Resumo: O presente artigo analisa a possibilidade da Administração Pública exigir a apresentação de certidão de regularidade fiscal relativa a tributos imobiliários como requisito de habilitação em licitações públicas destinadas à contratação de prestação de serviço.
Palavras chave: licitação, habilitação, regularidade fiscal, prestação de serviço.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A habilitação nas licitações. 3. A exigência de regularidade fiscal de tributos imobiliários. 4. Conclusões. 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
É controversa a questão referente à documentação necessária para comprovar a regularidade fiscal, a fim de possibilitar a habilitação nos processos licitatórios instaurados pela Fazenda Pública.
A habilitação é uma fase indispensável à garantia do cumprimento do contrato, razão pela qual as exigências devem guardar relação de proporcionalidade com as futuras obrigações a serem assumidas pelo vencedor do certame. Por isso, no ato de elaboração de editais, deve-se atentar para não exigir de forma excessiva ou dispensar documentação que seja capaz de atestar a idoneidade do licitante e a sua capacidade de cumprimento do objeto contratado.
Ora, a participação em certames públicos encontra guarida no princípio Republicano, que garante a todos a igualdade de oportunidades para atuar, de forma plena e efetiva, dos atos da vida pública. Assim, para não lesar o princípio epigrafado, os requisitos de habilitação devem ser proporcionais à garantia do cumprimento da obrigação assumida.
2. A habilitação nas licitações
A habilitação ou qualificação é a etapa do processo licitatório em que é analisada a idoneidade do licitante e sua capacidade de cumprimento do objeto a ser contratado.
Segundo José dos Santos Carvalho Filho[1]:
Habilitação é a fase do procedimento em que a Administração verifica a aptidão do candidato para a futura contratação. A inabilitação acarreta a exclusão do licitante da fase do julgamento das propostas, e, embora seja uma preliminar deste, vale como um elemento de aferição para o próprio contrato futuro, que é, de regra, aliás, o alvo final da licitação.
O seu fundamento jurídico encontra-se consignado no artigo 37, XXI, da Constituição da República de 1988:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Regulamentando a contratação de obras, serviços, compras e alienações, foi editada a Lei 8.666/93, cujo artigo 27 estabelece os critérios para habilitação:
Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a:
I - habilitação jurídica;
II - qualificação técnica;
III - qualificação econômico-financeira;
IV – regularidade fiscal e trabalhista;
V – cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7o da Constituição Federal.
Desse modo, como requisito à participação das licitações públicas, o interessado deve demonstrar a habilitação jurídica, a qualificação técnica, a qualificação econômico-financeira, a regularidade fiscal e trabalhista, bem como o cumprimento do artigo 7º, XXXIII, da Constituição Federal, sendo que referidos requisitos devem ser essenciais e exigidos de forma proporcional ao cumprimento da obrigação a ser pactuada.
3. A exigência de regularidade fiscal de tributos imobiliários
Segundo o artigo 27, IV, da Lei 8.666/93, para habilitação nas licitações é necessário comprovar a regularidade fiscal do interessado. Buscando materializar a aplicabilidade do referido dispositivo, o art. 29, da citada lei, tratou, de forma genérica, da documentação relativa à regularidade fiscal.
No caso, vale destacar o inciso III, do art. 29:
Art. 29. A documentação relativa à regularidade fiscal, conforme o caso, consistirá em:
(…)
III – prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, se houver, relativo ao domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei;
O Sistema Jurídico vigente garante a todos, desde que devidamente habilitados, o direito de participação em licitações públicas. Por isso, a qualificação é um limite legal ao amplo direito de concorrer em certames, o que faz com que seus dispositivos não devam sofrer interpretação ampliativa, porque é regra geral de hermenêutica que as limitações de direitos devem ser interpretadas restritivamente.
De acordo com a teoria do diálogo das fontes, que busca harmonizar e conferir efetividade ao ordenamento jurídico, o direito é uno e suas ramificações existem apenas para fins didáticos, para facilitar o estudo e a sistematização das disciplinas. Diante da unidade do sistema jurídico, os diversos ramos do Direito, que hoje é marcado pelo pluralismo de fontes legislativas, devem ser interpretados de forma sistemática e complementar.
