1 – INTRODUÇÃO
No presente texto pretende-se, a partir de uma definição de corrupção, como fenômeno mundial mas endêmica no Brasil, identificar como escritores do século XIX e XX percebiam as características da sociedade, em formação, brasileira, seja em traços culturais ou antropológicos de nossa descoberta e colonização, como elementos criadores ou facilitadores de uma não repulsa do brasileiro à prevalência de interesses privados sobre os públicos, apontando, ou não, algumas dessas características como causa da disseminação dos episódios de malversação do erário a configurar, pois, a endêmica falha.
Desenvolveremos, assim, o conceito de corrupção, antes passando por sua percepção geral, também histórica, identificando alguns dos ônus de sua existência.
Após, e a partir de sintética resenha de autores do pensamento social do século XIX e XX, destacaremos os elementos que para tais seriam justificadores de nossas características de formação da sociedade na gestão do Estado e os relacionaremos com percepções mais atuais do problema da corrupção no Brasil para verificar se até hoje, em pleno século XXI, podemos aceitar o que aqueles Autores identificaram como características do povo brasileiro como causa de nosso insucesso axiológico, ou seja, pelo notório problema de valor do brasileiro em especial no trato da coisa pública.
Essa análise que se pretende
A suposta falha moral vem do homem brasileiro, de maneira geral, pelas cargas genéticas de nossos formadores (índios, negros e europeus, especialmente ibéricos)? Da forma de nossa colonização, determinada pela península ibérica? Ou de uma falta de reação, ou fatalismo em que colocamos a culpa numa atávica reminiscência valorativa e, com o passar dos anos, acomodamos tal culpa em nossa herança colonizadora sem nada fazer para mudar? Por outro lado, de onde vem tal acomodação? Seria da falta de real preocupação com a cultura, com a educação?
Claro que esse texto não esgotará a análise. Em verdade, será das mais superficiais, mas talvez útil ao debate.
2 – DESENVOLVIMENTO
2.1 – O FENÔMENO DA CORRUPÇÃO
Corrupção histórica
A corrupção é um fenômeno histórico e mundial.
Não nos aprofundaremos aqui em tal comprovação, apesar de já o tentarmos em outro texto[1], mas alguns dados são interessantes à discussão e valem repetir.
Basta citar dois pensadores a princípio distantes em termos de ideologias mas que ao discutir corrupção discorrem em um mesmo sentido: Maquiavel se aproxima de Montesquieu ao falar da corrupção.
De fato, vale retirar de prodigiosas fontes textuais passagens de interessantes estudos sobre o pensamento de Maquiavel, aproximando-o de Montesquieu, justamente pela identificação conceitual do instituto “corrupção” como um mal.
Em interessante tese tendo como objeto a obra da Maquiavel, em especial DISCURSOS e O PRÍNCIPE[2], o Autor, José Antônio MARTINS, identificou que, para aquele, no campo da política, os Estados, na medida em que são corpos políticos, estão submetidos à ação da natureza:
“No caso das repúblicas, a corrupção ocorrerá em algum momento, pois não é possível que permaneçam em pé diante de tantas tribulações e sem o conflito elas não tem força e vigor. Maquiavel primeiramente destaca a impossibilidade do “girar-se infinitamente”, do transforma-se sem fim de uma república; ela não pode passar por tantas transformações em seus fundamentos e permanecer com vigor e força. Logo, não é possível à república modificar-se tanto, precisa conservar uma certa estabilidade. Por outro lado, os conflitos políticos, motor e força para a criação de novas leis e ordenamentos da cidade, não podem ser abolidos simplesmente. Então, seja como for, por qualquer uma das alternativas expostas, a corrupção nas repúblicas chegará em algum momento, obrigando a tomada de alguma decisão. No limite, sendo a corrupção um evento certo para todo corpo natural, tudo indica que ela certamente agirá sobre a república, implicando um novo movimento, uma mudança na sua constituição política”.
Todavia, aqui termina a esfera necessária da força da natureza: a corrupção é o dado certo do movimento natural do corpo político. A partir desse ponto é que se abre a esfera humana do processo. Defronte à corrupção, cabe aos homens escolher qual o melhor remédio, construir sua alternativa. A natureza não rege todo o processo, os homens podem exercer seu poder sobre a metade dos destinos, como nos lembra o Príncipe[3].
A interessante análise cabe acrescentar outra fonte, que relaciona Maquiavel á Montesquieu, tendo cerne na preocupação com a corrupção. É que, e como supra referido, para os seculares pensadores, importa estudar a corrupção. E não só isso, dar-lhe adequada conceituação é pressuposto ao correto tratamento do problema.
De fato, se bebe em TELES[4] passagens questionadoras como as RENATO JAIME RIBEIRO[5], quando pondera: Qual é a sua ideia de corrupção? [....] a corrupção era termo mais abrangente, designando a degradação dos costumes em geral [...]. Como a corrupção veio a se confiar no furto do bem comum? Talvez seja porque, numa sociedade capitalista, o bem e o mal, a legalidade e o crime acabam referidos à propriedade. Por analogia com a propriedade privada, o bem comum é entendido como propriedade coletiva - e até como bem condominial, aquele do qual cada um tem uma parcela, uma cota, uma ação [...] há certos “bens” que só ela produz e que não podem ser divididos: virtudes, direitos e uma socialização que não só respeita o outro como enriquece, humanamente, a nós mesmos [....]. Pensar o mau político como corrupto e, portanto, como ladrão simplifica demais as coisas. É sinal de que não se entende o que é a vida em sociedade. O corrupto não furta apenas: ao desviar dinheiro, ele mata gente. Mais que isso, ele elimina a confiança de um no outro, que talvez seja o maior bem público. A indignação hoje tão difundida com a corrupção, no Brasil, tem esse vício enorme: reduzindo tudo a roubo (do “nosso dinheiro”)
Como se observa nas obras citadas, há, atualmente, uma concepção de corrupção reduzida, restrita ao termo ROUBO e que se distância das concepções de Maquiavel e Montesquieu, em que a corrupção no Estado atinge proporções bem mais vitais e profundas na vida do cidadão e do Estado.
Veja-se, pois, que quanto á compreensão da corrupção, tanto Maquiavel como Montesquieu, apesar do distanciamento ideológico que lhes é notório, entendiam muito mais que simples desvio patrimonial, pois, para ambos, a corrupção “abala, aniquila e pode até destruir completamente o Estado vigente[6]”.
Assim, a corrupção lhes seria mal político, pois são os valores de mesma natureza que se põem em risco. Comunidade, coletividade, confiança, respeito, esperança, virtù/virtude e justiça são bens políticos, bens do cidadão e justamente tal é usurpado pela corrupção.
TELES ressalta ainda[7] que Montesquieu atribui a corrupção do povo à corrupção primeiramente dos princípios, daquilo que mantém o governo, pois os princípios são a base do governo e a corrupção se afastará à medida que tais princípios forem preservados. Em uma mesma direção, Maquiavel atribuiria as “falhas” à corrupção do povo, a partir da corrupção daquilo que corresponderia aos princípios em Montesquieu, ou seja, aos príncipes, ou governantes. Teríamos, assim, outra nota de semelhança no estudo da corrupção pelos notórios pensadores.
Por outro lado, se aproximam também os Autores ao perceber que o ser humano também é peculiarmente vulnerável ás “facilidades” da corrupção:[8]
É preciso desconfiar dos homens. Esse é um imperativo que certamente se aplica a Maquiavel e a Montesquieu. Ambos vêem o homem enquanto um ser frágil, vulnerável e com sérias inclinações à corrupção, devido às suas imperiosas paixões negativas. Assim, a política deve partir do pressuposto de que o homem está sempre sob suspeita, representa um perigo potencial à estabilidade do Estado e esse último deve sempre desconfiar do homem e criar antecipadamente os diversos mecanismos capazes de abrandar a natureza humana corruptível.
Em suma, o poder, as paixões e a corrupção são três faces da mesma moeda: a da política. E para enxergar verdadeiramente a política em sua amplitude máxima é necessário perceber, conhecer e prudentemente conduzir, canalizar ou educar essas faces da política. Essa é uma tarefa que foi reservada justamente à face do poder e, conseqüentemente, àquele que tem o poder. Sem esquecer que o que tem o poder também tem as paixões, sendo profundamente vulnerável à corrupção.
Na mesma linha, e de maneira geral, certo ainda que se faz, na obra base, comparativo do tratamento que os dois pensadores dão, também à moral e religião e à paixão, tudo conceitualmente relacionado à corrupção e à política.
Sucintamente, moral e religião só fariam parte da política enquanto instrumentos de poder, isto é, a religião e a moral não estão na política, mas estão para a política e servem ao poder.
Já o homem não seria definitivamente um ser político, mas tornar-se-ia um pelo simples fato de ser humano. Ou seja, por ser o homem resultante de condições externas e internas que vão desde sua posição geográfica e climática até sua permanente tensão entre paixões, conclui para si mesmo que o melhor é ser um cidadão político, pois é a política que possibilita e/ou facilita a vida do homem em sociedade.
