1) Introdução
No Brasil tem se tornado comum o cidadão recorrer ao Poder Judiciário no intuito de ser deferido pleito no sentido de compelir o fornecimento pelo Estado de medicamentos para tratamento de doenças.
Tal prática tem sido objeto de acalorado debate sobre os limites das decisões judiciais e suas conseqüências no Sistema de Saúde estatal, sobretudo na implicação que a medida judicial traz nos recursos financeiros do governo para cobertura daqueles medicamentos e tratamentos tradicionais para toda a população.
Em sua maioria, as ações judiciais versam sobre medicamentos relacionados a doenças físicas complexas ou cujo valor para custeio é alto. Mas apenas as doenças físicas podem ser objeto de fornecimento de medicamentos pelo Estado?
É cediço que existe uma gama enorme de doenças psíquicas que para o seu tratamento necessitam de medicamentos caros e de uso continuado. Será que esses medicamentos também podem ser custeados pelo Estado?
2) Direito à saúde: direito individual e direito difuso
A problemática relacionada ao fornecimento de medicamento por parte do Estado diz respeito a averiguação de qual interesse deve prevalecer quando se encontra em rota de colisão o interesse público relacionado a atuação estatal, consubstanciado nos recursos financeiros que o tesouro público tem para dar cumprimento as políticas públicas e seu programa de governo e o direito à saúde no plano individual, consubstanciado na necessidade de determinada pessoa de realizar tratamento médico específico e adquirir medicamento relacionado a determinada doença.
O direito à saúde, antes de ser um direito individual, encontra-se inserto na Constituição Federal como direito difuso, que diz respeito a toda coletividade, relaciona-se diretamente ao direito à vida, sendo obrigação do Estado a sua implementação, inclusive sob a forma de fornecimento de medicamento a pessoa determinada, que não pode ser renegado sob a argumentação de ausência de recursos financeiros.
Assim, vislumbra-se que o direito à saúde comporta duas vertentes, que se complementam: o direito difuso, que assiste a todas as pessoas (art. 196 e 197 da CF/88), e o direito individual, fundamentado no direito à vida e a ter uma vida digna (art. 1º, III da CF/88).
Esse tem sido o entendimento amplamente majoritário nos Tribunais brasileiros, que tem rechaçado os argumentos levantados pelos entes estatais para se escusar do cumprimento do mandamento constitucional de proteção à saúde.
3) Fornecimento de medicamento pelo Estado
De certo, parece ainda existir uma certa dificuldade no entendimento do Poder Público de que o direito à saúde não se trata de uma benesse concedida pelo Estado aos indivíduos, ou de uma atitude relacionado a um ato piedade ou bondade estatal.
Trata-se antes de tudo de um dever constitucional, relacionado diretamente aos ditames constitucionais tomados como fundamento da República Brasileira, portanto não cabe ao Estado um juízo de escolha ou faculdade acerca da sua implementação.
Não raras às vezes, a escusa estatal se baseia na ausência de recursos financeiros para implementação de tal atividade, e porque não dizer do fato de que o Estado procedendo com o fornecimento de medicamento ou custeio de tratamento de determinado individuo estaria por prejudicar todo o acesso da população aos programas básicos de saúde.
No entanto, a legislador constituinte ao erigir a proteção à saúde a valor fundamental, demonstrou a necessidade do Estado em reservar recursos financeiros de modo a implementar as políticas publicas de proteção à saúde em suas duas vertentes: o direito difuso e o direito individual, consubstanciado no caso ao fornecimento de medicamentos.
Por certo, a questão não é de fácil solução, é cediço a dificuldade dos entes estatais com relação a escassez dos recursos financeiros, e mais certo ainda é que cada individuo anseia por ter seu direito respeitado e garantido, sobretudo através de uma medida positiva do Estado, e torna-se impossível a plena realização de todos esses anseios e necessidades.
4) Fornecimento de medicamento para doenças psíquicas
A questão trazida a exame no presente artigo reveste-se de peculiaridade. Na grande maioria das ações judiciais verifica-se que o pleito do autor relaciona-se a doenças de ordem física, porque não dizer, muitas vezes a doenças epidemiológicas, e aquelas de grande repercussão social.
No entanto, pode se vislumbrar uma alteração na mentalidade da própria população brasileira, que não se inibe em procurar o Poder Judiciário para garantia de seu direito a vida digna em todos os aspectos.
Denota-se a tomada de consciência da população de que o direito à saúde é dever do Estado, trasmutando-se de um direito individual para um direito difuso, que se consubstancia sob a obrigação do ente estatal em garantir sua efetivação nos múltiplos aspectos, tanto a saúde física, quanto a psíquica.
Os transtornos psíquicos, ainda imbuídos de grande carga de preconceito, tem sido objeto de políticas públicas de tratamento por parte do Estado. Entretanto, dada as prioridades nos planos governamentais, as doenças de ordem psíquica não são contempladas por uma ampla cobertura dos planos de governo.
É notório que existem ações estatais no sentido de tratamento de tais doenças, mas tal fato não tem o condão de afastar o fornecimento de medicamentos para tratamento de transtornos de ordem psíquica específicos para determinada doença.
A garantia constitucional não faz distinção entre doenças físicas ou psíquicas, ambas as espécies de doença merecem a proteção constitucional, portanto no mesmo sentido que tem o Estado a obrigação de fornecimento de medicamento para doenças físicas, tem também a mesma obrigação com relação a transtornos psíquicos.
Não há como mutilar a Constituição, e dar aplicação restritiva a norma tão clara e direta com a que se relaciona com a proteção à saúde, agir de outra forma é deixar de dar aplicação ao próprio texto constitucional, que tem como um de seus fundamentos basilares a dignidade da pessoa humana.
Referências
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2ª ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Jurídico Atlas, 2006.
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