Nesse escorço, empregando a complementaridade entre os ramos do Direito, o art. 29, III, da Lei 8.666/93, deve ser interpretado em conjunto com o art. 193, do Código Tributário Nacional – CTN:
Art. 193. Salvo quando expressamente autorizado por lei, nenhum departamento da administração pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, ou dos Municípios, ou sua autarquia, celebrará contrato ou aceitará proposta em concorrência pública sem que o contratante ou proponente faça prova da quitação de todos os tributos devidos à Fazenda Pública interessada, relativos à atividade em cujo exercício contrata ou concorre.
Da hermenêutica conjunta, constata-se que a comprovação da regularidade fiscal deve ser exigida tão somente com relação ao ramo de atividade do fornecedor interessado. Portanto, é desprovida de sustentáculo jurídico a exigência de demonstração de regularidade fiscal sobre todos os tributos, notadamente acerca daqueles que não são inerentes à atividade do licitante.
Com base nessa premissa, deflui-se que na fase de habilitação em licitação destinada à contratação de prestador de serviço é ilegal a determinação de comprovação de regularidade fiscal de tributos que não se relacionam com as atividades de circulação de mercadorias e/ou prestação de serviços. Com efeito, sobressai incompatível com o sistema jurídico a exigência de comprovação de regularidade fiscal de tributos imobiliários (IPTU, ITBI, IPVA, ITR, etc.), porquanto ditas exações não se relacionam com a atividade dos fornecedores ou prestadores de serviços.
Ademais, como forma de comprovação da regularidade fiscal, o art. 29, II, da Lei 8.666/93, exige a apresentação da seguinte documentação:
Art. 29. (…)
II – prova de inscrição no cadastro de contribuintes estadual ou municipal, se houver, relativo ao domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual;
Extrai-se desse dispositivo que a prova de inscrição no cadastro de contribuintes deve ser pertinente ao ramo de atividade e compatível com o objeto contratual. Por consequência, como o inciso III é silente e não faz prescrição em sentido contrário, não é adequado exigir a comprovação da regularidade tributária de forma generalizada.
A comissão de licitação não é órgão detentor do poder de polícia tributário e não se destina a, por via indireta, arrecadar tributos para os diversos Entes Federados, sob pena de usurpação de atribuições e caracterização de abuso de poder pela prática de desvio de finalidade. A Fazenda Pública já dispõe de uma série de prerrogativas para cobrança de seus créditos, não devendo a comissão de licitação, ante a inexistência de prescrição normativa, arvorar-se das atividades dos fiscais tributários.
No mesmo sentido, conforme sintetizado e defendido pelo Professor Marcelo Neves[2], é o entendimento dos doutrinadores Marcos Juruena Villela, Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Jessé Torres Pereira Junior, in verbis:
A segunda linha de entendimento aponta para a necessidade de comprovação de regularidade fiscal do interessado consoante o ramo de atividade a ser contratado, ou seja, é, deve-se, a partir do conhecimento da hipótese de incidência de determinado(s) tributo(s), inerente(s) à atividade do licitante, saber em relação a qual(is) Fazenda(s) solicitar a demonstração da documentação hábil. Afinado por esse diapasão está, por exemplo, o jusdoutrinador Marcos Juruena Villela, que assim assere em seu mais recente livro: “A prova de regularidade fiscal só abrange a quitação para com os tributos inerentes à atividade do licitante (não se incluindo, pois, o IPTU, IPVA, ITR etc.).”
Ainda nessa segunda via de entendimento parece estar a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro que, ao examinar os art. 28 a 31 da Lei nº 8.666/93, afirma que “a própria redação deixa clara a não obrigatoriedade de exigir todos os documentos mencionados nos seus incisos; os arts. 28 e 29 falam que a documentação relativa à habilitação jurídica e à regularidade fiscal, “conforme o caso, consistirá em...”; … “A exigência de documentação será feita de modo atender às várias situações possíveis.”
