Resumo: No artigo examina-se a constitucionalidade da punição de condutas culposas pela Lei de Improbidade Administrativa. Inicialmente, demonstra-se que a natureza e o regime jurídicos da responsabilidade por improbidade administrativa demandam uma aproximação com o regime jurídico penal, mais desenvolvido doutrinariamente, permitindo, inclusive, o estabelecimento de limitações constitucionais comuns às diferentes vertentes do poder punitivo estatal. Considerando que o princípio da culpabilidade é uma das formas de limitação do ius puniendi do Estado, perquire-se se a culpa stricto sensu é suficiente para, à luz da Constituição, configurar o ato ímprobo. Essa investigação, contudo, depende do conteúdo jurídico atribuído à expressão improbidade administrativa, pois é o conceito adotado que determinará o alcance dos tipos sancionadores, tornando possível, ou não, falar-se em improbidade administrativa na modalidade culposa.
Palavras-chave: Improbidade administrativa. Conduta culposa. Limitação do ius puniendi. Interpretação constitucional.
Sumário: 1 Introdução. 2 Natureza e regime jurídicos da responsabilidade por improbidade administrativa. 3 Princípio constitucional da culpabilidade: exigência de responsabilização subjetiva do agente. 4 Delimitação do conceito de improbidade administrativa. 4.1 Interpretação jurídico-constitucional de conceitos indeterminados. 4.2 Moralidade administrativa. 4.3 Probidade administrativa e sua relação com a moralidade administrativa. 4.4 Improbidade administrativa. 5 (In)constitucionalidade da conduta culposa na Lei de Improbidade Administrativa. 6 Conclusões.
1 Introdução
A expressão improbidade administrativa, como ato ilícito, sempre foi utilizada no direito pátrio para designar infrações de natureza política (desde a primeira Constituição da República, de 1891), enquadrando-se como crime de responsabilidade (atualmente disciplinado na Lei n° 1.079/50). Somente a partir da Constituição de 1988 (CF/88) é que se passa a aplicar a expressão às infrações praticadas por servidores em geral. A despeito do uso restrito do signo (improbidade administrativa) antes da CF/88, a previsão de sanções para atos de servidores que importassem prejuízo à Fazenda Pública remonta à década de 40 (DI PIETRO, 2009, p. 803-810; GARCIA; ALVES, 2006, p. 173-196).
Percebe-se que a preocupação em preservar a coisa pública sempre esteve presente de alguma forma no direito pátrio, embora até a CF/88 essa preocupação estivesse mais restrita aos prejuízos materiais impostos aos cofres públicos. Foi a Lei n° 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA), regulamentando o art. 37, § 4°, da CF/88, que ampliou os contornos de proteção do patrimônio público, agora considerado material e imaterial, deixando de exigir o dano financeiro ou o enriquecimento indevido do agente para a configuração da ilicitude (GARCIA; ALVES, 2006, p. 265).
Embora inovadora, justamente pelo alcance de seus dispositivos, formados por cláusulas gerais e conceitos indeterminados, a Lei de Improbidade Administrativa permite a punição exacerbada, desproporcional, do agente, podendo servir como instrumento para arbitrariedades e injustiças. Por certo, o controle e o combate aos atos de corrupção e de má gestão da coisa pública constituem objetivos dos Estados Democráticos de Direito, todavia, a tentativa de evitar essas práticas ilícitas não pode se tornar a finalidade precípua do Estado, gerando a paralisação da máquina pública.
Assim, sem olvidar da importância desse diploma legal como instrumento de combate à corrupção e de proteção ao patrimônio público (material e imaterial), cumpre harmonizá-lo, mediante interpretação de seus preceitos, ao sistema jurídico-constitucional, a fim de obter a máxima e razoável efetivação da norma. Nesse contexto, o presente ensaio visa a abordar um ponto específico da Lei de Improbidade Administrativa: a previsão de punição de condutas culposas; e a perquirir sobre a sua (in)constitucionalidade.
Trata-se de uma busca por limitações constitucionais ao poder punitivo estatal em matéria de improbidade administrativa, a partir da definição de sua natureza e regime jurídicos, tendo por base o princípio constitucional da culpabilidade (exigência de responsabilidade subjetiva). O objetivo deste trabalho consiste em averiguar se a culpa em sentido estrito é suficiente para, à luz da Constituição, caracterizar o ato ímprobo, tal como previsto na Lei 8.429/92, ou se somente o dolo é elemento subjetivo hábil a configurar a improbidade administrativa. A solução para esse problema, contudo, perpassa a definição do que seja a improbidade administrativa, pois, conforme será demonstrado, o preenchimento do conteúdo dessa expressão determinará o alcance dos tipos sancionadores, tornando possível, ou não, conforme o conceito adotado, falar-se em improbidade administrativa na modalidade culposa.
O assunto é tortuoso, não tendo alcançado, ainda, pacificação na doutrina e na jurisprudência, razão pela qual não temos a pretensão de esgotá-lo, mas apenas lançar as linhas gerais do que se entende ser uma interpretação constitucional do conteúdo da improbidade administrativa, especialmente no que se refere ao alcance da Lei n° 8.429/92 às condutas culposas.
2 Natureza e regime jurídicos da responsabilidade por improbidade administrativa
Na ADI 2.797, o STF asseverou a natureza civil da ação de improbidade administrativa, com fundamento no art. 37, §4º, da CF/88, que prevê que as sanções aos atos de improbidade serão aplicadas “sem prejuízo da ação penal cabível”. Ocorre que, à exceção dos Ministros Eros Grau e Gilmar Mendes, vencidos, os demais Ministros não adentraram ao mérito do regime jurídico das sanções da Lei 8.429/92, mas tão somente afirmaram a natureza não penal da ação, a fim de afastar das ações de improbidade o foro por prerrogativa de função, típico das ações penais. O Ministro Cezar Peluso chegou a afirmar em seu voto que não cabia, naquele caso, a discussão acerca do regime jurídico da improbidade, bastando o reconhecimento de seu caráter não penal. Nesse contexto, encaixa-se perfeitamente a reflexão de OSÓRIO (2006, p. 175-176):
Superado o estágio da rejeição da tese penalista, restaria, como restou, o vazio. Isto porque toda a doutrina e jurisprudência pátrias se debruçaram sobre o caráter não penal das sanções contempladas na Lei 8.429/92, olvidando-se que depois haveria que vislumbrar o regime jurídico dessas sanções, a partir de sua inserção no sistema constitucional. [...] Afirmado o caráter não penal dessas sanções, pelo juízo negativista, há que se reconhecer também o caráter não civil, não trabalhista, não empresarial, não ambiental, etc. O juízo negativo perpassa todos os ramos jurídicos, até o ponto em que se haveria de indagar: estaríamos diante de um novo ramo do Direito Público, ao contemplarmos a Lei 8.429/92? Claramente, a resposta contundente há de ser de rechaço a essa cogitação.
Com efeito, não obstante a referida decisão do STF, e em que pese a existência de abalizada doutrina em sentidos diversos, pois neste campo a divergência prevalece, entende-se, na esteira de OSÓRIO (2006, p. 176-177), que a responsabilidade por improbidade administrativa, assim como a responsabilidade disciplinar, é espécie do Direito Administrativo Sancionador[1], entre outras razões, porque a Lei 8.429/92 possui como objeto “o foco na normativa da função pública”, e porque os dispositivos que estabelecem os modelos de condutas proibidas “estão vazados no plano material do Direito Administrativo”.
Definida a natureza jurídica do ilícito de improbidade, cumpre averiguar as regras incidentes, ou seja, qual o regime jurídico aplicável à responsabilização por improbidade administrativa.
