursos naturais.
O art. 42 da referira Lei estabelece:
Art. 42. As populações tradicionais residentes em unidades de conservação nas quais sua permanência não seja permitida serão indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e devidamente realocadas pelo Poder Público, em local e condições acordados entre as partes.(Regulamento)
§ 1o O Poder Público, por meio do órgão competente, priorizará o reassentamento das populações tradicionais a serem realocadas.
§ 2o Até que seja possível efetuar o reassentamento de que trata este artigo, serão estabelecidas normas e ações específicas destinadas a compatibilizar a presença das populações tradicionais residentes com os objetivos da unidade, sem prejuízo dos modos de vida, das fontes de subsistência e dos locais de moradia destas populações, assegurando-se a sua participação na elaboração das referidas normas e ações.
§ 3o Na hipótese prevista no § 2o, as normas regulando o prazo de permanência e suas condições serão estabelecidas em regulamento.
Trata-se de medida, entendemos, desproporcional, como adiante discorreremos.
3 CONFLITO ENTRE DOIS DIREITOS FUNDAMENTAIS: PRINCÍPIO DA CONCORDÂNCIA PRÁTICA OU DA HARMONIZAÇÃO.
Quando se tem um conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, cabe ao intérprete da norma se utilizar do chamado princípio da concordância prática ou da harmonização, que, segundo Alexandre de Moraes[5], consiste em:
...coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua. (grifo nosso)
No presente caso, tem-se um conflito entre dois direitos fundamentais: regularização dos territórios quilombolas x preservação do meio ambiente, através da criação de unidades de conservação de proteção integral.
A solução trazida pela Lei do SNUC, no seu art. 42, ou seja, o reassentamento dessas comunidades, contraria flagrantemente o princípio da harmonização.
Um direito não pode, nesses casos, prevalecer integralmente sobre o outro. Há de se encontrar uma solução mais harmônica e razoável para o caso.
É de extrema relevância destacar que tal alternativa contraria os próprios objetivos e diretrizes da Lei do SNUC, senão vejamos:
Art. 4o O SNUC tem os seguintes objetivos:
(...)
XIII - proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente.
Art. 5o O SNUC será regido por diretrizes que:
(...)
III - assegurem a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unidades de conservação;
(...)
V - incentivem as populações locais e as organizações privadas a estabelecerem e administrarem unidades de conservação dentro do sistema nacional;
(...)
VIII - assegurem que o processo de criação e a gestão das unidades de conservação sejam feitos de forma integrada com as políticas de administração das terras e águas circundantes, considerando as condições e necessidades sociais e econômicas locais;
IX - considerem as condições e necessidades das populações locais no desenvolvimento e adaptação de métodos e técnicas de uso sustentável dos recursos naturais;
X - garantam às populações tradicionais cuja subsistência dependa da utilização de recursos naturais existentes no interior das unidades de conservação meios de subsistência alternativos ou a justa indenização pelos recursos perdidos;
(...)
Ora, sabemos que a ocupação dos territórios pertencentes às comunidades quilombolas remonta há vários séculos. É quase certo que, no momento em que as unidades de conservação foram criadas, as comunidades já ocupavam o território (aqui me refiro ao conceito amplo de ocupação). Então, por que a existência de tais populações não foi considerada pelo órgão ambiental?
Certamente, se tivessem sido enxergadas, as unidades de conservação criadas não seriam hoje de proteção integral, mas de uso sustentável, garantindo àquelas comunidades o direito de ali permanecerem, de utilizar os seus recursos naturais e preservar a sua identidade com o território que ocupam.
É inconcebível que se adote medida tão drástica como retirar o direito das comunidades quilombolas de viverem em seus territórios e nele buscarem o seu sustento, o seu desenvolvimento físico, social e cultural.
Valho-me dos ensinamentos da Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Dra. Juliana Santilli, renomada jurista, que atuou nas áreas de meio ambiente e patrimônio cultural, matérias das quais estamos tratando.
Segundo a autora:
...a territorialidade tem sido considerada por estudos antropológicos como fator fundamental na identificação das populações tradicionais.
(...)