Jessé Torres Pereira Junior, de igual modo, afirma que “a prova de regularidade fiscal deve referir-se aos tributos devidos em razão da atividade pertinente ao objeto em licitação, em que o concorrente atue. (…)
Essa é, também para nós, a melhor interpretação que se pode dar a esta controvertida questão, porquanto conjuga o prestígio ao princípio da razoabilidade com o respeito ao princípio constitucional que subordina as exigências de habilitação ao mínimo possível, preservada a segurança da execução do objeto contratual, ex vi do inc. XXI do art. 37 da CRFB/88.
Igualmente, ressalta-se parte do voto do conselheiro José Milton Ferreira, do Tribunal de Contas do Distrito Federal e Territórios, exarado no julgamento do Processo nº 2.479/1997[3], que foi acolhido pela unanimidade de seus pares:
Voto, assim, acompanhando o douto Ministério Público, por que este Egrégio Plenário determine a expedição de ofício circular às unidades jurisdicionadas, orientando-as no sentido de que, ao discriminar a documentação comprobatória da regularidade fiscal nos procedimentos licitatórios, atente para a necessidade de coordenar o estatuto das licitações com as normas de direito tributário, em especial o disposto no art. 193 do Código Tributário Nacional, que determina que a prova de quitação de todos os tributos devidos à Fazenda Pública seja relativa à atividade em cujo exercício o proponente contrata ou concorre.
Nesse processo, o Douto Procurador-Geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Distrito Federal e Territórios, Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, exarou o Parecer MP/TCDF – 3.0991/97:
O primeiro ponto concerne à exigência de regularidade fiscal, o que motivou, neste particular, a inabilitação de duas empresas do Estado de São Paulo, porque neste Estado exige-se duas certidões: uma quanto aos tributos mobiliários e outra quanto aos imobiliários. As empresas Risograph e Standard teriam apresentado apenas a primeira.
Na inicial sustentei descabida a exigência. A Lei nº 8.112/90 (sic) estabelece normas específicas sobre licitações. Neste passo, ao estabelecer no art. 29 a exigência de regularidade com a Fazenda Pública Federal, Estadual e Municipal, o fez de forma genérica e, além disso, em sua parte final, impôs a forma da lei.
Se faz remissão à legislação específica quanto aos tributos, remanesce, como corolário, a necessidade de coordenar-se o estatuto das licitações com as normas de direito tributário, em especial o Código Tributário Nacional. É preciso lembrar, ainda, o princípio básico da ampliação da competitividade, buscando sempre a proposta mais vantajosa, o que se olvidou neste caso, resultado em prejuízo superior a quarenta mil reais.
O CTN, em seu art. 193, restringe a exigibilidade, de forma expressa, aos tributos “relativos à atividade em cujo exercício se contrata”. Isto é Lei, vigente e eficaz ao tempo do procedimento licitatório e, como norma, vincula o Administrador. De qualquer forma, qualquer outro entendimento que pretendesse a abrangência sobre a generalidade dos tributos transformaria as comissões de licitação em órgãos de fiscalização tributária.
O renomado administrativista Carlos Pinto Coelho Motta, em sua obra “Eficácia nas Licitações e Contratos”, p.145, atesta a aplicabilidade do art. 193 do CTN à licitação.
Em novembro de 2009, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao julgar recurso de apelação envolvendo matéria análoga, adotou a corrente defendida. Nesse passo, destaca-se parte do voto do Desembargador Rui Stoco[4], relator do caso:
Mais precisamente, a inabilitação deu-se por ausência de comprovação de regularidade fiscal, no que respeita ao recolhimento da espécie tributária ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis). É o que se infere do documento acostado a fls. 186.
(...)
O artigo 27, da Lei 8.666/93 (Lei de Licitações), em seu inciso IV, determina ser requisito à habilitação, a regularidade fiscal. Em complementação, o artigo 29, inciso III, do referido diploma, esclarece que a documentação pertinente ao requisito de regularidade fiscal envolverá "prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei".