Há certo consenso na doutrina no sentido de que inexistem distinções substanciais ou ontológicas entre os ilícitos penais e administrativos. Foi Merkel quem primeiro sustentou a unidade do ilícito como violação culposa da lei, e provou que a sanção penal tem caráter subsidiário, ou seja, é meio mais enérgico, que deve ser aplicado quando não há outro meio suficiente (MARQUES, 1997, p. 21). No direito pátrio, HUNGRIA (1945, p. 17-18) há muito já defendia a inexistência de distinção substancial entre ilícito administrativo e ilícito penal, inclusive quanto às sanções aplicadas, remanescendo tão somente uma diferença de grau ou quantidade. A distinção, portanto, repousa na reação cominada pelo ordenamento jurídico a uma ou outra forma de ofensa, determinando-se a natureza do ilícito por mera opção legislativa baseada no interesse social e estatal, que pode variar no tempo e no espaço, levando em consideração, ainda, as diretrizes contidas na Constituição. Por essa razão, quando se trata dos diferentes regimes de responsabilização, condutas diferentes que violem o mesmo bem jurídico podem ser caracterizadas como penais e não-penais, conforme sejam consideradas mais ou menos intoleráveis (desvalor da conduta – tutela seletiva do bem jurídico – princípio da fragmentariedade).
Nesse contexto, conquanto a própria Lei preveja que a punição por improbidade administrativa decorre de responsabilidade distinta e independente das responsabilidades penal, civil e administrativa (disciplinar) previstas na legislação específica (art. 12, caput, da Lei n° 8.429/92), tem-se observado um estreitamento entre as fronteiras do regime jurídico penal e do regime jurídico administrativo em matéria punitiva (Direito Administrativo Sancionador), mediante, principalmente, a importação para o Direito Administrativo de princípios e garantias tradicionalmente concebidos na esfera penal, ainda que com certas modulações. Nas palavras de PRADO (2001, p. 27-28):
ditos regimes jurídicos, que corriam como dois rios paralelos, passam a apresentar pontos de contato, suas águas começando a se misturar. Mas é oportuno assinalar que o direito penal mereceu elaboração teórica minuciosa, ao passo que as infrações administrativas só muito recentemente mereceram um esforço coerente de sistematização, ainda não consolidado em definitivo – razão pela qual o intercâmbio entre as duas áreas caracteriza-se mais pela transferência para o âmbito administrativo de princípios e garantias tradicionalmente concebidos na esfera penal[2].
Há ainda de se destacar que,
tanto quanto os delitos, os atos de improbidade administrativa contêm uma conotação infamante, ensejando uma particular reprovação social que não se observa, de ordinário, na generalidade das infrações administrativas, ademais, as hipóteses de improbidade coincidem, em larga medida, com tipos delituosos que, com diferenças de extensão, contemplam, frequentes vezes, as mesmas condutas (PRADO, 2001, p. 24-25).
Essas características fazem com que os atos de improbidade administrativa, embora configurem infrações administrativas, aproximem-se em larga medida das infrações penais, apresentando-se ambos (atos de improbidade e infrações penais) “como derivações de um jus puniendi estatal que as submete a princípios comuns, aplicáveis em ambas as esferas” (PRADO, 2001, p. 29)[3].
Apesar dessa aproximação, não existe identidade absoluta de regimes jurídicos entre essas categorias de ilícito, porquanto, ainda que seja incontestável a aplicação de princípios fundamentais comuns aos âmbitos administrativo e penal, em razão das peculiaridades dos regimes jurídicos de cada um desses ramos do Direito, quando concretizados, esses princípios ganham contornos distintos. Ademais, mesmo quando alguns princípios penais são aplicados ao Direito Administrativo Sancionador, o são com certas modulações – ou adaptações, mitigações – em razão das peculiaridades dos regimes jurídicos. De fato, em certos casos, faz-se politicamente necessário que uma mesma conduta violadora seja sancionada tanto na esfera extrapenal quanto na esfera penal, pois a finalidade e o objetivo de uns (civil/administrativo) e outro (penal) ramos do Direito são diversos, além de serem diversas as formas de interpretação dos princípios aplicáveis (CERVEIRA, 2005, p. 31 e 35-36).
Não obstante a inaplicabilidade da tese da unidade do ius puniendi, a ausência de distinções substanciais ou ontológicas entre os ilícitos penais e não-penais permite falar em um “direito constitucional limitador do ius puniendi do Estado”, ou seja, o direito constitucional pode limitar, a um só tempo, qualquer exercício de pretensão punitiva, inclusive as sanções privadas (OSÓRIO, 1999, p. 79). Essa busca por limitações ao ius puniendi estatal no campo da improbidade administrativa decorre do reconhecimento – ainda pouco desenvolvido pela doutrina e jurisprudência pátrias – de que, embora não configurem infrações penais, a gravidade das sanções cominadas aos atos ímprobos exige maior rigor científico para sua aplicação, inclusive mediante a aproximação de seus critérios punitivos aos da responsabilização penal. Com efeito, muitas vezes “o poder punitivo estatal em diplomas extrapenais é mais drástico, repressor e antidemocrático que o próprio direito penal, encontrando-se o cidadão, por conseguinte, arbitrariamente [por opção legislativa – ainda que essa opção deva encontrar fundamento na Constituição] fora do círculo de proteção de garantias e princípios do direito penal” (CAPEZ, 2010, p. 187). O próprio HUNGRIA (apud CAPEZ, 2010) já considerava a possibilidade de que a sanção administrativa fosse mais rigorosa que a criminal, embora admitisse que o contrário fosse mais comum[4].
Destarte, torna-se necessário, independentemente da natureza atribuída às sanções previstas na Lei de Improbidade, assegurar a incidência de princípios e garantias constitucionais – em geral restritas ao âmbito penal – como forma de contenção da arbitrária punição estatal. Corolário desse entendimento traduz-se na necessidade de alterar o paradigma ainda vigente na atualidade, que concentra a análise do ato ímprobo no desvalor do resultado e não no desvalor da conduta, a fim de verificar a conformidade não apenas formal da conduta com a lei, mas também sua conformidade material com o conteúdo do que seja objetivamente considerado ato ímprobo, para, numa segunda etapa, legitimar a responsabilização subjetiva do agente (CAPEZ, 2010, p. 18 e 175-176)[5].
No presente trabalho, entretanto, restringir-nos-emos a investigar apenas um aspecto do que CAPEZ considera uma segunda etapa de limitação do ius puniendi estatal, qual seja, a responsabilização subjetiva do agente no que concerne à possibilidade de enquadramento da conduta culposa na Lei de Improbidade Administrativa.
3 Princípio constitucional da culpabilidade: exigência de responsabilização subjetiva do agente
Entre os princípios constitucionais que limitam o poder punitivo do Estado também no campo do Direito Administrativo pode-se citar o princípio da culpabilidade – no sentido de vedação da responsabilidade objetiva ou exigência de responsabilidade subjetiva – o qual, segundo OSÓRIO (2000, p. 84), não é um princípio exclusivamente penal, mas sim constitucional, embora não esteja explícito na Carta Magna (trata-se de princípio constitucional implícito). Por certo, no direito contemporâneo é inadmissível a imputação de um resultado danoso sem um elo psíquico que o vincule ao agente (princípio da culpabilidade), ressalvados os casos de responsabilidade objetiva, expressamente previstos no ordenamento jurídico[6]. Destarte, considerando que o dolo e a culpa são figuras que se fazem presentes no ordenamento jurídico como um todo, não sendo privativas do direito penal, além do vínculo causal-objetivo entre a conduta do agente e o resultado lesivo, é necessária a existência de um vínculo subjetivo conectando o agente à conduta (GARCIA; ALVES, 2006, p. 280-281)[7].