Paixão seria um paradoxo da política[9]. Nela a política encontraria seu elemento movente, mas é a mesma que corrompe aquilo que se visa com a política. Portanto, a paixão é inerente à política, em relação de simbiose. E o equilíbrio, a justa medida, a ponderação que os seres políticos buscam entre a política e a paixão é um infinito desejo que por vezes encontra êxito e por outras tantas encontra fracasso, e um dos mais destruidores certamente é a corrupção.
Então[10], o que é próprio da política? O conflito ou o consenso? A paz ou a guerra? A razão ou a paixão? O que se concluí, especialmente a partir de Maquiavel e Montesquieu, é que no cerne da política está certamente o enfrentamento, a tensão constante. Seja o enfrentamento de ideias, de ideais, de interesses, de paixões, de sonhos ou de utopias. O que está no cerne da política é o que a paixão e o poder, acompanhados inevitavelmente da corrupção, podem, impelem, obrigam ou direcionam.
A política, pois, é o espaço da contradição própria de homens, ávidos de poder, impelidos por paixões e substancialmente susceptíveis à corrupção.
Em suma, e para não nos alongarmos sobremaneira na percepção histórica da corrupção, veja-se que até pensadores ideologicamente tidos como distantes na análise e concepção do Estado, podem ser aproximados na uníssona preocupação com a corrupção, principalmente em suas causas e efeitos na condição humana.
Corrupção mundial
De fato, um fenômeno mundial.
Para tanto indicaremos dados públicos a exemplificar suas consequências no mundo e no Brasil.
Na doutrina[11]mas principalmente na internet fácil obter alguns dados sobre o custo da corrupção, seus impactos sob uma perspectiva macro, custos decorrentes da corrupção em geral, não só da corrupção política.
O Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes – UNODC[12] realizou pesquisas que indicam que US$ 1 trilhão de dólares são gastos, anualmente, em suborno em todo o mundo, o que gera pobreza, atrapalha o desenvolvimento e afugenta investimentos. Observou-se que o quadro de corrupção é ainda mais acentuado em razão do constante desrespeito à legislação, da falta de transparência nos contratos e de um sistema judiciário falho e ineficiente.
Outra pesquisa relacionada com custos de corrupção foi feita pelo professor Marcos Fernandes[13], Coordenador de Economia da Fundação Getúlio Vargas – FGV e autor do livro “A Economia Política da Corrupção no Brasil”. O estudo mostra que o impacto da corrupção nas contas públicas corresponde a 0,5% do PIB, que em 2005 atingiu R$ 1,93 trilhão, o que fez com que recursos da ordem de R$ 9,68 bilhões do PIB brasileiro, ou seja, quase a metade do valor orçado para investimentos no exercício de 2006, fossem destinados ao custeio da corrupção. O estudo mostra que se esses quase 10 bilhões de reais estivessem nos cofres públicos seria possível suprir, por exemplo, parte significativa do déficit habitacional, com a construção de aproximadamente 538 mil casas populares.
O IBOPE[14] investigou, sob outro ângulo, não diretamente vinculado a custos, a corrupção política (Corrupção na Política: Eleitor Vítima ou Cúmplice), observando se os desvios estariam concentrados nas elites ou se teriam efeitos difusos sobre toda a sociedade. As principais conclusões advindas dos resultados da pesquisa foram as seguintes: 69% dos eleitores brasileiros já transgrediram alguma lei ou descumpriram alguma regra contratual; 75% cometeriam pelo menos um dos 13 atos de corrupção relacionados pela pesquisa, se tivessem oportunidade. Não bastassem essas assustadoras conclusões, a pesquisa mostrou também que muitos desvios de conduta dos governantes, como contratação de parentes e transformação de viagens de serviço em lazer, são considerados normais pelos eleitores.
Assim, e como visto resumidamente, é a corrupção um fenômeno de grande impacto social, econômico e político mundial.
Tanto que se destaca, atualmente, a linha da Cooperação Internacional[15][16]em seu combate, com a pactuação ou adoção de Acordos de Cooperação.
De fato, cabe mencionar que em 09/12/2003, durante encontro realizado pela ONU na cidade mexicana de Mérida, foi assinada a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC, em inglês), ocasião em que 95 (noventa e cinco) países a assinaram. Entrou em vigor em 14/12/2005 e, no Brasil, aprovada em maio de 2005 e promulgada em janeiro de 2006, passando, a partir daí, a vigorar com força de lei.
Trata-se de um dos primeiros compromissos mundiais documentados a demonstrar preocupação como fenômeno da corrupção. Contém diversas previsões de criminalização de atividades tidas como corruptas (suborno, lavagem de dinheiro), além de estabelecer medidas para: prevenir a corrupção; promover a integridade nos setores público e privado; cooperar com outros países. Estabelece, ainda, e em seu traço essencial, mecanismos legais para propiciar o repatriamento de bens e recursos obtidos por meio de atos corruptos e que foram remetidos para outros países.
Daí um aspecto essencial da cooperação internacional no combate à corrupção: viabilizar a efetiva recomposição do erário lesado, com a recuperação de somas de dinheiro desviadas, mas rastreadas e bloqueadas.
Pode-se, pois, dizer que a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção é o mais completo e abrangente instrumento internacional juridicamente vinculante, por estimular inclusive o controle social, no sentido de fiscalizar as contas do governo. Ademais, o nível de apoio recebido pela Convenção demonstra a preocupação da comunidade internacional com o tema, bem assim o comprometimento político para o seu enfrentamento. Assim sendo, o UNODC vem posicionando-se de forma estratégica de modo a trabalhar em conjunto com instituições governamentais e da sociedade civil, maximizando o impacto da cooperação técnica internacional.
Por outro lado, trata-se de uma admissão formal e internacional de que a corrupção é um mal mundial.
Conceituação de corrupção
Mas o que é corrupção?
Na necessária conceituação, até para que tornemos o mal mais tangível, menos abstrato, dois ou três textos se dedicam com a profundidade que aqui se entendeu adequada.
Assim, em tais referências, a expressão corrupção[17] [18]se origina do latim corruptione e significa a ação ou efeito de corromper – decomposição, putrefação, depravação, desmoralização e devassidão[19].
Quanto ao seu conceito, estes são inúmeros e variam de acordo com a perspectiva de cada estudioso, não lhes faltando, claro, um elemento comum, qual seja: interação entre indivíduos que corrompe as regras habituais.
Também a participação de agentes públicos para se obter fins privados, a co-participação entre o setor público e a iniciativa privada, o tráfico de influências entre esses dois grupos, são elementos do fenômeno, considerado pela ONG Transparência Internacional[20], que se retira de seu site, como o “desvios de funções públicas para fins privados”.
Certo que a corrupção tem tipologia penal: Código Penal, arts. 271, 272 e 218. Pode ser ativa, quando se oferece a agente público vantagens (ofertas, promessas, propinas), para que este retarde, pratique ou omita ato de ofício, de forma a trazer benefícios ao subornante; ou passiva, quando o agente público solicita ou recebe para si ou para outrem, direta ou indiretamente, vantagem indevida, ou aceita promessa de tal vantagem, desde que tais fatos ocorram em razão da função, ainda que fora dela ou antes de assumi-la (Código Penal, arts. 317 e 333).
Mas é muito mais que isso.
Pode ser do político, quando praticada especificamente por agentes políticos, individualmente considerados; ou na política, quando se dissemina por toda a atividade política, ou seja, é a que penetra o próprio sistema político, sendo, pois, sistêmica
Para o Banco Mundial[21]: “corruption is the abuse of public office for private gain”, ou abuso de cargo público para ganho privado.
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa descreve o termo como “a disposição apresentada por funcionário público de agir em interesse próprio ou de outrem, não cumprindo com suas funções, prejudicando o andamento do trabalho” (HOUAISS; VILLAR; FRANCO, 2001).
Daí a riqueza conceitual da expressão corrupção, o que bem demonstra a dificuldade de sua percepção como fenômeno em um dado caso concreto, até porque pode vestir-se de elementos das mais variadas ciências, e, como consequência lógica, indica que não há êxito em tentar-se seu combate apenas como um fenômeno mono-disciplinar, devendo ser atacado na esfera política, social, ética, moral, econômica e, claro, jurídica.
Corrupção no Brasil
Como já dissemos em texto próprio citado no início, minimamente compreendido o fenômeno da corrupção, inegavelmente algo histórico e constantemente presente no desenvolver das relações humanas entre si e entre estes e as instituições, criadas por estes, certo que já cabível tentar compreender a gravidade do tema quando se fixa como locus, o Estado Brasileiro, até para que possamos comparar tal percepção com os textos dos escritores do século XIX e XX futuramente apresentados.
