Introdução: apontamentos sobre o controle difuso
No Brasil – tal como se encontra em Portugal[1] – o controle de constitucionalidade exercido pelo Judiciário é bipartido (controle misto): a fiscalização abstrata ou concentrada é conjugada com a fiscalização concreta ou difusa.
No controle difuso todos os órgãos jurisdicionais podem declarar a inconstitucionalidade de determinado ato estatal – o que não inclui, como a expressão dá a entender, somente normas; além delas, é possível declarar inconstitucional atos administrativos, judiciários ou até asomissões estatais.
Nas palavras clássicas de Rui Barbosa: “a Constituição é a última base, onde se há de apoiar a validade de todos os atos do governo nacional. Quaisquer atos de funcionários federais, que a Constituição não autorize, são legalmente nenhuns”.[2]
Há uma distinção, no entanto, que merece destaque: nos atos normativos, dada sua generalidade e abstração, a declaração de inconstitucionalidade gera efeitos somente entre os litigantes daquele processo. Continuam vigentes, em regra, para os demais cidadãos. A declaração de inconstitucionalidade incidental dos atos administrativos ou jurisdicionais, de caráter concreto e individual, na teoria, fulminará todos seus efeitos, extinguindo o ato em si.
Por outro lado, a principal nota que afasta o controle difuso do abstrato é justamente a possibilidade de qualquer pessoa acionar o Judiciário buscando aludida inconstitucionalidade. E ainda que não arguida pode ser suscitada pelos demais sujeitos do processo (juiz, Ministério Público), já que vinculados ao princípio da constitucionalidade, faceta do próprio Estado de Direito.[3]
Nesse sentido, declarou o STF: “a nulidade absoluta, na qual se inclui a inconstitucionalidade, deve ser decretada pelo juiz ou pelo tribunal, sempre que a encontrem configurada, independentemente, da natureza jurídica da ação. Necessário que seja, para a decisão da causa, pronunciamento que envolva inconstitucionalidade de lei ou de ato administrativo, o julgador não pode deixar de emiti-lo fundado na impropriedade da ação”.[4]
Além disso, a arguição de inconstitucionalidade pode se dar a qualquer momento do processo[5] e em qualquer espécie de procedimento – de conhecimento, cautelar, executivo, mandamental, de jurisdição constitucional.
Nos tribunais (decisão do colegiado), no entanto, submete-se ao princípio da reserva do plenário, segundo o quala inconstitucionalidade dede determinado ato normativo só pode ser declarada pelo voto de maioria absoluta dos membros do tribunal ou, onde não houver, dos integrantes do respectivo órgão especial (CF, art. 97).
Efeitos da decisão de inconstitucionalidade no controle difuso
Cuidando já dos efeitos proferidos pela decisão de inconstitucionalidade, há uma restriçãoque merece destaque de plano: a ação popular e ação civil pública, cujas sentenças contam com eficácia erga omnes, ou seja, eventual declaração de inconstitucionalidade nessas ações poderia ser oposta contra todos, equiparando-se a uma decisão proferida em sede de controle abstrato. Esse é justamente o problema: somente ao STF compete proferir esse tipo de decisão.
Com base nisso, há quem defenda a possibilidade[6] e a impossibilidade[7] de se reconhecer a inconstitucionalidade de determinada norma nessas espécies de ações. No caso, porém, a solução dada pelo STF é arrebatadora: o que gera efeito erga omnes nessas ações é a questão principal decida, não as questões secundárias (incidentais) que fundamentaram a decisão[8].
Até o segundo grau de jurisdição, em todas as ações, não há maiores problemas em definir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, restrito às partes litigantes.
Caso processado incidente de inconstitucionalidade nos tribunais de segunda instância ou no Superior Tribunal de Justiça, a mesma inconstitucionalidade poderá ser arguida perante o Supremo Tribunal Federal via recurso extraordinário, cabível quando a decisão dos tribunais (a) contrariar dispositivo da Constituição; (b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; (c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição; e (d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.[9]
É da decisão do STF que declara aludida inconstitucionalidade é que começam as discussões.
Quanto a isso, a maioria esmagadora da doutrina brasileira reconhece que essa decisão possui efeitos inter partes, até que o Senado Federal, com base no art. 52, X, da Constituição Federal, suspenda, no todo ou em parte, a execução da norma declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.
Na prática, ao declarar a inconstitucionalidade de determinada norma, o STF comunica ao Senado Federal sua decisão para que este decida quanto á suspensão, no todo ou em parte, do ato em questão. Somente a partir daí a declaração de inconstitucionalidade teria efeitos gerais (erga omnes).
A primeira dúvida que rodeia referido dispositivo: seria de natureza vinculada ou discricionária o ato praticado pelo Senado Federal?