O estudo do elemento subjetivo e do dogma causal constitui importante barreira na contenção do ius puniendi. Todavia, esse estudo é relegado a segundo plano nos ramos jurídicos extrapenais, como tem ocorrido com a improbidade administrativa. Essa situação se deve ao pressuposto de que ao direito penal incumbiria, via de regra, a tarefa de sancionar mais gravosamente as condutas violadoras da ordem jurídica, constituindo a ultima ratio da repressão. Destarte, nesse ramo do Direito haveria maior preocupação doutrinária em se aprofundar no estudo de elementos limitadores do poder punitivo estatal. Ocorre que, como já referido alhures, “O ato de improbidade possui hoje a mesma carga sancionadora, impondo ao agente público idêntica nódoa à da imputação penal, infligindo os mesmos constrangimentos e trazendo equivalente aflição”. Logo, “não se pode admitir que exista maior exigência para a configuração de um crime, do que de um ato de improbidade”. Urge, portanto, o aprofundamento da doutrina em relação aos limites da Lei de Improbidade Administrativa, entre eles o elemento anímico dos atos ímprobos (requisito de natureza subjetiva para a configuração do tipo), inclusive mediante a aproximação de seus critérios punitivos aos da responsabilização penal, com a proteção de institutos solidamente edificados no bojo do direito penal, “a fim de conter o arbítrio na satisfação da pretensão de punir” (CAPEZ, 2010, p. 298 e 316-317 e 326).
No ponto, ressalva-se que, a despeito da tendência da doutrina e da jurisprudência de não vincular os conceitos referentes às diversas esferas de responsabilidade existentes, a ação ou a omissão praticada pelo agente é uma só e, portanto, a mesma para o direito penal, civil e administrativo[8]. O que varia são os efeitos decorrentes dessa conduta. Destarte, tem-se que a estrutura estabelecida para a ação pela doutrina penal é a mesma utilizada nas demais esferas de responsabilidade, ainda que com alguns “matizes” peculiares a cada um dos regimes jurídicos (como exemplo dessas peculiaridades pode-se citar a aceitação da presunção de culpa no direito civil, inadmissível no direito penal). Logo, embora as concepções de dolo e culpa não sejam privativas do direito penal, considerando a “ausência de uma dogmática edificada em bases sólidas” (CAPEZ, 2010, p. 219) no que concerne à interpretação e aplicação das normas contidas na Lei de Improbidade, e, principalmente, considerando a gravidade das sanções cominadas aos atos ímprobos, que aconselha a aproximação de seus critérios punitivos aos da responsabilização penal (como instrumento de delimitação do poder punitivo estatal), é com apoio na doutrina penal que trataremos do assunto, ou seja, é o modelo de responsabilização penal que será utilizado para a análise do elemento subjetivo da improbidade administrativa.
Leciona TAVARES (2009, p. 03.) que a culpa em sentido estrito é “criação da ordem jurídica”, uma vez que “Não há crime culposo em sentido natural”. JESUS (2009a, p. 293) ensina que na vida em sociedade os indivíduos devem pautar suas condutas de forma a não produzir danos a terceiros. “É o denominado cuidado objetivo”, que corresponde ao comportamento que teria adotado uma pessoa dotada de discernimento e prudência. No delito culposo, “A inobservância do cuidado necessário objetivo é elemento do tipo” (BITENCOURT 2008, p. 283-284).[9] Todavia, questiona-se: qual seria o cuidado exigível da pessoa-modelo, dotada de prudência e discernimento? Surge então o que a doutrina denomina de “previsibilidade objetiva”[10], isto é, a antevisão do resultado por uma pessoa prudente e de discernimento (JESUS, 2009a, p. 293-295). Previsibilidade é a possibilidade de antevisão do resultado da conduta. Todavia, “O legislador exige que o sujeito preveja o que normalmente pode acontecer, não que preveja o extraordinário, o excepcional”. Logo, a previsibilidade objetiva deve ser aferida não do ponto de vista do sujeito que realiza o ato, mas sim do homem prudente e de discernimento colocado na situação concreta. Conclui-se que a observância do dever genérico de cuidado que se espera dos indivíduos que vivem em sociedade pode ser aferida da seguinte maneira: o sujeito deve agir (no sentido lato: ação ou omissão) com diligência, antevendo o resultado normalmente obtido com a conduta que pretende praticar. Se o resultado era previsível pela pessoa-padrão, dotada de prudência e discernimento, mas não foi previsto pelo sujeito em questão, está caracterizada a inobservância do dever de cuidado objetivo e, portanto, a culpa inconsciente. Se essa conduta vier a produzir um resultado, estará configurado o crime culposo (JESUS, 2009a, p. 296-297).
Por outro lado, a responsabilização penal pela conduta culposa pressupõe a causação de um resultado naturalístico – com raras exceções – ou seja, ainda que o agente tenha deixado de observar seu dever de cuidado, se seu comportamento não gerar dano aos bens juridicamente tutelados pelo Direito Penal, não responderá o agente por crime culposo (GRECO, 2008, p. 200-201). Do mesmo modo, o resultado deve ser consequência da inobservância do dever de cuidado, ou seja, se observado o dever de cautela e, mesmo assim, ocorrer o resultado, não se poderá falar em crime, sob pena de responsabilização objetiva do agente. “A inevitabilidade do resultado exclui a própria tipicidade” (BITENCOURT, 2008, p. 284-286). Este autor destaca, ainda, que, embora nos crimes culposos se dê preponderância ao desvalor da ação (representado pelo cuidado objetivamente devido), somente quando ao desvalor da ação acrescenta-se o desvalor do resultado fica constituído o injusto nos delitos culposos, pois sem resultado não se pode falar em crime culposo.
GARCIA e ALVES (2006, p. 281), citando Hungria e Wolf, respectivamente, resumem a questão: “‘No dolo, ação (ou omissão) e resultado são referíveis à vontade; na culpa, de regra, somente a ação (ou omissão)’. ‘A incorreção representada pelo dolo provém da fraqueza da vontade, e a incorreção que a culpa representa provém da debilidade do intelecto’”.
Em geral, nos delitos de natureza culposa a conduta voluntária é dirigida a um fim lícito, mas que, por inobservância do dever de cuidado, dá causa a um resultado não querido, nem mesmo assumido, tipificado previamente na lei penal, ou seja, há uma deficiência na execução da finalidade (pune-se a conduta mal dirigida). Ao contrário, na conduta dolosa, como regra, existe uma finalidade ilícita (pune-se a conduta dirigida a um fim ilícito). Portanto, nos crimes culposos o que importa não é a finalidade do agente (que normalmente é lícita), nem a simples causação do resultado, mas sim o modo e a forma imprópria com que atua (MIRABETE, 2009, p. 132).
À primeira vista, a Lei de Improbidade Administrativa está em conformidade com o princípio constitucional da culpabilidade, limitador do ius puniendi estatal, ao exigir a responsabilização subjetiva do agente, em regra, pela presença do dolo (arts. 9º, 10 e 11), e, excepcionalmente, pela presença da culpa em sentido estrito na conduta (art. 10). Todavia, esclarecido em que consiste a conduta culposa, resta averiguar se ela é suficiente para, do ponto de vista constitucional, caracterizar o ato ímprobo, tal como previsto na Lei 8.429/92, ou se somente o dolo é elemento subjetivo hábil a configurar a improbidade administrativa. A solução para esse problema, contudo, perpassa a definição do que seja a improbidade administrativa.
4 Delimitação do conceito de improbidade administrativa
4.1 Interpretação jurídico-constitucional de conceitos indeterminados
Para desvendar o conteúdo jurídico-constitucional da expressão improbidade administrativa e, consequentemente, averiguar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da punição de condutas culposas no âmbito da Lei n° 8.429/92, é necessário realizar um “saneamento hermenêutico” (FREITAS, 1996, p. 70), primeiramente, entendendo os significados atribuídos aos termos moralidade administrativa e probidade administrativa – que representam os valores positivos exigidos dos agentes públicos – bem como determinando seus pontos de tangenciamento; e, em seguida, examinando a finalidade da norma que trata da improbidade administrativa, a fim de compatibilizar sua interpretação com a totalidade do sistema, evitando a existência de contradição em seu interior[11].
Inicialmente, a dificuldade desse mister encontra-se: (i) na inexatidão ou imprecisão inerente à linguagem, que permite diferentes interpretações dos termos empregados e (ii) na abertura ou incompletude do sistema jurídico, eivado de contradições e lacunas, que possibilita a modificabilidade da própria ordem jurídica[12]. Esta última característica é indispensável para a adaptação das normas aos valores sociais vigentes no momento de sua aplicação, uma vez que seria inviável acompanhar as mutações sociais mediante produção legislativa[13].