É que, forte não só nas teses referidas, mas também em toda e qualquer Revista semanal de informações ou Jornais diários, casos de malversação de recursos públicos, uso indevido da máquina administrativa, redes de clientelas e tantas outras mazelas configuram uma sensação de mal-estar coletivo, em que sempre olhamos de modo muito cético os rumos que a política, no Brasil, tem tomado. Clamor moral, instabilidade, não utilização do Parlamento, do Executivo e do Judiciário para questões senão os escândalos surgidos, precocemente aparecem como temporárias barreiras à efetiva implementação de políticas públicas.
Porém, logo tudo se esquece, contribuindo à sensação de impotência por parte da sociedade; a corrupção é, pois, tolerada. E essa sensação gera concepções de senso comum acerca de uma natural desonestidade do brasileiro, com caráter duvidoso e que, a princípio, não se nega a levar algum tipo de vantagem no âmbito das relações sociais ordinárias.
Em verdade, pesquisa aqui já referida indicou que há, pelo menos, certa despreocupação com a desonestidade de maneira geral. Culpa-se, em regra, nossa construção estatal histórica, de colônia portuguesa, com o não incentivo ao desenvolvimento cultural e o viés explorador do agente político.
Para FILGUERAS[22], toda essa visão representaria um “projeto de interpretação do Brasil fornecido pela vertente do patrimonialismo”, que tenderia a tomar esse pressuposto como característica antropológica.
Diz ainda que essa posição contraditória do cidadão comum em relação à corrupção acarreta um contexto de tolerância, fazendo com que indivíduos tomem atitudes em que prefiram aderir a esquemas de corrupção a afirmar valores. De outro lado, dados mostrariam[23] que esse mesmo cidadão comum é capaz de reconhecer valores morais fundamentais e, consensualmente, reconhecer que esses valores são importantes na dimensão da sociabilidade e da política.
Concluiu o citado Autor, então, que[24]:
Isso ocorre, do ponto de vista normativo, pela cisão entre valores e necessidades, configurando juízos muitas vezes assentados em uma visão agonística da vida, sem perceber a necessidade de concepções mais amplas de vida republicana. Essa posição da cidadania, tendo em vista o problema da corrupção, tem por consequência reduzir a accountability do sistema político, ao enfraquecer o sistema de fiscalização em relação às atividades das instituições políticas. Falta, nesse sentido, uma noção mais ampla de público a partir da qual se deve pensar o tema da corrupção não apenas no plano das instituições formais da democracia, mas na ideia de vida democrática.
No que diz respeito à corrupção, constata-se que não basta uma mudança do aparato formal ou da máquina administrativa do Estado propriamente dita, mas reforçar os elementos de uma cultura política democrática que tenha no cidadão comum, feito de interesses, sentimentos e razão, o centro de especulação teórica e prática para uma democratização informal da democracia brasileira. Os avanços das reformas da máquina pública, nas duas últimas décadas, são inegáveis, com o reforço da transparência. Contudo, falta, à democracia brasileira, um senso maior de publicidade, pelo qual a transparência esteja referida a uma ativação da cidadania, à accountability e à participação, sem os quais os esforços de combate e controle da corrupção ficarão emperrados em meio a uma cultura política tolerante às delinquências do homem público”.
Essa corrupção existe no Brasil, este um pressuposto que aqui adotamos.
Mas aqui, como parece notório, estaria disseminada de forma endêmica, cultural, em vários níveis e graus do Estado e em várias das relações sociais, este um segundo pressuposto.
Mas porque o mal da corrupção se desenvolveu de tal maneira no Brasil?
Daí a relevância dos autores dos séculos passados a retratar a sociedade, em movimento, que percebiam.
E o que podemos retirar da visão dos autores pincelados?
Para tanto, cabe breve resenha de suas ideais centrais, apropriando-nos daquilo já filtrado pelo Professor Eduardo Cerqueira Batitucci, em suas aulas da disciplina “Pensamento Social Brasileiro” do Curso de mestrado em Administração Pública da Fundação João Pinheiro (conforme referências bibliográficas a seguir citadas).
2.2. OS PROBLEMAS DE FORMAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL DO BRASIL EM JOAQUIM NABUCO, NINA RODRIGUES, EUCLYDES DA CUNHA, OLIVERIA VIANA, GILBERTO FREYRE E SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA
Assim, como adiantado no último parágrafo, e apropriando-se de síntese já devidamente reverenciada e referenciada, apresentaremos algumas visões da sociedade brasileira por Autores de época e considerados clássicos e que, portanto, podem indicar etapas, problemas, percepções corretas ou equivocadas de nosso processo de desenvolvimento social com, claro, suas consequências.
Joaquim Nabuco[25] em 1883 publica O Abolicionismo apresentando como ideias centrais: 1 - Ilegalidade e ilegitimidade da escravidão, “nem baseada no direito natural, nem baseada na Lei – ausente na constituição um código negreiro”. (63); 2- Incompatibilidade da escravidão com a modernidade, “instituição fóssil, inconciliável com a sociedade moderna”, trocando a ênfase política da historiografia imperial pelo foco na dinâmica socioeconômica, inspirado pela “política científica” européia (63). Neste sentido, a metrópole transmitiria sua decadência ao legar ao Brasil um trinômio vicioso: organização social baseada no latifúndio, monocultura e no comércio de escravos; 3 - A escravidão como herança colonial que adquiriu caráter de “sistema social”, estruturadora de todas as instituições, costumes e práticas. Como empresa econômica principal, entranhou-se na ocupação do território e, em par com a monocultura, esgotou a terra e a concentrou, gerando feudos auto-insulados. Tolheu as atividades urbanas, impedindo o desenvolvimento de um operariado assalariado e de classes médias, e condenou os homens livres pobres à dependência dos grandes proprietários (63).
A escravidão teria se tornado o pilar de todas as profissões e negócios, gerando uma rede de relações de clientela que invadiu o Estado e viciou toda a sociedade no seu usufruto. No sistema político, impediu a formação de um corpo de cidadãos e de uma opinião pública autônoma, já que o direito de voto se assentava na propriedade de terras e escravos (64).
Como legado, Joaquim Nabuco descortinou os fundamentos escravistas da formação social brasileira, vinculando as elites políticas à base socioeconômica que a nutria.
Em suma, no que nos interessa, a escravidão seria o problema central na formação da sociedade brasileira. Somada à estrutura latifundiária, formado um sistema político em que se legitimava a posição de domínio.
Nesse contexto, a autonomia do escravo, após libertado, viria do binômio educação e previdência, mas também reforma agrária, para tivesse acesso aos meios de subsistência, dando-lhe a autonomia.
Mas não tinha elite responsável para fazer isso e assim o futuro povo brasileiro, que não existia como ator social, induzia à conclusão de um Brasil pouquíssimo desenvolvido.
No que nos interessa, cabe salientar que o escritor já indicava a necessidade de uma atuação responsável pelas classes dominantes e elite intelectual, apresentando a necessidade de “educação” do povo como caminho à formação de um próprio e consciente povo.
Porém, nossa “elite” não o faria.
Nina Rodrigues[26] deixou um legado paradoxal: a despeito de ser reconhecido como o primeiro antropólogo físico a fazer um levantamento dos povos africanos no Brasil, ele é também lembrado como aquele que defendeu diferenças ontológicas entre as raças e, em especial, por considerar a mestiçagem como um sinal de degenerescência (92).
O contexto acadêmico e social no qual Nina Rodrigues viveu, escreveu e pesquisou era dado a determinismos de toda ordem: raciais, biológicos e sociais. Neste sentido, Nina Rodrigues foi um intelectual coerente com o seu tempo, ao adotar o Darwinismo de forma literal, ao negar o evolucionismo social e incluir a criminologia de Lombroso como modelo analítico (92).
Neste sentido, Nina afirmava que concepções como a igualdade jurídica e a idéia do livre-arbítrio estavam ultrapassadas: do ponto de vista da imputabilidade jurídica, por exemplo, se esperava responsabilidade do indivíduo sobre seus atos. De algumas raças, para Nina, “não se pode cobrar o que não se possui...”.
Nos seus estudos sobre criminalidade (As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil (1894); Negros Criminosos (1895); O Regicida Marcelino Bispo (1899); Mestiçagem, Degenerescência e Crime (1899)), Nina via na criminalidade mestiça, uma particularidade nacional. O suposto era o da desigualdade entre as raças e, neste sentido, da necessidade da criação de códigos penais distintos, que atenuassem as responsabilidades segundo estas diferenças (92-93).
Tomando, portanto, a degenerescência, como conseqüência de uma desigualdade antropológica e sociológica, Nina Rodrigues passa a analisar casos que comprovariam as suas teorias, um debate entre universalismo e diferença, iluminado por “trabalho de campo”.
A proposta é de uma nova modalidade de “medicina social” para o contexto do final da escravidão e das epidemias de cólera, febre amarela e varíola, entre outras, que chamava para a indispensável função de “higiene social” que se reservava aos médicos, um profissional que deveria ser “político e missionário” cujo desempenho se relaciona tanto à doença (abordada pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro) como ao doente (objeto dos estudos da Faculdade de Medicina da Bahia) (100).