Defendendo se tratar de ato vinculado, há autores clássicos de peso como Pontes de Miranda[10] e Alfredo Buzaid[11], para os quais ao Senado não teria opção senão a suspensão do ato inquinado, desde que a decisão do STF estivesse correta do ponto de vista formal.
Por outro lado, o entendimento que prevalece na atualidade é de que se trata, na verdade, de ato discricionário: ao Senado compete decidir – fundado num juízo de conveniência ou oportunidade – se atribui efeitos gerais à decisão do STF.[12]
Uma terceira posição vem sendo defendida na atualidade pelo Min. Gilmar Mendes, fundando-se no que dizia um clássico do direito constitucional brasileiro: Lúcio Bittencourt, para quem “se o Senado não agir, nem por isso ficará afetada a eficácia da decisão, a qual continuará a produzir todos os seus efeitos regulares, que, de fato independem da colaboração de qualquer dos outros poderes. O objetivo do art. 45, nº IV da Constituição [de 1967] é apenas tornar pública a decisão do tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos. Dizer que o Senado ‘suspende a execução’ de lei inconstitucional é, positivamente, impropriedade técnica, uma vez que o ato, sendo ‘inexistente’ ou ‘ineficaz’, não pode ter suspensa a sua execução”.[13]
Para Gilmar Mendes, no entanto, o raciocínio de Lucio Bittencourt é o ponto de partida algo novo: o atual art. 52, X, da Constituição de 1988, desde que instaurado na Constituição de 1934, passou por um típico processo de mutação constitucional. A única resposta plausível e hábil a justificar a suspensão de lei pelo Senado Federal é de índole exclusivamente histórica, calcada nas intensas discussões doutrinárias travadas desde sua instituição.[14]
Isso porque, segundo sustenta, é nítida a prevalência do controle concentrado em face do controle difuso, de acordo com a Constituição de 1988. Trata-se de fato frequentemente reconhecido pelo STF[15], a quem foi atribuída cada vez mais decisões dotadas de eficácia geral quando o assunto é controle de constitucionalidade (difuso e concentrado).
E, de fato, alguns exemplos demonstram que, na prática, a suspensão pelo Senado tem pouca utilidade, já que os efeitos gerais da decisão proferida pelo STF operam por si só.
São eles: a) a possibilidade de o relator dar provimento ao recurso extraordinário se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do STF (CPC, art. 557, §1º-A, acrescentado pela Lei 9.756/98); b) a declaração de inconstitucionalidade pelo STF de leis municipais, tornando vinculante não só a parte dispositiva da decisão, mas também seus fundamentos determinantes[16]; c) a dispensa da chamada reserva do plenário nos tribunais (CF, art. 97), quando o STF já tenha se manifestado acerca do dispositivo.
Em resumo, a teoria de Gilmar Mendes demonstra que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle incidental de constitucionalidade acabam por ter eficácia que transcende o âmbito da própria decisão, fomentando uma nova releitura do art. 52, X, da Constituição, no sentido de atribuir ao Senado o simples papel de publicar a decisão proferida pelo STF – posição muito criticada por alguns autores e pela própria imprensa sob o argumento cáustico de que ao Senado seria atribuída a função de “secretaria” do STF.
A tese foi proposta na Reclamação nº 4335/AC, Rel. Min. Gilmar Mendes, e, por maioria, não foi acatada pelo plenário do STF. Formalmente, prevalece a teoria de que o ato de suspensão praticado pelo Senado é discricionário e, sem ele, não há que se falar em efeito erga omnes das decisões proferidas em sede de controle difuso.
Na prática, porém, esses efeitos já são conferidos pelo próprio Supremo Tribunal Federal utilizando procedimentos que transcendem a eficácia de suas decisões.
Bibliografia
Barbosa Moreira, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. V vol., Rio de Janeiro: Forense, 1974.
Barbosa, Rui. Atos inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003.
Barroso, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004.
Bittencourt, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2ª ed. reimp., Brasília: Ministério da Justiça, 1997.
Buzaid, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1958.
Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998.
Medeiros, Rui. A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica, 1999.
Meirelles, Hely Lopes. Mandado de segurança. 25ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003.
Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004.
Mendes, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Direito Público, n. 4, Porto Alegre: Síntese, 2004.
Miranda, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
Pontes de Miranda, Francisco Cavalcante. Comentários à Constituição de 1946. Vol. II, 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1953.
Pontes de Miranda, Francisco Cavalcante. Comentários à Constituição de 1967. Tomo III, São Paulo: RT, 1967.
Silva, Paulo Napoleão Nogueira da. A evolução do controle de constitucionalidade e a competência do Senado Federal. São Paulo: RT, 1992.