Little descreve como elementos fundamentais dos territórios das populações tradicionais os vínculos sociais, simbólicos e rituais que elas mantém com seus respectivos ambientes biofísicos e propõe a construção do conceito de ‘povos tradicionais’ valendo-se de três elementos: regime de propriedade comum, sentido de pertencimento a um lugar específico e profundidade histórica da ocupação guardada na memória coletiva. (grifo nosso)
O território tem significado bastante especial para as comunidades tradicionais, especialmente para as comunidades quilombolas e indígenas. O espaço físico onde vivem e desenvolvem seus costumes e suas manifestações culturais tem forte influência para a identidade do grupo.
Não se pode retirar-lhes o espaço físico tradicional e colocá-los em outro lugar qualquer, pois este novo ambiente não terá a mesma expressividade para aquele povo; dele não se ressalta história nem memória.
Carlos Ari Sundfeld, na renomada obra “Comunidades quilombolas: direito à terra.”[6], ensina que:
A territorialidade é um fator fundamental na identificação dos grupos tradicionais, entre os quais se inserem os quilombolas. Tal aspecto desvenda a maneira como cada grupo molda o espaço em que vive, e que se difere das normas tradicionais de apropriação dos recursos da natureza.
O conceito de território para essas comunidades é bem mais amplo que o tradicional.
O Decreto nº 4.887/2003, no seu art. 2º, § 2º, estabelece como parâmetro que “São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.”
Portanto, o art. 68 do ADCT garantiu às comunidades remanescentes de quilombos o direito às terras por eles ocupadas mais àquelas necessárias ao desenvolvimento físico e cultural do grupo étnico-racial.
É preciso dar máxima efetividade ao art. 68 do ADCT, que garantiu às comunidades remanescentes de quilombos o direito às terras por eles ocupadas e àquelas necessárias ao desenvolvimento físico e cultural do grupo étnico-racial. O dispositivo constitucional veio reparar uma injustiça social histórica para com a população negra, que há muito tempo clama por reconhecimento e respeito.
Diante do exposto, cremos que a solução trazida pela Lei do SNUC não é a mais acertada.
4 VEDAÇÃO AO RETROCESSO.
O Brasil tem observado a premissa de que é preciso que haja garantia de uma certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica. Não se pode alterar normas positivadas e direitos conquistados, sobretudo, para retroceder.
As normas que tratam do direito das comunidades remanescentes de quilombos, normas constitucionais e infraconstitucionais internas, devem ser observadas em sua plenitude. A adoção de medidas (administrativas e/ou legislativas) retrocessivas, que restrinjam ou retirem direitos já conquistados pelas comunidades quilombolas atenta contra as normas aqui mencionadas, bem como contra o princípio da proibição do retrocesso.
Sobre tal princípio aduz J.J. Gomes Canotilho[7]:
...a idéia aqui expressa também tem sido designada como proibição de contra-revolução social ou da evolução reacionária. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo.
(...)
O princípio da proibição do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (...) deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa ´anulação` pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado. (grifo nosso)
A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA), ratificada pelo Brasil, prevê o princípio do não-retrocesso social no seu art. 26:
Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo
Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.
Não se admite que as conquistas já alcançadas por essas comunidades tradicionais tribais, a duras penas, sejam mitigadas e/ou sacrificadas. O ordenamento jurídico brasileiro não comporta retrocesso. A tendência, como vêm ocorrendo em outros ramos do direito, é progredir, é aprimorar os conceitos e normas existentes, de modo a conferir maior efetividade aos direitos e garantias fundamentais.
É imperioso destacar os ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet[8]:
Se tomarmos a idéia da proibição de retrocesso em um sentido amplo, constata-se, desde logo, que a nossa ordem jurídica, ainda que não sob este rótulo, também já consagrou a noção, pelo menos em algumas de suas dimensões. Com efeito, desde logo se verifica que a já mencionada garantia constitucional dos direitos adquiridos, dos atos jurídicos perfeitos e da coisa julgada, assim como as demais limitações constitucionais de atos retroativos ou mesmo as garantias contra restrições legislativas dos direitos fundamentais, constituem uma decisão clara do Constituinte em prol de uma vedação do retrocesso pelo menos nestas hipóteses.
(...)