Em suma, o médico adotava uma linha lombrosiana para determinar qualidades biológicas do brasileiro mestiço como sério indicativo, e pessimista, de que o país teria graves problemas de consolidação de uma Nação, pela atávica característica de seus habitantes.
“Canudos” era exemplo de um povo de “selvagens”, portanto atrasado, inferior e sem solução.
No que nos importa, o fatalismo das características negativas do povo é ideia que talvez ajude a explicar um certo conformismo da sociedade brasileira com situações de ilegalidade e descompromisso social. Claro que não atrelada a fatores morfológicos, mas pesa a suposição de uma “natureza” ruim do brasileiro.
Euclydes da Cunha[27] foi influenciado pelo pensamento científico da época, com seus traços deterministas, mas opta por realçar os dilemas da formação histórica do país e a dificuldade para os esquemas deterministas interpretarem a dinâmica da natureza, do homem e de processos sociais no Brasil, que se apresentariam revoltos, de difícil fixação, enfim, como um enigma para o observador (106).
Seu tema predileto são os espaços “incivilizados”, dominados pelo conflito ou pelo sofrimento social ou pela natureza avassaladora (muitas vezes confundindo ambas as temáticas), a Amazônia e o sertão. Neste sentido, sua obra é redigida em torno da ideia de um Brasil não apenas desconhecido, mas incompleto, uma nacionalidade em formação.
A inadequação das instituições políticas, neste sentido, era vista como o resultado do descompasso entre o Estado e a Nação, e a missão do cientista, a busca por um “Brasil real” (107-108).
Tendo presenciado a Guerra de Canudos, a retrata em Os Sertões.
Na arquitetura da obra, obedece a um esquema positivista, que separa a análise numa trilogia: meio, raça, circunstância (a terra, o homem e a luta). Adotando uma abordagem evolucionista, constrói sua análise através da ideia de uma sociedade em transformação, e da Ciência, como a ferramenta para antecipar o ritmo e rumo da mudança (108).
Das influências positivistas, entretanto, não decorre a conclusão pessimista, nos termos de Nina Rodrigues, da inviabilidade da civilização no Brasil. Na descrição das condições geográficas do sertão (e depois da Amazônia), evidenciam-se o impacto da natureza naquilo que se transformará no principal argumento com relação ao Homem, ao Sertanejo: o isolamento do sertanejo como fator histórico crucial para explicar o antagonismo e a oposição entre o litoral (a civilização) e o sertão. O sertanejo seria um retrógrado (e não um degenerado), como decorrência de ter ficado distante das influências negativas da civilização que se desenvolvera nas cidades do litoral. Ao mesmo tempo, as influências dos fatores contextuais seriam responsáveis pela dificuldade em fixar quem seria, efetivamente e nos termos positivistas, o sertanejo. De forma ambígua, o sertanejo é um Hércules e um Quasímodo, pois, de acordo com as circunstâncias, oscila da força à fragilidade, da monstruosidade ao caráter heróico (109).
O que se observa, fugindo ao esquema determinista, é a plasticidade das categorias sertão e litoral, essencialmente utilizadas como referências simbólicas que sofrem no texto uma série de deslocamentos: é a inversão de papéis e comportamentos esperados dos habitantes do sertão e do litoral, entre os sertanejos e as forças militares que os combatiam, e da transformação súbita dos sertanejos e de sua realidade. É o esforço e a dificuldade em transformar terra, homem e circunstâncias em algo cognoscível (109-110).
O dualismo litoral/interior seria representado pela civilização da Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro, com seus cafés e livrarias e por aquilo que Euclides da Cunha representou como sociedade dos copistas, e pelo sertão de Canudos, caracterizado pela supremacia da natureza sobre o homem, pela impenetrabilidade da caatinga (depois da floresta) e pela autenticidade (rusticidade, violência, condição de indomável, de real) da Nação (mas não do Estado, que não refletiria a Nação) (111).
Certamente, esta condição convive com a representação negativa do homem sertanejo, que com sua mentalidade e religiosidade “atávica”, resistiria à mudança e ao fatalismo de um processo civilizatório inescapável
É, entretanto, esta ambivalência que tornaria, não apenas possível, mas positivo e necessário, para a civilização do litoral, o projeto e a necessidade de incorporação efetiva do interior à construção do Estado nacional no Brasil (112).
Como legado, Euclydes da Cunha, em Os Sertões, é tido como livro monumento da nacionalidade brasileira, responsável pela gênese de uma teoria do Brasil na qual sobressai a imagem de uma sociedade dividida entre um pólo atrasado, porém considerado a base da nacionalidade, e um pólo civilizado, formado, entretanto, por copistas, por elites políticas e intelectuais que permaneciam com os olhos voltados para fora, de costas para o país (111).
Em suma, o Autor de Os Sertões, indica que para o país desenvolver-se, em especial na conexão Estado-Nação, há necessidade de se enxergar quem é verdadeiramente seu povo, e este deve ser visto como ator social, apesar do “atraso” decorrente de espaços de baixa “civilização”. Portanto, podia mudar, melhorar.
No que é relevante ao trabalho, veja-se que o Autor é otimista com o país e apresenta, a partir de uma necessidade até hoje atual de conhecimento de seus povo, um caminho pelo investimento na civilização, ou seja, no desenvolvimento, na educação, no estímulo à melhoria do povo como ator social.
Oliveira Viana[28]tornou-se, nas últimas décadas do Séc. XX, um clássico do Pensamento Social Brasileiro. Porém, a vinculação de suas análises a uma proposta de Estado Autoritário, somado ao seu engajamento político à máquina do Estado pós-1930, teve sua obra tachada de reacionária e racista (AG 146).
Sua obra, Populações Meridionais do Brasil, busca “ressaltar o quanto somos distintos de outros povos”, dado que, apesar de a comparação das novas sociedades americanas com as antigas sociedades europeias evidenciar esta diferença, nossas classes dirigentes revelariam verdadeira obstinação de não reconhecerem a originalidade de nossas condições (BR 56).
Esta nova postura intelectual e política procuraria romper com o descompasso entre ideias e realidade no Brasil, libertando da condição de “marginalidade” a elite brasileira, que “vive entre duas culturas: uma – a do seu povo, que lhes forma o subconsciente coletivo; outra – a europeia ou norte-americana, que lhes dá as ideias, as diretrizes de pensamento, os paradigmas constitucionais, os critérios de julgamento político” (BR 57-58).
Neste sentido se trataria de descobrir as “nossas causalidades”, responsáveis pela construção do nosso país tal como se encontraria objetivamente. O interior, neste aspectos, seria mais importante do que as cidades, os tipos urbanos, variantes dos tipos rurais. O campo e o seu habitante, portanto, é a “matriz de nacionalidade” do Brasil (58).
Neste caso, o país não possuiria unicidade aos olhos do povo. Não teríamos uma “consciência coletiva”, porque “culturologicamente considerado o Brasil não me parece ainda uma unidade constituída, e sim uma unidade a constituir-se”. A separação entre o Estado e a Nação (como em Euclydes da Cunha) se refletiria na incapacidade das elites em construir o Estado levando em consideração a realidade do povo, limitando-se a aspectos jurídicos e políticos que não atingiriam, verdadeiramente, as massas (58-59).
Assim, se distinguiriam, pelo menos, três histórias diferentes entre o nosso povo: a do norte, do centro-sul e do extremo-sul, que teriam gerado “três sociedades diferentes: a dos sertões, a das matas e a dos pampas, com seus tipos sociais específicos – o sertanejo, o matuto e o gaúcho”.
A estrutura rural é a do latifúndio. Nele, não haveria grande espaço para a solidariedade social. O grande domínio, que tudo absorve, seria um mundo em miniatura, onde prevaleceria a vida doméstica, organizada à maneira romana, onde o pater famílias é o chefe supremo. As relações sociais tenderiam a ser instáveis em virtude da extensão infinita do latifúndio (tanto do ponto de vista simbólico, como empírico), e da extensão infinita do território, nada impedindo que o colono se torne, um dia, proprietário (ou seja, que a “ordem natural” das relações sociais, a separação entre nobres e os outros, seja subvertida (61). Surge aí, uma categoria chave para o entendimento da obra e do pensamento de Oliveira Vianna – a de insolidarismo.
Para Oliveira Vianna éramos incapazes de construir formas de solidariedade social modernas (especialmente do ponto de vista político) em razão de nossa diversidade pouco compreendida e, neste sentido, explicada. Precisar-se-ia de um bom diagnóstico que entendesse e explicasse os nossos problemas, proposta que seria crescentemente compartilhada, no período, pelos movimentos sociais e pela intelectualidade (AG 152).
Assim, em contraposição a um discurso otimista sobre o futuro do Brasil, começa a se cristalizar uma versão mais realista, que visa identificar um conjunto de males (falta de saúde, educação, opinião pública, etc.), todos sintetizados na inexistência de uma sociedade e de um governo modernos. O atraso do Brasil se devia a um deslocamento entre o Brasil “real”, marcado pelo insolidarismo, e o Brasil “legal”, o mundo das instituições, destinado a dirigir uma nação que ainda não existia.