Por outro lado, o atual método legislativo utilizado (conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais, etc) afrouxou o vínculo que prendia o juiz à lei, permitindo o protagonismo da atividade interpretativa (criativa) do aplicador do Direito. Essa abertura do sistema, contudo, não autoriza a discricionariedade judicial na atividade subjetiva de conferir conteúdo ao vocábulo jurídico, pois existem métodos de interpretação das normas jurídicas destinados a evitar a arbitrariedade (interpretação gramatical, histórica, teleológica, sistemática) sendo que, na maioria das vezes, uma interpretação adequada da norma dependerá da combinação desses métodos[14]. Diante dessa perspectiva, pode-se dizer que a atividade interpretativa é limitada pelo núcleo semântico (núcleo significativo mínimo) (FIGUEIREDO, apud HARGER, 2009, p. 168) do termo interpretado, pela situação anterior à lei e toda sua evolução histórica (consideradas pela ‘vontade do legislador’), pela ratio do preceito legal, ou seja, pela finalidade visada pela lei, bem como por todas as demais normas, princípios e valores jurídicos do sistema (respectivamente: interpretação gramatical, histórica, teleológica e sistemática). Destarte, mesmo os conceitos jurídicos indeterminados são finitos.
BITENCOURT NETO (2005, p. 100), com fundamento na lição de Enterría e Fernández, destaca que embora os conceitos indeterminados não possam ser imediatamente determinados no momento da leitura, o serão no momento da aplicação, havendo “uma única solução justa” para sua aplicação, ou melhor, uma única interpretação justa, ao contrário do que ocorre nas hipóteses de discricionariedade, em que há opção entre mais de uma solução justa[15]. Todavia, OSÓRIO (2000, p. 77-78) adverte que podem haver
discrepâncias judiciais na interpretação de termos e elementos juridicamente nebulosos e indeterminados, discrepâncias que, em última análise, não eliminam o ideal de uma única resposta correta, embora o Direito deva conformar-se, por exigências pragmáticas, em certas circunstâncias (nem sempre, portanto), com pluralidade de respostas diversas, considerando-as, todas, juridicamente corretas.
Essas discrepâncias podem resultar tanto da pluralidade de sentidos de uma palavra que exprime o conceito, quanto da imprecisão dos limites do conceito. Na primeira hipótese, é “a interpretação a partir do contexto que tira a claro qual dos sentidos está em jogo em cada caso”. Já na segunda hipótese, pode-se distinguir nos conceitos jurídicos indeterminados um núcleo conceitual (quando se tem noção clara do conteúdo e da extensão do conceito) e um halo conceitual (onde as dúvidas começam) (ENGISCH, 1996, p. 208-210 e 259). Em outras palavras, existem três zonas de incidência: a zona de certeza positiva, a zona de certeza negativa, e a zona gris, ou seja, algumas situações indubitavelmente estarão inclusas no conceito, outras jamais serão abrangidas por ele, mas existem aquelas que estarão numa zona de incerteza (HARGER, 2009, p. 169-170).[16]
Assim, ainda que os conceitos constitucionais de moralidade e improbidade sejam indeterminados, eles possuem certas propriedades que estão relacionadas ao conteúdo mínimo de seu significado (núcleo semântico). São essas propriedades que condicionarão o agir dos administradores, legisladores infraconstitucionais e juízes. Isso significa que “os conceitos normativos utilizados pelo constituinte nada mais são do que seletores de ‘propriedades’ que condicionam administradores, legisladores e juízes” (HARGER, 2009, p. 172). Portanto, não há como desvincular completamente os termos moralidade e improbidade de seus sentidos originais/constitucionais, sob pena de ferir a unidade do sistema em meio à multiplicidade axiológica, ampliando o alcance da norma a limites não almejados constitucionalmente[17].
4.2 Moralidade administrativa
Não se pretende, aqui, esgotar o significado dos termos ‘moral’ e ‘moralidade administrativa’, inclusive porque, no que se refere a esta última, mesmo após mais de 20 anos da consagração da expressão na Constituição Federal, a mais abalizada doutrina ainda encontra dificuldades em preencher seu conteúdo. Destarte, o que se pretende é tão somente fornecer subsídios, a partir de um significado mínimo, para a análise da sua relação com a probidade administrativa.
A “semente de consciência” da distinção entre Moral e Direito acha-se em Roma: ‘Non omne quod licet honestum est’ – nem tudo que é lícito é honesto (GARCIA; ALVES, 2006, p. 68)[18]. Tanto a Moral, quanto o Direito, buscam regular as relações humanas, pautando o atuar dos indivíduos na sociedade. Todavia, o Direito se satisfaz com a conformidade externa da conduta à regra (heteronomia), enquanto a Moral exige a identificação entre a vontade do agente e o enunciado da regra moral (autonomia) (BITENCOURT NETO, 2005, p. 58, 66, 70 e 71). A despeito da distinção, GARCIA e ALVES (2006, p. 69-70) explicam que o Direito encampa a Moral naquilo que considera mais relevante para a estabilidade das relações sociais, ou seja, “Não raras vezes, a regra moral penetra no mundo jurídico e, com o auxílio do poder de coerção estatal, torna-se uma regra obrigatória de conduta”. Em síntese, a Moral sempre se fará sentir no Direito, seja por tomar a forma de norma de direito, seja por fornecer subsídios para a interpretação e integração da norma de direito na realidade social. E concluem esses autores:
Identificada a existência de um regramento moral e outro jurídico, a observância deste será tanto mais forte quanto for sua superfície de coincidência com os padrões de moralidade do grupamento que haverá de ser por ele regido. Correspondendo ao ideal moral, a norma será respeitada de forma voluntária, tendo-se um reduzido número de irresignações. Colidindo com os padrões de moralidade, haverá grande resistência à sua observância (...).
Nesse contexto, o princípio da moralidade administrativa trata de uma “moral jurídica”, ou seja, de valores juridicizados, que se destinam a nortear a conduta do administrador (CAMMAROSANO, apud HARGER, 2009, p. 174-175)[19]. No ponto, quando se utiliza a expressão valores juridicizados, pretende-se ampliar o significado até então conferido pelo princípio da legalidade, de modo que “a atuação do Estado deve estar em harmonia com o Direito”, abrangendo, portanto, todo o ordenamento jurídico (regulamentos, princípios gerais, etc) e não apenas as regras (GARCIA; ALVES, 2006, p. 49; BITENCOURT NETO, 2005, p. 78).
Essa tendência de aproximação entre o Direito e a Moral já era sentida no Direito Privado, onde foram consagrados conceitos como os de abuso de direito e locupletamento indevido. Para BITENCOURT NETO (2005, p. 78 e 80), foi a partir do conceito de abuso de direito que se construiu o conceito de desvio de poder no âmbito de atuação do Estado, sendo este, por seu turno, o “embrião do conceito de moralidade administrativa”.
Poder-se-ia dizer que a moralidade administrativa engloba tanto noções de moral comum, como, por exemplo, o conceito de honestidade, como regras técnicas, em última instância derivadas da finalidade pública (busca do bem comum). Entretanto, embora, esteja impregnada de noções da moralidade comum, com esta não se confunde, visto que a moralidade administrativa “implica, tão somente, na necessidade de que os atos externos e públicos dos agentes detentores de poder e de atribuições sejam praticados de acordo com as exigências da moral e dos bons costumes, visando uma boa administração” (DELGADO, 1992, p. 36-37). A moralidade administrativa é, portanto, uma vertente da moralidade pública[20], correspondendo aos valores morais abarcados pelo Direito – juridicizados – e relacionados à atividade estatal.