No âmbito da doutrina constitucional portuguesa, que tem exercido significativa influência sobre o nosso próprio pensamento jurídico, o que se percebe é que, de modo geral, os defensores de uma proibição de retrocesso, dentre os quais merece destaque o nome do conceituado publicista Gomes Canotilho, sustentam que após sua concretização em nível infraconstitucional, os direitos fundamentais sociais assumem, simultaneamente, a condição de direitos subjetivos a determinadas prestações estatais e de uma garantia institucional, de tal sorte que não se encontram mais na (plena) esfera de disponibilidade do legislador, no sentido de que os direitos adquiridos não mais podem ser reduzidos ou suprimidos, sob pena de flagrante infração do princípio da proteção da confiança (por sua vez, diretamente deduzido do princípio do Estado de Direito), que, de sua parte, implica a inconstitucionalidade de todas as medidas que inequivocamente venham a ameaçar o padrão de prestações já alcançado. Esta proibição de retrocesso, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, pode ser considerada uma das conseqüências da perspectiva jurídico-subjetiva dos direitos fundamentais sociais na sua dimensão prestacional, que, neste contexto, assumem a condição de verdadeiros direitos de defesa contra medidas de cunho retrocessivo, que tenham por objeto a sua destruição ou redução.
(...)
Sem que se pretenda aqui esgotar nem aprofundar isoladamente todo o leque de razões passíveis de serem referidas, verifica-se que, no âmbito do direito constitucional brasileiro, o princípio da proibição de retrocesso, como já sinalizado, decorre implicitamente do sistema constitucional, designadamente dos seguintes princípios e argumentos de matriz jurídico-constitucional:
a) O princípio do Estado democrático e social de Direito, que impõe um patamar mínimo de segurança jurídica, o qual necessariamente abrange a proteção da confiança e a manutenção de um nível mínimo de segurança contra medidas retroativas e, pelo menos em certa medida, atos de cunho retrocessivo de um modo geral;
b) O princípio da dignidade da pessoa humana que, exigindo a satisfação – por meio de prestações positivas (e, portanto, de direitos fundamentais sociais) – de uma existência condigna para todos, tem como efeito, na sua perspectiva negativa, a inviabilidade de medidas que fiquem aquém deste patamar;
c) No princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais contido no artigo 5º, parágrafo 1º, e que abrange também a maximização da proteção dos direitos fundamentais. Com efeito, a indispensável otimização da eficácia e efetividade do direito à segurança jurídica (e, portanto, sempre também do princípio da segurança jurídica) reclama que se dê ao mesmo a maior proteção possível, o que, por seu turno, exige uma proteção também contra medidas de caráter retrocessivo, inclusive na acepção aqui desenvolvida;
d) As manifestações específicas e expressamente previstas na Constituição, no que diz com a proteção contra medidas de cunho retroativo (na qual se enquadra a proteção dos direitos adquiridos, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito) não dão conta do universo de situações que integram a noção mais ampla de segurança jurídica, que, de resto, encontra fundamento direto no artigo 5º, caput, da nossa Lei Fundamental e no princípio do Estado social e democrático de Direito;
e) O princípio da proteção da confiança, na condição de elemento nuclear do Estado de Direito (além da sua íntima conexão com a própria segurança jurídica) impõe ao poder público – inclusive (mas não exclusivamente) como exigência da boa-fé nas relações com os particulares – o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos em relação a uma certa estabilidade e continuidade da ordem jurídica como um todo e das relações jurídicas especificamente consideradas;
f) Os órgãos estatais, especialmente como corolário da segurança jurídica e proteção da confiança, encontram-se vinculados não apenas às imposições constitucionais no âmbito da sua concretização no plano infraconstitucional, mas estão sujeitos a uma certa auto-vinculação em relação aos atos anteriores. Esta, por sua vez, alcança tanto o legislador, quando os atos da administração e, em certa medida, dos órgãos jurisdicionais, aspecto que, todavia, carece de maior desenvolvimento do que o permitido pelos limites do presente estudo;
g) Negar reconhecimento ao princípio da proibição de retrocesso significaria, em última análise, admitir que os órgãos legislativos (assim como o poder público de modo geral), a despeito de estarem inquestionavelmente vinculados aos direitos fundamentais e às normas constitucionais em geral, dispõem do poder de tomar livremente suas decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte. Com efeito, como bem lembra Luís Roberto Barroso, mediante o reconhecimento de uma proibição de retrocesso está a se impedir a frustração da efetividade constitucional, já que, na hipótese de o legislador revogar o ato que deu concretude a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito, estaria acarretando um retorno à situação de omissão (inconstitucional, como poderíamos acrescentar) anterior. Precisamente neste contexto, insere-se a também argumentação deduzida pelos votos condutores (especialmente do então Conselheiro Vital Moreira) do já referido leading case do Tribunal Constitucional de Portugal, versando sobre o Serviço Nacional de Saúde, sustentando que “as tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá-los, obrigam também a não aboli-los uma vez criados”, aduzindo que “após ter emanado uma lei requerida pela Constituição para realizar um direito fundamental, é interdito ao legislador revogar esta lei, repondo o estado de coisas anterior. A instituição, serviço ou instituto jurídico por ela criados passam a ter a sua existência constitucionalmente garantida. Uma nova lei pode vir a alterá-los ou reformá-los nos limites constitucionalmente admitidos (grifo nosso); mas não pode vir a extingui-los ou revogá-los.”[9] (grifo nosso)
Por fim, deve-se registrar que qualquer discussão acerca da necessidade de alterar a legislação em vigor ou sobre a realização de ato administrativo que influencie no direito das comunidades remanescentes de quilombos deve ser feita com a participação das mesmas, como determina o art. 6º, 1, ‘a’ e ‘b’, da Convenção 169, da OIT.