A dicotomia deveria ser analisada, neste sentido, como uma tentativa de tornar compreensíveis características da realidade brasileira oferecendo subsídios para a elaboração de projetos de intervenção política modernizadora.
Retornando à questão do latifúndio e de insolidarismo, Oliveira Vianna aponta que, com a auto-suficiência do latifúndio, a pequena propriedade teria, historicamente, uma importância ínfima, não se desenvolvendo, portanto, as classes médias.
As próprias características da economia e da sociedade colonial impediriam que isso ocorresse. Da mesma forma, os pequenos proprietários (se existissem) não encontrariam o estímulo para produzir para mercados (que também não existiam), já que os mercados potenciais (os núcleos urbanos, por exemplo) seriam atraídos pela função “simplificadora” do grande latifúndio (BR 61-62).
O principal problema da aristocracia, neste cenário, seria o de se conseguir braços para trabalhar a lavoura, recorrendo-se portanto, à escravidão (considerada tanto como um meio para se enfrentar a escassez – numa visão tradicional para a época, mas também como meio para se disciplinar (no sentido técnico e político) uma mão de obra que não estaria disponível na sociedade livre.
Em virtude das limitações de classe e de mobilidade social (classes sociais praticamente correspondendo ao critério de raças), da insegurança sistêmica e da dependência quase completa dos grandes senhores territoriais, a solidariedade social seria muito restrita, toda a atividade colonial restringindo-se ao latifúndio, ao círculo familiar e ao seu microcosmo, estando o associativismo praticamente ausente da vida social (63).
Como chefes de clãs, os proprietários rurais agiriam no sentido de “propiciar um contínuo aperfeiçoamento, através de processos conhecidos de lógica social, dos elementos bárbaros da massa popular à moral ariana (européia), ao espírito e ao caráter da raça branca”. A gênese da nacionalidade estaria na mestiçagem, produto do latifúndio, capaz de reunir, num mesmo espaço social, simbólico e político, as três etnias presentes no Brasil (63).
Quatro séculos de colônia, neste sentido, não teriam sido capazes de criar, de fato, uma sociedade no Brasil: “... sem quadros sociais completos, sem classes sociais definidas, sem hierarquia social organizada, sem classe média, sem classe industrial, sem classe comercial, sem classes urbanas em geral – a nossa sociedade rural lembra um vasto e imponente edifício, em arcabouço, incompleto, insólito, com os travejamentos mal ajustados e ainda sem postes firmes de apoio...” (64).
É somente com a vinda da família real portuguesa que, para Oliveira Vianna, o isolamento do Brasil tem fim, dado que a nobreza nativa se confrontaria, então, com outros dois grupos importantes: os mercadores portugueses, enriquecidos pela abertura dos portos, e a nobreza portuguesa, que acompanhava a família real. Da disputa pela primazia política até o período da independência, resulta uma aristocracia fundiária plenamente adaptada ao meio como vitoriosa, aliada aos comerciantes lusitanos no papel de burguesia, restando à aristocracia portuguesa o papel de burocracia estranha ao ambiente, simbolicamente derrotada (64).
A independência representaria, portanto, a vitória da aristocracia da terra, desenvolvimento lógico, dado que era a única classe com verdadeira base na realidade brasileira, mas incapaz, por outro lado, de dar início a obra de unificação nacional, em virtude de seus próprios princípios e interesses. Assim, se no período colonial o latifúndio é o principal instrumento para a adaptação e fortalecimento de uma nobreza fundiária, depois da independência, em virtude especialmente de sua principal característica, a auto-suficiência, passa a ser visto como impedimento mais sério para a tarefa de unificação nacional que então se imporia. Não haveria nação, não haveria sentimento nacional. Apenas a fidelidade ao imperador teria evitado a secessão no Brasil. Assim, na luta entre o “localismo e o centro, os caudilhos e a Nação, o rei apareceria apenas como elemento moderador”, regulador dos conflitos, mas sem voz de fato (65-66).
Daí que no Brasil, o poder central, ao invés de ser o grande inimigo das liberdades locais, como o é na Europa, seria o defensor dessas liberdades contra os caudilhos. A defesa da descentralização, à maneira anglo-saxã, como propunham os liberais, seria injustificável, já que favoreceria apenas aos poderosos (66).
Seria, neste caso, em virtude desta índole, o Estado a assumir o papel de agir sobre a sociedade e transformá-la, moldando-a. Populações Meridionais do Brasil caminha, então, para a conclusão de que, em certas condições, a autonomia do Estado deve levar a criação, de maneira voluntarista, da sociedade que se deseja (68).
Em suma, o Autor da era Vargas apresenta as consequências da escravidão e da estruturação em latifúndios como origem dos problemas da sociedade brasileira.
O Brasil tinha várias nacionalidades, com histórias diferentes; sul, sudeste e norte. Mas o elemento comum era a estrutura latifundiária, isolada, independente.
Latifúndio era, pois, a estrutura social do Brasil.
De um lado gerava sociabilidade local, interna, laços de família, honradez, mas limitados pelos valores do Senhor Local.
Por outro, gerou o insolidarismo brasileiro, a falta de conexão, preocupação com os outros fora de seu latifúndio.
Latifúndio gerou paternalismo, patrimonialismo. Essa é a herança do latifúndio. Daí que soluções importadas não servem se não abrasileiradas. Pra resolver o entrave necessário desfocar o centro do poder.
Sair do latifúndio, passar ás cidades, já que ali as classes sociais permitiriam, entre si, maior socialização. E mais, Estado forte, com burocratas técnicos, imporiam, por necessário, os valores da solidariedade.
Problema é que a elite latifundiária dominaria a estrutura do Estado.
Certo, porém, que o Estado Autoritário não seria o melhor modelo, mas seria o modelo que a sociedade brasileira necessitaria para ser induzida, ou melhor, forçada, ao desenvolvimento.
No que releva, destaca-se a esperança de melhoria da sociedade brasileira, marcada por problemas sérios de paternalismo, patrimonialismo (com origem na estrutura latifundiária) ainda que por imposição de uma ideia de solidariedade social pelo Estado forte.
Ou seja, a fé no processo de mudança da formação da sociedade brasileira é o traço que queremos destacar, apesar da constatação de que motivos históricos influenciariam na formação do caráter insolidário do povo brasileiro.
Porém, hoje urbanizados, é de se perguntar se somos solidários, se há sentimento de Nação... há? se a resposta for não será que a estrutura latifundiária é a culpada, até hoje, por nosso insolidarismo?
Gilberto Freyre[29] escreveu Casa Grande e Senzala em período no qual o debate intelectual estava marcado pela questão da mestiçagem, que costumava ser retratada como um problema – implicando esterilidade biológica ou cultural – ou retardando o desenvolvimento do Brasil, inviabilizando ou dificultando seu acesso à modernidade – sempre representada pelo domínio da raça branca e pelos valores da civilização ocidental (BR 200).
O enorme impacto representado pelo surgimento de Casa Grande e Senzala concorre para alterar esta avaliação, enfatizando não somente o valor específico das influências indígenas e africanas a identidade brasileira, como também o hibridismo e instável articulação de tradições que caracterizariam o próprio colonizador português.
A contribuição fundamental do antropólogo alemão Franz Boas à sua formação se revela na separação primordial entre as noções de raça e cultura, conferindo a última absoluta primazia na análise da vida social, através da qual Gilberto Freyre redefinirá a ideia de mestiçagem, “reinventando” as concepções do Brasil, até então dominantes (200).
A nova concepção de mestiçagem implica em um processo no qual as “propriedades singulares de cada povo jamais chegam a se dissolver por completo, guardando indelevelmente a lembrança das diferenças presentes em sua gestação, sincrética, mas nunca sintética”, povo indefinido – entre a Europa e a África.
O caráter português, então, é um “luxo de antagonismos”, que embora equilibrados, aproximados, recusam-se terminantemente a se fundir em uma nova identidade, separada, indivisível e original. Essa recusa representa o hibridismo – “antagonismos em equilíbrio”, dramatizados, exacerbados no nosso caso, pelas divisões e pelo despotismo típicos da escravidão colonial (201).
Este conjunto de características díspares, entretanto, implica, muitas vezes, na inconsistência e na instabilidade – no excesso. Assim, as paixões, as emoções, desempenharão um papel fundamental no caráter brasileiro, especialmente as paixões sexuais, responsáveis pela geração de uma atmosfera cultural de intimidade entre as raças que, sem descartar seus antagonismos, tornava possível sua convivência.
A “primeira sociedade moderna dos trópicos” era possível pelo caráter fecundo e, ao mesmo tempo destruidor, do “erotismo patriarcal”, freqüentemente experimentado sem qualquer refinamento civilizatório, bestial, através do estupro sistemático de mucamas e escravas, do sexo com vegetais e animais, do cultivo das “formas sadistas de amor” e, por fim, do próprio incesto familiar. A voracidade sexual representando uma metáfora que faria a ligação entre o vulgar e o sublime, o sagrado e o profano, as diferenças (de gênero, de raça, de poder) e aquilo que as igualaria, a afirmação da convivência, mas com um grau de proximidade inusitado – um ethos brasileiro específico, antagonismos em equilíbrio. (202-204).