Há autores, por outro lado, que consideram a moralidade administrativa desvinculada da intenção do agente (foro íntimo), bastando o atendimento ao standard jurídico da boa administração, que pode ser aferido da apreciação dos motivos em relação ao objeto do ato, o qual deve estar em harmonia com o interesse público, com o dever de bem administrar[21] e com a concretização do bem comum (MOREIRA NETO, 1992, p. 07-14).
São muitas, portanto, as dificuldades doutrinárias para o preenchimento do conteúdo da moralidade administrativa, pois, como sintetiza GIACOMUZZI (2002, p. 180), com fundamento na tese de Germana de Oliveira Moraes, o conteúdo do princípio está relacionado “ora com a teoria do desvio de poder, ora com a moral interna da Administração, ora com o dever de boa administração, ora com pautas éticas da atuação dos agentes públicos”.
4.3 Probidade administrativa e sua relação com a moralidade administrativa
Alguns autores defendem que, diante do conteúdo dos textos legais que a partir da Constituição de 1988 se referem à moralidade e à probidade administrativas, essas noções se tornaram independentes e distintas (GIACOMUZZI, 2002, p. 287;. FERNANDES, 1997, p. 172). Todavia, parece inviável tratar de uma sem referir-se à outra, uma vez que a doutrina em geral, ao definir a probidade, remete ao conceito de moralidade administrativa como sendo gênero ou espécie daquela.
No ponto, portanto, não é pacífica a doutrina: para alguns, a moralidade engloba a probidade, enquanto, para outros, é a probidade que abarca a moralidade. Para uns, a probidade está diretamente relacionada com a honestidade e a boa-fé (em contraposição à má-fé, subjetiva pois), de modo que a improbidade seria uma imoralidade qualificada pelo elemento subjetivo. Para outros, contudo, a improbidade como ato ilícito (atos previstos na Lei 8.429/92) não está relacionada com os princípios da probidade e da moralidade administrativas, pois abrange principalmente atos ilegais.
A dificuldade na conceituação do dever – ou princípio – de probidade administrativa refletirá no preenchimento do conteúdo da improbidade administrativa e, consequentemente, na delimitação do alcance dos tipos previstos na Lei n° 8.429/92, conforme será demonstrado a seguir.
4.4 Improbidade administrativa
Nem a Constituição, nem a Lei n° 8.429/92 apresentam um conceito de improbidade administrativa geral e amplamente aplicável, embora este diploma legal identifique alguns atos de improbidade por meio da combinação: cláusulas gerais (caput) mais método casuístico (incisos). Ocorre que a ausência de uma definição mínima do conteúdo jurídico-constitucional da improbidade administrativa compromete não apenas a compreensão do instituto, mas, principalmente, a adequada subsunção das condutas dos agentes públicos às prescrições da Lei de Improbidade, em conformidade ao princípio da juridicidade. Assim, necessário se faz o preenchimento, pela doutrina, do conteúdo da expressão improbidade administrativa, ainda que essa tarefa envolva um risco, “pela insuficiência do conceito que venha a ser obtido, diante da amplitude da proteção conferida aos princípios constitucionais norteadores da Administração Pública, e considerando também a diversidade de situações que seu texto enquadra nesse conceito” (DECOMAIN, 2007, p. 22).
Em geral, para os autores que consideram a probidade administrativa como uma espécie ou derivação do princípio da moralidade administrativa fica evidente que os valores honestidade, honra, lealdade e afins preenchem o conteúdo significativo da expressão probidade administrativa, de modo que sua violação (ato de improbidade) depende de condutas intrinsecamente desonestas, desonrosas e desleais (HARGER, 2009; PAZZAGLINI FILHO, 2007). GIACOMUZZI (2002, p. 288-289) sintetiza seu entendimento sobre o âmbito de aplicação da Lei de Improbidade na máxima proposta por Pedro Henrique Távora (lapidada por Cláudio Ari Mello): “o legislador pune o administrador desonesto, não o administrador incompetente”. Para estes devem ser aplicadas outras sanções, que não as punições extremadas previstas na Lei 8.429/92.[22]
Há autores, entretanto, que consideram que a improbidade administrativa, com o advento da Lei n° 8.429/92, superou o conceito de desonestidade, adquirindo um significado normativo próprio, que afasta o significado semântico usualmente utilizado (BARBOZA, 2008; GARCIA; ALVES, 2006). Nesse caso, a improbidade estaria relacionada com a atuação desconforme às normas (regras e princípios) e, sendo a eficiência um dos princípios norteadores da Administração Pública, sua inobservância (por ineficiência ou incompetência do agente) também geraria violação à probidade administrativa. Para estes autores é, portanto, plenamente possível a existência de atos de improbidade culposos.
A multiplicidade de conteúdos fornecidos pela doutrina à expressão improbidade administrativa interfere na avaliação da constitucionalidade da previsão de condutas ímprobas na modalidade culposa. Se adotarmos um conceito de improbidade administrativa recheado de valores morais, como honestidade e lealdade (intrinsecamente relacionados à vontade consciente do sujeito), parece inviável falar-se em improbidade nessa modalidade. Por outro lado, se adotarmos um conceito mais objetivo, no sentido de conduta contrária às normas, então inexistiria qualquer impedimento para a improbidade culposa.
Não temos, portanto, a pretensão de estabelecer o conteúdo jurídico-constitucional da expressão improbidade administrativa, mas apenas demonstrar que o preenchimento desse conteúdo determinará o alcance dos tipos sancionadores, tornando possível, ou não, conforme o conceito adotado, falar-se em improbidade administrativa na modalidade culposa.
5. (In)constitucionalidade da conduta culposa na Lei de Improbidade Administrativa
A Lei n° 8.429/92, ao disciplinar os atos que causam lesão ao erário (art. 10), previu expressamente a possibilidade da existência de improbidade administrativa em decorrência de atos culposos. Cumpre, neste momento, analisar se essa previsão encontra guarida no ordenamento jurídico pátrio.
Dentre os dispositivos tipificadores dos atos de improbidade administrativa (arts. 9º, 10 e 11 da LIA), somente o art. 10 se refere ao elemento subjetivo da conduta. É mais ou menos pacífico na doutrina que, por força da aplicação analógica do art. 18, do CP, somente havendo expressa previsão legal é que se pode punir o agente em virtude de uma conduta culposa, destarte, inexistindo referida previsão nos arts. 9º e 11, somente as condutas dolosas subsumem-se a esses dispositivos[23].
No que concerne ao art. 10, da LIA, GARCIA e ALVES (2006, p. 48, 109-110, 282-284) defendem a constitucionalidade do preceito, sustentando a inexistência de identidade entre os conceitos constitucionais de moralidade, improbidade e desonestidade; bem como que a Constituição, em seu art. 37, § 4°, conferiu amplo espectro ao legislador ordinário, concedendo-lhe total liberdade de conformação para integrar à tipologia dos atos de improbidade inclusive condutas culposas[24]. Para eles, se a Lei 8.429/92 apenas tivesse feito referência à violação da probidade e estabelecido a respectiva sanção, à integração do conceito deveria concorrer seu sentido semântico, entretanto, o legislador preferiu indicar expressamente o que se deve entender por improbidade, “daí a impossibilidade de o semântico sobrepor-se ao normativo”. Por outro lado, entretanto, esses autores defendem a possibilidade de dosagem da punição de acordo com o grau de culpa, sendo viável, inclusive, o afastamento da incidência do tipo legal, quando for reduzida a previsibilidade do dano e o descumprimento dos deveres do cargo for por demais insignificante. Nesse contexto, partindo do pressuposto de que a improbidade administrativa é caracteriza pela atuação em desconformidade com as normas (regras e princípios) às quais está sujeito o agente, é possível a configuração do ato ímprobo na modalidade culposa, considerando a culpa como a inobservância do dever de cuidado objetivo.