É certo que em atenção à unidade do ordenamento jurídico, que tem como vértice normativo a Constituição Federal, qualquer dispositivo deve ser tomado em consonância com o conteúdo desta.
Nesse diapasão, é imperioso destacar o disposto no artigo 37, inciso XXI, da CF/88, segundo o qual, em sede de licitação, apenas serão formuladas exigências razoáveis, ou seja, aquelas "indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações" cominadas pelo contrato administrativo que se pretende firmar.
Daí a necessidade de se analisar a exigência formulada, com o objeto do certame licitatório.
No caso em tela, como móvel da licitação promovida pela ré afigurava-se a construção e administração de instalação portuária, consistente em armazém de graneis sólidos (fls. 36 - item 6 do Edital).
Indaga-se, por conseguinte, qual a pertinência do objeto da licitação e a regularidade fiscal referente ao ITBI?
Ora, a exigência em apreço, não guarda qualquer liame lógico, causal ou pertinência com o objeto da licitação, qual seja, arrendamento de armazém, eis que se não atendida, em nada comprometeria o desenvolvimento do serviço contratado.
4. Conclusões
A despeito da existência de opiniões em sentido contrário, com fundamento nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, bem assim, na teoria do Diálogo das Fontes, o melhor entendimento é no sentido de que a comprovação da regularidade fiscal com a Fazenda Pública somente deve recair sobre as atividades desenvolvidas pelo interessado, sendo ilegal a exigência de regularidade com os tributos imobiliários.
Além da plausibilidade jurídica da tese exposta, o presente entendimento facilitará a comprovação da regularidade fiscal e, por consequência, ampliará a participação e a competitividade em licitações.
Ora, na medida em que é facilitada a participação de interessados, maiores são as chances do Poder Público melhorar a qualidade das contratações e pagar menor preço, o que realça os princípios da economia e da eficiência.
5. Referências bibliográficas
ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário esquematizado. 2. ed. São Paulo: Método, 2008.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 30 de agosto de 2012.
______. Lei 8.666 de 1993. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l8666cons.htm> Acesso em 30 de agosto de 2012.
______. Código Tributário Nacional. Disponível em: . Acesso em 30 de agosto de 2012.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 20. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Contas, Processo 2.479/1997, Representação. Disponível em: . Acesso em 30 de agosto de 2012.
NEVES, Marcelo. Extensão da exigência de regularidade fiscal na fase de habilitação do procedimento licitatório. Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 14, abri/maio/junho, 2008. Disponível em: Acesso em: 30 de agosto de 2012.
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, Apelação Cível 323.531.5/7-00, 4ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Rui Stoco. Julgamento em 09/11/2009. Disponível em: Acesso em 30 de agosto de 2012.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil 1: Lei de introdução e parte geral. 5. ed. São Paulo: Método, 2009.
[1] Manual de Direito Administrativo. 20. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 266.
[2] Extensão da exigência de regularidade fiscal na fase de habilitação do procedimento licitatório. Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 14, abri/maio/junho, 2008. Disponível em: . Acesso em: 30 de agosto de 2012, p. 3-4.
[3] DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Contas, Processo 2.479/1997, Representação. Disponível em: Acesso em 30 de agosto de 2012.
[4] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, Apelação Cível 323.531.5/7-00, 4ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Rui Stoco. Julgamento em 09/11/2009. Disponível em: Acesso em 30 de agosto de 2012.
Procurador Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia/MG. Especializando em Direito Público pela Universidade Anhanguera-UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Luís Henrique Assis. A ilegalidade da exigência de certidão de regularidade fiscal de tributos imobiliários para a Administração Pública realizar licitação destinada à contratação de serviços Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 out 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41352/a-ilegalidade-da-exigencia-de-certidao-de-regularidade-fiscal-de-tributos-imobiliarios-para-a-administracao-publica-realizar-licitacao-destinada-a-contratacao-de-servicos. Acesso em: 22 nov 2024.
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