Assim, os antagonismos em equilíbrio (metaforicamente representados pela oposição casa-grande e senzala) formariam a identidade brasileira (BR 90-92):
“... todo um sistema social e político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, o culto dos mortos); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene (a touceira de bananeira, o banho de rio, banho de gamela, banho de assento, lava-pés); de política (o compadrismo)...”.
A família patriarcal estendida (isto é, o patriarca, seus servos, escravos e agregados) seria a raiz e o lugar de expressão destes antagonismos. Neste sentido, as relações entre as raças seriam constituídas, do ponto de vista histórico, de uma harmonia relativa, baseada na necessidade de alguma reciprocidade: “...todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e do negro”.
O Brasil colonial seria algo novo e original, não teria se formado como uma simples feitoria, mas uma organização social que deixa marca de permanência: uma “democracia racial” (94).
Logo, de forma antagônica, Gilberto Freyre pode ser lido como alguém que, mais do que qualquer outro autor, tenha contribuído para a formulação de uma ideologia conservadora que, como tal, ajuda a encobrir muito da violência que caracterizou a escravidão e que continua a permear as relações raciais no Brasil. Por outro lado, e de maneira complementar, essa ideologia também auxiliou, de uma forma que não era possível antes, os brasileiros a elaborarem a imagem que gostam de ter de si mesmos, como tolerantes, alegres, receptivos, etc... (99).
Em suma, Gilberto Freyre apresenta um Brasil, em “Casa Grande e Senzala” em que não existiria uma dicotomia de raças e sim um “mix” de culturas que, ao mesmo tempo em que mantém suas características fundantes, relacionam-se umbilicalmente numa simbiose ambiental formando a Nação brasileira. As “culturas” seriam entrelaçadas, interdependentes e Estado e Nação seriam uma coisa só.
Adota o termo de “contradições em equilíbrio”, frisando que não é diferença de raça que importa, e sim a diferença de cultura que em correlação de forças, faria umas se destacarem sobre outras.
Os papéis sociais se diferenciariam relações de poder, mas são ligados, interdependentes e tudo isso é traço cultural do Brasil. Daí a crítica sua obra, pois não enxergou o desequilíbrio opressor, à época.
Mas há mérito por sepultar o determinismo biológico de Nina Rodrigues, além de apresentar uma visão otimista do Brasil, que seria viável apesar da diversidade cultural, vez que justamente a mistura e conexão de tais culturas formava a Nação brasileira. Valorizou a diversidade, apesar de não enxergar todo o ônus do desiquilíbrio entre os tipos sociais, talvez por compreender de forma romântica, e sexual, a relação branco x índio x negro.
O português teria, ainda, uma miscibilidade, uma grande capacidade de se misturar, sendo, pois, essencialmente democrático. Traço positivo do Brasil seria justamente isso: Uma sociedade construída sob regime de colônia, com “mix” de culturas, diferente de todas as outras que impunham suas culturas as colônias.
Essa herança ibérica é que permitiria ao Brasil ser possível, no equilíbrio da ordem e desordem das culturas, sendo este seu caminho
No que nos é imprescindível, o otimismo com a Nação multicultural que pode crescer e se desenvolver, se souber entender-se como multifacetada, indica uma característica presentes em análises sociais do Brasil de hoje.
Porém, os anos demonstraram que o desequilíbrio gerado no atrito das culturas não foi insignificante, tornando necessária alguma intervenção visando à readequação.
Tal indica, pois, que as raças, ou melhor, claro, as culturas, não são capazes de em sua simples correlação formar uma sociedade mais igual. A Nação brasileira que vem de tais tangenciamentos, pois, está fadada à injustiças e desigualdade.
E, além dessa incapacidade de equilíbrio, é dúvida pertinente saber se, atualmente, as diferenças sociais decorrem das diferenças de culturas, da característica do insolidarismo ou de problemas mais gerais e relacionados a fatores como pobreza e falta de educação, como fruto da má administração do Estado?
Sérgio Buarque de Holanda[30] procurava se afastar de uma perspectiva naturalista e/ou positivista (com muitas críticas aos trabalhos de Oliveira Viana), participando da denúncia do preconceito de raça, da valorização do elemento de cor, da crítica aos fundamentos “patriarcais” e “agrários” da sociedade brasileira, através do discernimento das condições econômicas e da desmistificação da retórica liberal.
Utilizava a metodologia dos contrários, através da exploração de conceitos polares, utilizando, entretanto, o critério de tipos ideais de Max Weber, mas ressaltando a interação entre os tipos no desenvolvimento do processo histórico, procurando nele uma “estrutura”, as “raízes” da metáfora do título: trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e impulso afetivo – são pares que o autor destaca no modo de ser ou na estrutura social e política, para analisar e compreender o Brasil e os brasileiros (12-13).
Destaca a Península Ibérica, Espanha-Portugal e o processo colonizador que impuseram às Américas. A prevalência do personalismo, de onde provêem a frouxidão das instituições e a falta de coesão social, típica da realidade brasileira, levando à ausência do princípio de hierarquia nas relações sociais e institucionais, e a exaltação do prestígio pessoal com relação ao privilégio hereditário. E como conseqüência, especialmente na América portuguesa, a nobreza permanece aberta ao mérito ou ao êxito, favorecendo a mania de fidalguia – “em Portugal somos todos fidalgos” (14).
Surge um dos temas fundamentais: a repulsa pelo trabalho regular e as atividades utilitárias, de que decorre, por sua vez, a falta de organização – “o ibérico não renuncia às veleidades em benefício do grupo ou dos princípios”, o que levaria a uma conseqüência paradoxal – a renúncia à personalidade por meio da cega obediência, única alternativa para os que não concebem disciplina baseada nos vínculos consentidos, nascida, em geral, da tarefa executada com senso de dever
A conseqüência mais forte desta cultura de personalidade, entretanto, seria a extrema dificuldade de fazer vigorar o associativismo, ao estilo de Tocqueville, em virtude do déficit de solidariedade social advindo desta característica: “... em terras onde todos são barões, não é possível acordo coletivo durável...”. A solidariedade possível, então, se vincularia muito mais ao sentimento do que ao interesse, fazendo parte mais do âmbito doméstico do que do âmbito público.
A idéia de “cultura de personalidade” faz com que Sérgio Buarque seja visto como o principal formulador de uma interpretação do Brasil que veria os processos de modernização daquela época como “superficiais, epidérmicos, de fachada”, fruto desta herança ibérica, do personalismo e do patrimonialismo decorrente (109).
Distingue trabalhador e aventureiro – duas éticas opostas: a primeira voltada para a realização a longo prazo, estima a segurança e o conforto; a segunda, busca novas experiências, acomoda-se no provisório e prefere descobrir a consolidar (AC 14). Não se encontraria, entretanto, no mundo real, nem um nem outro tipo em forma pura. Aventureiros e trabalhadores, como tipos, teriam um valor heurístico, auxiliando na compreensão dos fenômenos sociais, tais como nos tipos ideais weberianos.
A colonização da América Ibérica, seria uma obra de padrão “aventureiro”, cabendo ao “trabalhador” papel limitado, o que ajudaria a explicar a fraqueza das instituições e o esforço descontínuo do processo de colonização, praticamente limitado ao litoral, apenas se aprofundando sistematicamente já no séc. XVIII.
Para o primeiro, o que importaria seria o fim último, seu ideal sendo “colher o fruto sem plantar a árvore”. Ignoraria, neste sentido, fronteiras, vivendo em espaços “ilimitados”. Para o trabalhador, vislumbra-se o “obstáculo a vencer e não o trunfo a alcançar”. Se o impulso de aventura é propício a obra da conquista, por outro lado, ele é inadequado para o estabelecimento de uma sociedade permanente (AC 14-15, BR 111-112).
A paisagem natural e social seria marcada pelo predomínio do rural sobre o urbano, da fazenda sobre a cidade, a primeira se vinculando à idéia de nobreza (por extensão, de alegria, de ócio, gozo, prazer), e também o lugar das atividades permanentes, enquanto que à segunda caberia o lugar do vazio (por extensão, do trabalho, do sofrimento).
Neste sentido, tal como já o haviam observado Oliveira Vianna e Gilberto Freyre, para Sérgio Buarque o domínio rural auto-suficiente é o lócus privilegiado do patriarcalismo, a família a única instituição da vida brasileira cuja autoridade não é questionada. A este predomínio, corresponderia uma “invasão do público pelo privado”, os indivíduos, mesmo fora do âmbito doméstico, agindo segundo seus preceitos (por exemplo através do predomínio do clientelismo, do mandonismo e do patrimonialismo nas relações públicas), comportamentos que dificultariam o estabelecimento do Estado e da Democracia no Brasil (BR 112-113).