[1] Para uma visão completa acerca do controle de constitucionalidade em Portugal, duas obras são indispensáveis: Medeiros, Rui. A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica, 1999 e Miranda, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
[2]Barbosa, Rui. Atos inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003, p. 42.
[3]Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 877.
[4] STF, RE 86.161-GO, Rel. Min. Soares Muñoz, RTJ, 95:202, 1981.
[5] Citando as palavras de Barbosa Moreira, “a parte pode arguir a inconstitucionalidade em petição inicial, em contestação, em razões de recorrente ou de recorrido, em petição avulsa que junte aos autos durante a tramitação da causa ou do recurso perante o órgão, ou até, se for o caso, em sustentação oral, na sessão de julgamento. Não há preclusão em se tratando de quaestio iuris” (Barbosa Moreira, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. V vol., Rio de Janeiro: Forense, 1974, p.45).
[6]Meirelles, Hely Lopes. Mandado de segurança. 25ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 154-5 (ação popular) e p. 231-4 (ação civil pública).
[7]Barroso, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 73 (ação popular) e p. 74 (ação civil pública).
[8]Cf. STF, Reclamação nº 721-0/AL, Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, 19/2/1998 (ação popular) e Reclamação nº 633-6/SP, Rel. Min. Nelson Jobim, Diário da Justiça, 13/10/1997 (ação civil pública).
[9] A admissibilidade do recurso extraordinário, no entanto, não é tão simples quanto aparenta. Além da repercussão geral reconhecida (art. 102, §3º), do prévio esgotamento de todas as instâncias ordinárias e do prequestionamento, há uma série de requisitos a serem observados pela parte recorrente consolidados por entendimento reiterado do STF. No caso do art. 102, III, “a”, da CF, por exemplo, exige-se que a afronta a dispositivo constitucional seja direta e frontal (STF, RE nº 194.946-5/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, Diário da Justiça, 3/4/1998), não reflexa ou indireta (STF, Agr. Reg. em Agr. Instr. nº 250.730-1/MG, Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, 7/5/2000) ou que dê interpretação razoável à lei (STF, Súmula 400: “Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza o recurso extraordinário pela letra ‘a’ do art. 101, III, da Constituição Federal”). Estão afastados do controle difuso, também, os dispositivos editados antes da vigência da constituição atual (RE nº 402.287-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso; RE nº 210.912, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).
[10]Pontes de Miranda, Francisco Cavalcante. Comentários à Constituição de 1946. Vol. II, 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1953, p. 284; ______. Comentários à Constituição de 1967. Tomo III, São Paulo: RT, 1967, p. 85-6.
[11]Buzaid, Alfredo. Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1958, p. 89.
[12]Silva, Paulo Napoleão Nogueira da. A evolução do controle de constitucionalidade e a competência do Senado Federal. São Paulo: RT, 1992, p. 85. No STF: Mandado de Injunção nº 460-9/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, 16/6/1994, p. 15.509.
[13]Bittencourt, Carlos Alberto Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2ª ed. reimp., Brasília: Ministério da Justiça, 1997, p. 145-6.
[14]Mendes, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Direito Público, n. 4, Porto Alegre: Síntese, 2004, p. 5-31; ______. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 257-80.
[15]Vide, por exemplo, o voto do Min. Sepúlveda Pertence na ADC nº 1/DF (RTJ 157): “Esta convivência [entre o controle concentrado e difuso de constitucionalidade] não se faz sem uma permanente tensão dialética na qual, a meu ver, a experiência tem demonstrado que será inevitável o reforço do sistema concentrado, sobretudo nos processos de massa; na multiplicidade de processos que inevitavelmente, a cada ano, na dinâmica da legislação, sobretudo da legislação tributária e matérias próximas, levará, se não se criam mecanismos eficazes de decisão relativamente rápida e uniforme, ao estrangulamento da máquina judiciária, acima de qualquer possibilidade de sua ampliação e, progressivamente, ao maior descrédito da Justiça, pela sua total incapacidade de responder à demanda de centenas de milhares de processos rigorosamente idênticos, porque reduzidos a uma só questão de direito”.
[16]V. STF, RE nº 228.844/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, Diário da Justiça, 16/6/1999; RE nº 221.795/SP, Rel. Min. Nelson Jobim, Diário da Justiça, 16/11/2000; RE nº 364.160/MG, Rel. Min. Ellen Gracie, Diário da Justiça, 7/2/2003; AI nº 423.252/SP, Rel. Min. Carlos Velloso, Diário da Justiça, 15/4/2003; RE nº 345.048/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Diário da Justiça,8/4/2003; RE nº 384.521/MG, Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, 30/5/2003.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. Efeitos da decisão proferida no controle difuso de constitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41502/efeitos-da-decisao-proferida-no-controle-difuso-de-constitucionalidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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