5 CONCLUSÃO E PROPOSTA DE SOLUÇÃO DO CONFLITO.
Já manifestamos que a hipótese de reassentamento das comunidades quilombolas dos territórios a elas pertencentes, por força do art. 68 do ADCT, não pode prevalecer.
Não se pode sacrificar as comunidades quilombolas, retirando-lhes os territórios de direito, para que as unidades de conservação, constituídas sem a devida observância da prévia existência dessas comunidades naquele local, permaneçam incólumes.
Importante explicitar, também, que a existência dos recursos naturais nesses locais se deve, especialmente, às práticas preservacionistas das próprias comunidades quilombolas. Sem elas, talvez nem houvesse o que preservar!
Assim, propomos que as Unidades de Conservação tenham os seus limites redefinidos, de modo a preservar o território das comunidades.
Outra alternativa é que as Unidades de Conservação de Proteção Integral sejam transformadas em Unidades de Uso Sustentável, nos modos Reserva Extrativista ou Reserva de Desenvolvimento Sustentável, as quais permitem a presença da comunidades tradicionais no local, inclusive com o uso direto dos recursos naturais.
O que não podemos admitir é a extinção do território, pois o art. 68 do ADCT veio reparar uma injustiça social histórica para com a população negra, que há muito tempo clama por reconhecimento e respeito.
[1] Importante registrar que a interpretação literal, embora necessária, é considerada a mais rudimentar.
[2] Tramita perante o Supremo Tribunal Federal – STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239-6/600-DF, intentada pelo então Partido da Frente Liberal – PFL (atual Democratas – DEM), requerendo a declaração de inconstitucionalidade do Decreto n° 4.887/2003. O STF não concedeu medida liminar para suspender os efeitos da norma, razão pela qual, enquanto não for julgado o mérito da ação, o Decreto é constitucional.
[3] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 6a. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 23.
[4] Coisa comum a todos.
[5] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20a. ed. São Paulo, 2006, p. 28.
[6] SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Comunidades quilombolas: direito à terra. Brasília: Fundação Cultural Palmares, Ministério da Cultura, Editorial Abaré, 2002, p. 78-79.
[7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra, 1998, p.221.
[8] Doutor em Direito (Universidade de Munique, Alemanha). Pós-Doutoramento junto ao Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional (Munique) e Universidade de Munique, Alemanha) Professor de Direito Constitucional na Faculdade e no Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da PUC/RS e na Escola Superior da Magistratura do RS. Juiz de Direito no RS.
[9] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia do Direito Fundamental à Segurança Jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. In: < http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=54> Acesso em 07/08/07.
Procuradora Federal. Chefe da Seção de Cobrança e Recuperação de Créditos da Procuradoria Seccional Federal em Mossoró/RN, órgão da Advocacia-Geral da União. Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Pós-graduada em Direito Processual Penal pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HENRIQUE, Anne Cristiny dos Reis. Território Quilombola x unidade de conservação de proteção integral: solução de conflito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jul 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40221/territorio-quilombola-x-unidade-de-conservacao-de-protecao-integral-solucao-de-conflito. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: gabriel de moraes sousa
Por: Thaina Santos de Jesus
Por: Magalice Cruz de Oliveira
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