Destaca-se, ainda o conceito de homem cordial. Como conseqüência das características anteriores, formado nos quadros da estrutura familiar, o brasileiro teria recebido o peso das “relações de simpatia”, que dificultariam a incorporação normal a outros agrupamentos. Por isso, não achamos agradáveis as relações impessoais, características do Estado, procurando reduzí-las ao padrão pessoal e afetivo. Neste caso, onde pesa a família tradicional, dificilmente se forma a sociedade urbana de tipo moderno: “em nosso país, o desenvolvimento da urbanização criou um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos até hoje...” (16-17).
O homem cordial não pressupõe bondade, mas apenas o predomínio de comportamentos afetivos ou de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras nem profundas, mas que se opõe aos ritualismos da polidez (por exemplo, manifestações generalizadas de amizade e intimidade, mesmo que direcionadas a desconhecidos e, neste sentido, vazias, por oposição a ritualismos vinculados à ordem social, como o pedido de desculpas, o “bom dia”, o uso dos pronomes de tratamento impessoal que impliquem distância cerimonial. Ou, de outro lado, a inversão, no ambiente público, entre o comportamento formal e o comportamento afetivo).
O homem cordial seria, portanto, visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo (tais como a distância devida ao decoro profissional, a cerimônia vinculada a posição hierárquica, a obediência a normas abstratas, o ambiente público, etc.), dado que se relaciona, prioritariamente, às conseqüências de sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários (isto é, à necessidade de pessoalização das relações sociais) (17).
Assim, a uma “mentalidade cordial”, estariam ligados vários traços importantes, como a sociabilidade apenas aparente, que na verdade não se impõe ao indivíduo e não exerce efeito positivo na estruturação da ordem coletiva (isto é, uma sociabilidade de fachada, sem conteúdo ou substância, e que não gera qualquer tipo de obrigação de reciprocidade). Decorreria deste fato o individualismo expresso na relutância do indivíduo diante de qualquer Lei que o contrarie. Ligado a este sentimento, a falta de capacidade para aplicar-se a um objetivo exterior ao indivíduo e suas motivações.
Para Sérgio Buarque de Holanda as interpretações positivistas e deterministas do final do séc. XIX e do início do séc. XX são um exemplo do nosso culto pelas formas impressionantes, exibicionistas e com pouca aplicação prática, típicas deste ethos cordial. Na vida política, por outro lado, isso corresponderia a um “liberalismo ornamental” e a ausência de verdadeiro espírito democrático: “a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido, dado que uma aristocracia rural e semi-feudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no velho mundo, o alvo mesmo da luta da burguesia contra os aristocratas”. Assim, os nossos movimentos aparentemente reformadores teriam sido, de fato, impostos de cima para baixo pelos grupos dominantes (18).
Entende, por fim, possível um processo civilizador dessa sociedade, ainda que lento, fruto da modernização das relações sociais e com o Estado, mas ressalta que esta, porém, não traz, por si só, uma racionalidade, que deve construída entre as tensões do nosso processo de modernização com as características locais. (BR 118).
Em suma, tendo como obras referencial “Raízes do Brasil” e “Visão do Paraíso”, Holanda falava como acadêmico, tendo levado o debate sobre a formação do Brasil, e suas consequências, para a academia, como o primeiro a sistematizar a influência ibérica.
Usava metodologia dos contrários, dicotomia entre trabalho e aventura, rural e urbano, burocracia e caudilhismo. Brasil seria exemplo de formação dicotômica de Nação, muito mais do que mistura entre negro, índio e português, como dizia FREYRE, pois seria fruto, também, dos valores recebidos da península ibérica (Portugal e Espanha).
Tal implica em lógica do personalismo nas relações sociais, com instituições fracas. Personalismo gerava diferença de tratamento, desigualdade. Se tivesse instituições fortes delimitando hierarquias, geraria igualdade. Assim, a desigualdade viria do personalismo.
Para Holanda, diferentemente de OLIVEIRA VIANA, nem burocracia e nem classe social conseguiriam consertar o Brasil, pois seriam viciadas pelo mesmo personalismo, com seus privilégios, influencias pessoais, oriundos de Portugal e Espanha.
A repulsa pelo trabalho regular e atividades utilitárias, a valorização da personalidade, como forma de crescimento pessoal e profissional, através de favores, de família, de influência, de títulos, é traço da pessoalidade nas relações.
Outra consequência dessa característica ibérica seria a dificuldade de associativismo, pois há déficit de solidariedade. Há solidariedade local, doméstica, mas não no âmbito público. O brasileiro é cordial, no sentido de personalizar relações, não permitindo acordos coletivos duradouros pela sobreposição dos interesses privados, pessoais, sobre os públicos.
Cabendo destacar e concluir assim que ainda que se questione a atribuição à herança ibérica de nossa característica da pessoalidade nas relações públicas, certo que tal traço existe até hoje, eivando a impessoalidade que se impõe no trato da coisa pública e tornando mais subjetiva e, portanto, mais susceptível á privilégios, favores, corrupção, a decisão estatal.
2.3 – A CORRUPÇÃO E O CAMPO FÉRTIL BRASILEIRO
No Brasil, o mal de todos (corrupção é mundial e histórica, se desenvolve especialmente no espaço da política e reflete o descompromisso com o interesse público, em termos conceituais), encontrou, pois, ambiente extremamente propício ao seu desenvolvimento ante as características como de difícil formação de uma identidade nacional, pessoalidade nas relações públicas, paternalismo, ideia de mérito relacionado a título e interesse subjetivos, valores nas relações familiares exacerbadamente valorizados sobre os interesses públicos, dentre outras.
Assim, como uma praga, uma bactéria, juntou-se algo talvez inerente à fraqueza da natureza humana, como vicio, do homem no processo político, a um ambiente social fruto de traços fortes de pessoalismo, paternalismo e falta de solidariedade, criando-se um corpo perfeito ao desenvolvimento endêmico da corrupção.
De fato, resume-se das características encontradas o seguinte no processo de formação da sociedade brasileira;
- falta de preparo educacional;
- ausência do estado em vários ambientes, permitindo a existência de espaços autorreguláveis como latifúndios, Canudos, Amazônia, etc.
- povo com valores morais e éticos fincados nas relações pessoais, familiares, o que gera, na outra face, falta de solidariedade social, ou insolidarismo, ou falta de uma percepção de Nação.
- pessoalidade, pois, também como cordialidade, nas relações com o público estatal;
- crescimento individual atrelado a tais relações, seja familiares ou de influências, com desvalorização da noção de trabalho árduo como forma de crescimento pessoal e social;
Daí pois a conclusão de que o mal mundial e talvez inerente ao homem no processo político encontrou na formação da sociedade brasileira as características ótimas ao seu pleno desenvolvimento, de forma a contaminar as estruturas fundantes do Estado.
Mas é de se vislumbrar alguma solução?
Caberia mencionar como mecanismos de combate à corrupção aqueles atrelados a melhorias nos índices de desenvolvimento humano e conscientização social (educação, cultura...).
Assim, AFFONSO GHIZZO[31], diz que o fenômeno da corrupção no Brasil possui caráter essencialmente cultural, influência do legado predatório português. E isso ocorre em virtude da adoção da dominação tradicional patrimonial, caracterizada por um modelo centralizador, absolutista e privatista de poder, o que permitiu a formação de uma estrutura totalmente contrária e lesiva aos interesses sociais, difusos e coletivos, enfim, avessa à garantia de quaisquer direitos fundamentais.
A corrupção, então, se forma como valor negativo moral da sociedade, levando seus indivíduos a tratarem o público como se fosse privado. Como fenômeno cultural e relacional, a corrupção não se relaciona unicamente com a ação ímproba decorrente da utilização indevida do poder constituído em benefício privado, como também, com a maneira de ser dos indivíduos e os valores éticos pré-definidos no íntimo pessoal de cada personagem.
Cita-se ZANCARO[32]: “o fenômeno é anterior ao ato corrupto propriamente dito. Pelo que, sob um modelo de dominação de características patrimoniais, em princípio, nenhum cidadão pode considerar-se imune aos seus atrativos”.
Sem resposta para todos os questionamentos que circundam a problemática do desenvolvimento da cultura da corrupção no Brasil, como se viu, é possível imaginar, porém, uma transformação educativa para a formação de sujeitos pensantes: críticos e reflexivos. Somente através de um processo educativo de formação de novos valores morais e éticos positivos, compatíveis com os princípios, garantias e direitos fundamentais, é que será possível finalmente descobrir o Estado Democrático de Direito, acessível a todos brasileiros.
Conclui, novamente em Zancanaro[33]:
“Educação para cidadania: eis o caminho a ser trilhado com urgência pela sociedade brasileira, se quiser vencer o estigma da corrupção. Mudar a mentalidade de seu povo, implementando um processo educativo capaz de reverter o quadro de derrocada dos valores morais que corrói as instituições e as consciências. O problema da corrupção é um problema de formação de consciência cívica. Formar a consciência dos indivíduos, fazendo o exercício de construção dos valores inerentes à dupla face da condição humana: a dos valores e interesses individuais; e a dos valores e interesses coletivos. A corrupção nas instituições não é causa, mas efeito da incorporação pelos indivíduos de antivalores sociais. O sistema patrimonial de dominação mostrou-se incapaz de desenvolver um modelo de relações sociais que tornasse possível enquadrar a ação dos agentes públicos dentro dos limites da racionalidade.”