DECOMAIN afirma que a ação descuidada, marcada pelo desinteresse na preservação daquilo que pertence à Administração Pública (pouco caso pela coisa pública) configura-se como desonestidade, em razão da incúria no exercício da função. Todavia, com essa afirmação não podemos concordar, uma vez que conceitos morais, como o de desonestidade, estão intrinsecamente relacionados à vontade consciente do sujeito, logo, carecem do elemento subjetivo doloso. Essa também é a crítica cabível ao entendimento esposado por GIACOMUZZI (2002, p. 300-302), que afirma não haver incompatibilidade entre desonestidade e culpa, pois considera que o conteúdo do dever de diligência muda em função da espécie do suporte fático, podendo coincidir com o comando de normas legais ou regulamentares. Dessa forma, no caso da improbidade culposa, “o dever de diligência é relativo ao cuidado com o Erário, explícito no caput do art. 10 da LIA”. Para esse autor o elemento culpa stricto sensu ganha maior relevância no ilícito administrativo de improbidade do art. 10, da LIA, “porque indica firmemente um maior dever de cuidado ao patrimônio público”, parecendo evidente que “o legislador, no art. 10 da LIA, emprestou [...] força ao desvalor do resultado (dano ao Erário)”.
Em primeiro lugar, entende-se que o dever de diligência é um só, consubstanciado no dever dos indivíduos de pautar suas condutas de modo a não produzir danos a terceiros (incluído aí o Estado e o patrimônio público). Portanto, a culpa está relacionada à previsibilidade do resultado decorrente de uma conduta. O agente público deve agir (no sentido lato: ação ou omissão) com diligência, antevendo o resultado normalmente obtido com a conduta que pretende praticar. Se o resultado era previsível pela pessoa-padrão, dotada de prudência e discernimento, mas não foi previsto pelo sujeito em questão, está caracterizada a inobservância do dever de cuidado objetivo e, portanto, a culpa. Essa culpa, de nenhuma forma pode ser vinculada à desonestidade do agente, mas antes à “debilidade do intelecto”[25].
JUSTEN FILHO (2005, p. 686-687 e 690-691) sustenta que a configuração da improbidade “depende da consciência e da intenção de promover as condutas ímprobas”, não havendo improbidade culposa, embora não se exija dolo específico, devendo-se, ainda, considerar a existência de diversidade de graus de consciência e reprovabilidade. Quanto à previsão do art. 10, da Lei n° 8.429/92, que alude a ações ou omissões culposas, afirma que “Essa hipótese apenas pode ser admitida como geradora de responsabilidade limitada, em situação excepcional”, ou seja, a regra é a exigência do elemento subjetivo doloso, todavia algumas hipóteses previstas no art. 10 da Lei n° 8.429/92 comportam a possibilidade de configuração da improbidade culposa, especialmente quando se trate de conduta omissiva, como ocorre, por exemplo, no inciso X daquele dispositivo. Por tudo quanto já foi dito, o posicionamento de JUSTEN FILHO parece-nos uma contradição em termos, pois explicitamente afirma que a improbidade “pressupõe a atuação maliciosa preordenada à obtenção de um resultado conhecido como indevido” e, logo em seguida, admite a possibilidade de configuração da improbidade culposa, sem, entretanto, explicar a razão dessa conclusão.
FREITAS (1996, p. 67) entende que as sanções cominadas às espécies de improbidade administrativa não devem ser aplicadas aos agentes que tenham condutas culposas leves ou levíssimas, “exatamente em função do ‘telos’ em pauta e por não se configurar a improbidade, nestas situações, sequer por violação aos princípios, sendo de grifar que a preservação do sistema jurídico não se coaduna com excessos de qualquer matiz”. Conclusão lógica do entendimento esposado por FREITAS é o de que somente a culpa grave deve ser punida como ato de improbidade tipificado no art. 10 da Lei n° 8.429/92 quando causar prejuízo ao erário. Ocorre que, quando trata da conduta tipificada no art. 11 do mesmo diploma legislativo, esse autor afirma que “o cometimento de uma irregularidade acompanhada pela marca indelével da desonestidade do agente ou da deslealdade para com o Poder Público, implica, sem suficiente grau, a violação ao princípio da probidade administrativa”, caracterizando, portanto, a improbidade (FREITAS, 1996, p. 78). Tal afirmação, somada àquela já citada, no sentido de que o princípio da probidade administrativa é especificação (subprincípio) do princípio da moralidade, significando vedação de atos desonestos ou desleais para com a Administração Pública (FREITAS, 1996, p. 70-71) levam à conclusão da impossibilidade de existência de ato de improbidade por conduta culposa, uma vez que a culpa, justamente por ser involuntária, não pode caracterizar um agir desonesto ou desleal. Portanto, ao contrário do quanto afirmado por esse autor, nem mesmo a culpa grave poderia ser punida como ato de improbidade. No ponto, cumpre observar que a gravidade da culpa não está relacionada à intenção da conduta, mas sim à maior possibilidade de antevisão (previsão do resultado) pelo homem-padrão, ou seja, a maior gravidade da culpa não a aproxima do dolo, visto que, ainda que fosse mais facilmente previsível o resultado por uma pessoa dotada de prudência e discernimento, não o foi pelo agente. Assim, como bem acenaram GARCIA e ALVES (2006), em se tratando de atos culposos, a intensidade da culpa não é capaz de limitar a incidência do tipo, mas tão somente das sanções, que devem ser aplicadas de acordo com o princípio da proporcionalidade.
PAZZAGLINI FILHO (2007, p. 78-79), mesmo defendendo a possibilidade de existência de improbidade administrativa na modalidade culposa, admite a dificuldade em “se harmonizar em uma atitude ilícita do administrador as marcas simultâneas de improbidade e de culpa”, pois
o vocábulo ‘improbidade’, constante da formulação constitucional, repele a possibilidade de sancionar, como ímprobos, atos que não evidenciem um desvio ético, uma desonestidade, uma transgressão consciente a preceito de observância obrigatória.
Em sentido contrário, defendendo a impossibilidade de incidência da Lei de Improbidade às condutas culposas, FIGUEIREDO (2009, p. 49-50 e 97) afirma que não é crível punir o agente público ou equiparado “quando o ato acoimado de improbidade é, na verdade, fruto de inabilidade, de gestão imperfeita, ausente o elemento de ‘desonestidade’, ou de improbidade propriamente dita”. Para esse autor, o art. 10 da Lei n° 8.429/92 ultrapassou a previsão constitucional ao estabelecer um conceito elástico de improbidade administrativa, que abarca, de forma desproporcional e desarrazoada, “qualquer ação ou omissão dolosa ou culposa”. Destarte, para afastar a inconstitucionalidade, é necessário abrandar o rigor legal para amoldá-lo ao espírito constitucional, interpretando o referido dispositivo conforme a Constituição.
Com efeito, beira as raias do absurdo pensar que um agente público, em razão de uma conduta culposa (involuntária, portanto, quanto ao resultado danoso), que cause pequena lesão ao erário, tenha seus direitos políticos suspensos, seus bens indisponíveis e, ainda, perca a função pública, entre outras sanções previstas no inciso II, do art. 12, da Lei n° 8.429/92. Destarte, os princípios da proporcionalidade, da proibição de excesso e da racionalidade devem ser utilizados como balizadores para uma adequada interpretação do elemento subjetivo do tipo, a fim de se evitar situações arbitrárias. É sempre necessária “uma análise global do fato, e sua adequada punição, tendo sempre em mente a proporcionalidade das previsões e suas consequências” (FIGUEIREDO, 2009, p. 97).
ALVARENGA (apud GIACOMUZZI, 2002, p. 301), justamente por entender que a improbidade é uma imoralidade qualificada pela desonestidade, conclui pela inconstitucionalidade da expressão culposa constante no art. 10, da LIA. Na mesma linha, HARGER (2009) defende a inconstitucionalidade do dispositivo porque as hipóteses nele previstas dependem da ocorrência de dolo específico de causar lesão ao erário.
De tudo quanto foi exposto extrai-se que a multiplicidade de conteúdos fornecidos pela doutrina à expressão improbidade administrativa – ora relacionando-a a valores morais como desonestidade e deslealdade, intrinsecamente relacionados à vontade consciente do sujeito, ora definindo-a tão somente como conduta contrária às normas – acaba por dificultar a compreensão do instituto e a delimitação do alcance dos tipos sancionadores.