É este, para nós, e aqui encerrando a menção ao texto de GHIZZO, efetivamente, o melhor caminho para o eficiente combate à corrupção.
Porém, fácil perceber que se trata de um dos mais longos, apesar de duradouro, e que demandará esforços públicos e privados.
De qualquer forma, um esforço público localizado, acreditamos, já caiba ao Estado fazer.
Indicamos que a melhoria na relação Administração x Servidor público é mecanismo de controle e eficiente combate à corrupção, e tal por um motivo óbvio: foca na raiz humana do problema.
Em princípio, pois, servidores públicos satisfeitos tem menos motivos para corromper ou se deixar serem corrompidos pelos agentes privados. Diz-se menos, pois, após tudo que se viu aqui, não é adequado se concluir que a corrupção tem causa e percepção única em eventual, por exemplo, insatisfação remuneratória do servidor, eis que ali devem ser inseridos também elementos que passam da condição humana, pela moral, ética, a fatores históricos e sociais até conscientizações mundiais das mazelas geradas pela corrupção, além dos evidentemente necessários investimentos e aprimoramentos dos meios de controle, prevenção e eficiente combate à corrupção.
Certo, para nós, que tratar adequadamente da relação Administração x Servidor Público, por que também influenciada por questões sociais e estruturais, merece atenção doutrinária multidisciplinar, pois a corrupção é muito mais que jurídica, como visto, cabendo ser tratada no campo do comprometimento organizacional.
Tal poderia funcionar como mecanismo de controle e combate à corrupção a partir do momento em que se relaciona com diversos dos aspectos humanos, internos e externos, aqui apontados como elementos da configuração do mal social, político, econômico e jurídico aqui estudado. Porém, nesse frágil texto, não cabe desenvolver o tema do comprometimento organizacional dos servidores públicos, apesar de o termo tentado, inclusive com busca empírica de dados, no estudo de nossa autoria já citado.
3 - CONCLUSÃO
Sinteticamente, buscamos tangenciar algumas características do fenômeno da corrupção para identifica-lo como algo mundial, ou seja, não exclusivo do Brasil ou américa latina.
Também histórico e talvez inerente à fraqueza humana no processo político, como em Maquiavel e Montesquieu, Autores geralmente distantes mas que se aproximam para destacar o risco que a corrupção leva ao Estado.
Nesta parte, indicamos algumas referências conceituais para salientar a necessidade de agentes públicos e privados e o desvirtuamento das regras gerias, públicas ou objetivas porventura existentes.
Assim, identificamos o mal analisado.
Após, o ambiente de sua disseminação epidêmica.
Para tanto aproveitamos de textos com referências às obras de diversos autores considerados clássicos da análise da formação da sociedade brasileira, que inclusive a vivenciaram, para identificar algumas características desse processo que talvez tenham propiciado ao mal em questão o ambiente perfeito à sua endêmica ocorrência.
De fato, parece-nos, pois, que as características da formação da sociedade brasileira como paternalismo, pessoalidade, subjetividade, supremacia dos interesses privados sobre os públicos, falta de solidariedade e falta de identificação nacional tenham permitido o pleno desenvolvimento, aqui, de atitudes tidas mundialmente como corruptas.
Daí o encaminhamento de que uma futura, e distante solução, passa muito mais pela re-formação da sociedade brasileira com investimentos em cultura e educação do que em criação de leis e normas mais rígidas de combate à improbidade e aos crimes de corrupção ativa e passiva.
Não por menos a verificação de que realmente o texto não se aprofundou de maneira adequada nos temas propostos mas talvez efetivamente útil à discussão do foco correto, da direção adequada para o combate à corrupção como elemento, já que aqui endêmica, geralmente tida como o grande responsável pelas mazelas brasileiras.
4 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] SOARES, Pedro Vasques. Advocacia Pública, Eficiência, Comprometimento e Combate à Corrupção. Artigo de conclusão em Pós Graduação lato sensu em Advocacia Pública. IDDE/AGU/PGMBH e Faculdade de Coimbra
[2] MARTINS, José Antonio. Os fundamentos da república e sua corrupção nos Discursos de Maquiavel. 2007, 196 f. Dissertação (Doutorado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo P. 182
[3] Idem. p. 183
[4] TELES, Idete. Poder, paixão e corrupção no Estado. 2008, 111 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis
[5] Idem. P .13
[6] Idem. P.13
[7] Idem. P. 101
[8] Idem. P. 103
[9] Idem. P. 106
[10] Idem
[11]BOTELHO, Ana Cristina M. de P. Corrupção política: uma patologia social. 2008, 274 f. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília. P. 127
[12]ESCRITÓRIO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA DROGAS E CRIMES. Corrupção: custos econômicos e propostas de combate. In: GOVERNANÇA E ANTICORRUPÇÃO. Disponível em: <http://www.unodc.org/brazil/pt/programasglobais_corrupcao_publicacoes.html>. Acesso em: 23 ago. 2008.
[13]SILVA, Marcos Fernandes Gonçalves da. A Economia Política da Corrupção. São Paulo: Editora SENAC, 2005. p. 138.
[14] INSTITUTO BRASILEIRO DE OPINIÃO PÚBLICA, PESQUISA E ESTATÍSTICA. Corrupção na Política: Eleitor Vítima ou Cúmplice. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA, 2, 2006, LOCAL. Disponível em: <http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=3&proj=PortalIBOPE&pub=T&
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[15] NUNES, Antonio Carlos O. A cooperação internacional como instrumento jurídico de prevenção e combate à corrupção. 2008, 118f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo
[16] BOTELHO, Ana Cristina M. de P. Corrupção política: uma patologia social. 2008, 274 f. Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília. P. 217
[17] GHIZZO NETO, Affonso. Corrupção, estado democrático de direito e educação. 2008, 293 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. P. 100.
[18] CHRISPIM, Raquel. Responsabilidade Social Empresarial na prevenção e combate à corrupção: uma iniciativa que pode reformular a relação entre empresas e estados? 2007, 104 f, Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas: Sociologia) – Instituto de Pesquisa do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. P.33
[19] Dicionário Michaelis: cor.rup.ção sf (lat corruptione) 1 Ação ou efeito de corromper; decomposição, putrefação. 2 Depravação, desmoralização, devassidão. 3 sedução. 4 Suborno. Var: corrução” (MICHAELIS..., 1998. p.595).
[20] TRANSPARÊNCIA BRASIL e BANCO MUNDIAL. Corrupção na municipalidadede São Paulo: levantamento de percepções, experiências e valores. Realizada em 2003 em parceria com a Vox Populi, acesso: <http://www.transparencia.org>.
[21]BANCO MUNDIAL. Disponível em: <http://www.obancomundial.org>.
[22] FILGUEIRAS, Fernando. A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e prática social. Opinião pública, Campinas, v.15, n.2, nov. 2009.
P. 2
[23] Idem. P. 33
[24] Idem
[25] Ref: Alonso, Angela. Joaquim Nabuco. In:Botelho e Schwarcz (orgs.) Um Enigma Chamado Brasil.
[26] Ref. Schwarcz, Lilia. Nina Rodrigues, um radical do pessimismo. In:Botelho e Schwarcz (orgs.) Um Enigma Chamado Brasil, pp. 90-103
[27] Ref: Lima, Nísia. Euclydes da Cunha, o Brasil como Sertão. In:Botelho e Schwarcz (orgs.) Um Enigma Chamado Brasil, pp. 104-117.
[28] Ref: Gomes, Ângela de C. Oliveira Vianna, um Statemaker na Alameda São Boaventura. In: Schwarcz, op.Cit.; Ricupero, B. Sete Lições sobre as Interpretações do Brasil, pp.49-73
[29] Ref: Araújo, Ricardo B. Chuvas de Verão. Antagonismos em Equilíquio em Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. In: Schwarcz, op.Cit.; Ricupero, B. Sete Lições sobre as Interpretações do Brasil, pp.198-211
[30] Ref: Wegner, Robert.Caminhos de Sérgio Buarque de Hojanda. In: Schwarcz, op.Cit.; Ricupero, B. Sete Lições sobre as Interpretações do Brasil, pp.101-127; Cândido, Antônio. O Significado de Raízes do Brasil (Prefácio à 26ª edição do livro).
[31] GHIZZO NETO, Affonso. Corrupção, estado democrático de direito e educação. 2008, 293 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
[32] Idem. P. 278
[33] Idem. P. 280
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Pedro Vasques. A corrupção e o processo de formação da sociedade brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 out 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41276/a-corrupcao-e-o-processo-de-formacao-da-sociedade-brasileira. Acesso em: 22 nov 2024.
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