6 CONCLUSÕES
Parece-nos incontestável que, aceitando-se a definição de probidade administrativa como o dever do agente público de, no desempenho de suas funções, agir com honestidade, decência e honradez, movido sempre e exclusivamente pela concreção dos fins de interesse público da Administração a que está vinculado, a improbidade somente estará caracterizada quando o elemento volitivo da conduta estiver eivado de desonestidade, deslealdade, etc, ou seja, somente se poderá falar em improbidade quando houver conduta dolosa, pois considerar alguém desonesto por mera culpa configura uma contradição. No ponto, nem mesmo o princípio democrático (no sentido de opção discricionária do legislador) pode ser chamado a defender a constitucionalidade do art. 10, da LIA, sob pena de incongruência do sistema jurídico considerado como um todo (incluídas as noções de dolo e culpa, bem como de moralidade que perpassam os princípios informadores da Administração Pública).
Por outro lado, se considerarmos a improbidade administrativa sob um aspecto objetivo – ou seja, sem preenchê-la com conceitos intrinsecamente morais – como atuação contrária às normas regentes da Administração (incluídas aí todas as regras e princípios tanto constitucionais quanto de legislações setoriais), torna-se plenamente possível, pelo menos do ponto de vista lógico, a existência de improbidade administrativa na modalidade culposa.
Ocorre que, conforme afirmado alhures, o sistema deve ser interpretado como um todo, e os conceitos jurídicos, mesmos os indeterminados, possuem certas propriedades que estão relacionadas ao conteúdo mínimo de seu significado (núcleo semântico) e que devem condicionar o agir dos administradores, legisladores infraconstitucionais e juízes. Nessa perspectiva, acreditamos que a improbidade administrativa, seja do ponto de vista gramatical, seja do ponto de vista histórico e teleológico, sempre esteve conectada indissociavelmente ao combate à corrupção. Atualmente, ainda que o espectro de proteção do patrimônio público tenha sido alargado pela LIA, não podemos olvidar de sua interpretação sistemática, que está intimamente ligada à punição de condutas abertamente (e, portanto, dolosas) contrárias às normas regentes da Administração Pública. Entendimento contrário levaria a cunhar de ímprobos praticamente todos os erros de previsibilidade cometidos pelos agentes públicos, os quais, por evidente, não devem restar impunes, ante a exigência de maior cuidado decorrente da função pública desempenhada, todavia, afirmar que a conduta culposa não configura improbidade administrativa não acarreta a impunidade do agente estatal, uma vez que existem outros regimes de responsabilidade menos gravosos, mas que cumprem satisfatoriamente o escopo de proteção do patrimônio público, sem, entretanto, impingir a pecha de corrupto ou desonesto ao agente tão somente incauto.
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[1] O Direito Administrativo Sancionador é “a parte do Direito Administrativo que cuida de tipificação de condutas ilícitas e de sanções” (OSÓRIO, 2006, p. 177. Ver, ainda: OSÓRIO, 2007; e OSÓRIO, 1999, p. 71-77). Esse autor inova ao separar o direito administrativo sancionador da presença supostamente inarredável da Administração Pública no polo sancionador, o que possibilita a aplicação de sanções administrativas tanto por processo administrativo, quanto por meio de processo judicial, como ocorre no caso da responsabilização por improbidade administrativa. Considera-se, nesse contexto, que as sanções administrativas podem servir à Administração para tutelar sua organização ou ordem internas (autotutela, como por exemplo, a sanção disciplinar), ou tutelar a ordem social geral (“heterotutela, ‘dificilmente distinguível’ do poder punitivo penal”, como por exemplo, a sanção por improbidade administrativa) (OSÓRIO, 2006, p. 156).
[2] Para OSÓRIO (2007, p. 241) “O direito penal tem sido a melhor referência histórica para o balizamento e a limitação do poder punitivo estatal, inclusive quando é este último exercido por autoridades administrativas ou por autoridades judiciárias na prática de poderes jurisdicionais de imposição de sanções administrativas. Não se trata de reduzir as fontes do direito administrativo sancionador ao direito penal, como se este ostentasse alguma espécie de superioridade normativa. Trata-se apenas de perceber a superioridade teórica da dogmática penal, que pode e deve servir de inspiração garantista na seara do direito administrativo punitivo, eis que ambas constituem projeções do direito punitivo público, carecendo de limites e contornos básicos comuns”.
[3] A despeito da tendência à aproximação entre o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal, mediante principalmente a adoção no âmbito de aplicação da Lei de Improbidade Administrativa dos princípios e garantias tradicionalmente concebidos na esfera penal, as garantias ao agente responsabilizado por ato de improbidade ainda são precárias sob determinados ângulos (JUSTEN FILHO, 2005, p. 695).
[4] Nesse sentido, CAPEZ (2010, p. 16 e 203) destaca que “na Lei de Improbidade Administrativa existem penas igualmente ou até mais rigorosas do que as estabelecidas no Código Penal, sobretudo se atentarmos para o fato de que somente as penas privativas de liberdade superiores a 8 (oito) anos de reclusão são efetivamente cumpridas em regime fechado e que o direito penal atual está fortemente arrimado na imposição de penas alternativas, cuja aflição é em muito excedida pelas penas previstas na referida lei para o ato de improbidade”. Essa “gritante desproporcionalidade entre as penas previstas no Código Penal e na Lei de Improbidade Administrativa”, segundo o autor, além de afastar o argumento de que ao Direito Penal incumbiria a imposição das mais drásticas sanções, deveria condicionar a interpretação e aplicação da Lei de Improbidade, independentemente da natureza das sanções nela previstas, aos princípios e garantias penais, como se norma penal fosse.
[5] Esse autor propõe uma aproximação entre a interpretação dos atos ímprobos e das infrações penais, mediante análise formal e material dos “tipos” previstos na LIA. Assim, antes da análise do elemento subjetivo da vontade do agente, deve-se analisar a natureza da conduta por ele praticada, com arrimo nos pressupostos da teoria da imputação objetiva, isto é, se o comportamento era permitido, gerou um risco permitido, logo, não pode ser ligado causalmente a um resultado proibido. “Somente se a conduta for proibida, e com isso criar um risco proibido, será possível falar em causalidade entre ela e o resultado. Apenas nesse caso ingressa-se na segunda etapa, quando se verifica a existência do dolo ou da culpa”.
[6] Como por exemplo, o art. 14, § 1º, da Lei n° 6.938/81.
[7] Embora esse seja o posicionamento da doutrina majoritária, é possível encontrar entendimento contrário: “a exigência de dolo e culpa [na Lei de Improbidade Administrativa] enfraquece a exegese constitucional da norma, enquanto protetora dos direitos fundamentais de terceira geração (solidariedade) (...) indo contra a doutrina e as teorias mais avançadas da responsabilidade civil, que de há muito abandonaram a análise da vontade como pressuposto da responsabilidade. (...) não há espaço para voluntarismos, senão busca da boa-fé objetiva no âmbito do direito administrativo” (MARTINS, 2009, p. 140).
[8] Von Listz, explicitando a teoria finalista de Welzel afirma: “WELZEL pretende mostrar que los objetos sobre los que el Derecho formula sus conceptos son siempre los mismos y que, por lo tanto, lo que para una ciencia es verdadero también lo debe ser para la outra. Lo que sucede es que no en todas las ciencias el mismo objeto se presenta en su totalidad. Por el contrario, una mejor descripción indicaria que en las distintas ciencias se estudian aspectos diferentes de un mismo objeto”. (KREBS, 2000, p. 278 e 281-282).
[9] Essa autor ressalva, entretanto, que uma ação meramente arriscada ou perigosa não implica necessariamente a violação do dever objetivo de cuidado, pois é imprescindível que o agir descuidado ultrapasse os limites do perigo socialmente aceitável. TAVARES (2009, p. 03) não vê a culpa como simples variação do elemento subjetivo, mas como forma especial de imputação, ou seja, de aferição de responsabilidade, “que tem por fundamento a realização de uma conduta que exceda os limites do risco autorizado e se veja assinalada como penalmente relevante em um tipo de delito”.
[10]Ainda que o agente não tenha previsto, no caso concreto, o resultado de sua conduta, ele deve ser capaz de prevê-lo, pois “Se o fato escapar totalmente à previsibilidade do agente, o resultado não lhe poderá ser atribuído, mas sim ao caso fortuito ou à força maior”. Ademais, a previsibilidade condiciona o dever de cuidado, ou seja, de quem não pode prever, não se pode exigir dever de cuidado. GRECO (2008, p. 201-203) destaca ainda a diferença entre previsibilidade objetiva e previsibilidade subjetiva. A primeira consiste na substituição hipotética do agente pelo homem médio, de prudência normal, a fim de verificar se mediante a substituição haveria modificação do resultado. “Se, uma vez levada a efeito essa substituição hipotética, o resultado ainda assim persistir, é sinal de que o fato havia escapado ao âmbito de previsibilidade do agente, porque dele não se exigia nada além da capacidade normal dos homens”. Já na previsibilidade subjetiva são levadas em consideração as condições particulares, pessoais do agente, suas limitações e experiências, que serão consideradas por ocasião do exame de culpabilidade. Esse critério subjetivo de aferição da previsibilidade é bastante controverso na doutrina. Para JESUS (2009b, p. 77), “a culpa é a imprevisão do previsível”. Para MIRABETE (2009, p. 135), previsibilidade deve ser estabelecida conforme a capacidade de previsão de cada indivíduo (previsibilidade subjetiva), sem que para isso se tenha de recorrer a nenhum “termo médio”.
[11] No ponto, importante destacar que FREITAS (1995, p. 53) considera a interpretação conforme à Constituição como mera faceta da interpretação sistemática. No mesmo sentido ENGISCH (1996, p. 147) reconhece que a interpretação conforme à Constituição traduz-se, em última análise, na interpretação sistemática.
[12] Sobre o tema da abertura do sistema jurídico, FREITAS (1995, p. 29 e 45) ensina que: “o dogma da completude não resiste sequer à constatação de que as contradições e as lacunas acompanham as normas, à feição de sombras irremovíveis”.
[13] Pelo menos desde o século XII a Ciência Jurídica vem tentando adaptar o direito ao dinamismo das relações sociais, razão pela qual, após o movimento de codificação e de servidão à lei, o sistema jurídico volta a ser considerado um sistema aberto, utilizando mecanismos, como as cláusulas gerais, para ajustar-se às novas realidades, às novas idéias, em busca da efetivação de um direito justo. (MARTINS-COSTA, 1992, p. 49). FREITAS (1995), entretanto, não considera a modificabilidade do Direito uma decorrência da utilização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, mas sim do emprego da técnica hermenêutica da ordenação sistemática. Por seu turno, ao descrever a teoria objetivista da interpretação, em oposição à subjetivista, ENGISCH (1996, p. 173) afirma: “A própria lei e o seu conteúdo interno não são uma coisa estática como qualquer facto histórico passado (‘eternamente quieto permanece o passado’), mas são algo de vivo e de mutável e são, por isso, susceptíveis de adaptação”. De acordo com a teoria objetivista da interpretação, o texto da lei depreende-se de seu autor e adquire uma existência própria, passando a retirar seu conteúdo das forças sociais vigentes no momento de sua aplicação, de modo que “nos encontramos nós em situação de ‘compreender melhor’ a lei do que a compreendeu o próprio legislador histórico [...] Logo: interpretatio ex nunc e não interpretatio ex tunc”.
[14] ENGISCH (1996, p. 145) destaca que para Savigny “os elementos gramatical, lógico, histórico e sistemático não constituem ‘quatro espécies de interpretação de entre as quais podemos escolher conforme nosso gosto e arbítrio, mas diversas actividades que devem intervir conjuntamente para que se possa chegar a uma interpretação bem lograda’”. Todavia, esse pensamento apenas passa por cima do problema – levantado por Zweigert – que consiste na inexistência de uma hierarquização segura dos múltiplos critérios de interpretação, uma vez que, para ENGISCH, a combinação dos diferentes métodos, como propõe Savigny, pode conduzir a resultados contraditórios. Destarte, levanta-se a questão da discricionariedade na escolha do método interpretativo a ser aplicado no caso concreto.
[15] No mesmo sentido, FREITAS (1995, p. 51) afirma que a tarefa do intérprete em nada se confunde com a discricionariedade e a arbitrariedade, verbis: “a interpretação faz escolhas, sim, ou seja, elege preferências, sem que tal fazer possa ser traduzido como substitutivo da atividade do legislador, mas certamente completando o seu trabalho, em atenção às multifacetadas exigências da vida real”.
[16] No mesmo sentido: “Há as condutas inquestionavelmente configuráveis como ímprobas. Há as condutas inquestionavelmente qualificáveis como probas. E há aquelas que geram dúvidas e que são o núcleo da discussão prática” (JUSTEN FILHO, 2005, p. 687). Essa estrutura está baseada na doutrina de Philipp Heck, ao tratar do halo do conceito (GARCIA; ALVES, 2006, p. 246).
[17] Por isso, apesar de interessante, não aderimos ao argumento daqueles que consideram que a improbidade administrativa, com o advento da Lei n° 8.429/92, adquiriu um significado normativo próprio, que afasta o significado semântico usualmente utilizado, inclusive pela Constituição.
[18] Esses autores esclarecem, ainda, que, embora os romanos não realizassem uma distinção nítida entre Moral e Direito, é possível encontrar referências à Moral nos textos de Ulpiano (Digesto e Institutas), como os deveres jurídicos de viver honestamente, não lesar a outrem e de dar a cada um o que é seu.
[19] BITENCOURT NETO (2005, p. 79-80) destaca que Welter “aparta claramente a moralidade administrativa da moralidade comum, estando aquela composta pelas regras de boa administração, regras disciplinares suscitadas pela idéia geral de administração e de função administrativa”. Trata-se de espécie com contornos próprios. Por outro lado, refere que para Brandão “boa administração é noção complexa, que compreende certas regras da Moral comum a par de prescrições de caráter técnico”.
[20] Como bem esclarecem GARCIA e ALVES (2006, p. 77), a moralidade pública “guarda correlação com o comportamento de qualquer integrante de determinado grupamento em relação a assuntos estritamente afeitos à coletividade”, sendo de “observância obrigatória por todos, agentes públicos ou não”.
[21] Há quem entenda que o princípio da moralidade “conduz ao entendimento de que a administração pública tem o dever de melhor administrar, que ultrapassa o conceito de bem administrar” (DELGADO, 1992, p. 39).
[22] Mesmo para alguns autores que consideram a existência de má-fé uma premissa para a caracterização do ato de improbidade, essa má-fé (desonestidade) pode ser dolosa ou culposa (PAZZAGLINI FILHO, 2007, p. 77-79; e GIACOMUZZI, 2002).
[23] Em sentido contrário, após revisar seu posicionamento anterior, OSÓRIO (2007, p. 242) afirma que alguns incisos do art. 11 admitem condutas dolosas e culposas.
[24] Apoiado no princípio democrático, OSÓRIO (2007, p. 270) sustenta que a eleição da improbidade culposa como modalidade de ilícito não desrespeitou o comando do art. 37, § 4°, da CF, especialmente porque a punição reservada ao ato ilícito culposo haverá de ser balanceada e ponderada, em consonância com o princípio da proporcionalidade.
[25] Expressão cunhada por Wolf (GARCIA; ALVES, 2006, p. 281).
especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, graduada, com láurea, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SEVERO, Natascha Maldonado. A conduta culposa na Lei de Improbidade Administrativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41278/a-conduta-culposa-na-lei-de-improbidade-administrativa. Acesso em: 22 nov 2024.
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