Em um país de dimensões continentais como o Brasil, a existência de uma infraestrutura de transportes devidamente organizada e paramentada transfigura-se em uma necessidade vital, não só para fins de garantir aos cidadãos o exercício de seu direito constitucional de ir e vir, mas também, e principalmente, para permitir o desenvolvimento econômico.
Com efeito, é inegável a relevância do setor de serviços de transporte para a dinâmica da economia capitalista. Em trabalho doutrinário econômico sobre o assunto, confeccionado no ano de 2006, a propósito, o seu crescimento e a sua importância foram comprovados através de dados estatísticos, consoante exposto a seguir:
“A atividade de transporte, a mais importante entre os diversos componentes logísticos, vem aumentando sua participação no Produto Interno Bruto (PIB), crescendo de 3,7% para 4,3% entre 1985 e 1999. Em 30 anos, ou seja, entre 1970 e 2000, o setor de transportes cresceu cerca de 400%, enquanto o crescimento do PIB foi de 250%. Este crescimento foi fortemente influenciado pela desconcentração geográfica da economia brasileira nas últimas décadas, na direção das regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste”.[1]
O contínuo crescimento dos serviços de transporte ao longo do século XX naturalmente tratou de reclamar sua institucionalização jurídica. Nesse sentido, a Constituição de 1946 estabeleceu o regime de licenciamento em caráter precário para o transporte coletivo de passageiros nas rodovias federais, cumpridas as instruções do extinto DNER.
A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1 de 1969, a seu turno, delegaram ao legislador ordinário a competência para disciplinar o regime de concessões e permissões de serviços públicos, o que foi feito através do Decreto-Lei nº 512/1969, ao qual se seguiram, após, o Decreto nº 68.961/71, o Decreto nº 90.958/1985, o Decreto nº 92.353/1986 e o Decreto nº 96.756/1988.
A Constituição Federal de 1988, contudo, trouxe consigo uma mudança de paradigma acerca da questão, criando e elevando a status constitucional a exigência de licitação para os contratos de obras, serviços, compras e alienações (artigo 37, XXI), bem como para a concessão e a permissão de serviços públicos (artigo 175).
Nesse sentido, o Decreto nº 90.072/1990 estabeleceu a licitação, a ser feita na modalidade concorrência, para a concessão e permissão de serviços públicos de transporte. Posteriormente, adveio o Decreto nº 952/1993, que fixou o prazo de 15 (quinze) anos para as permissões, prorrogável por igual período, no máximo.
A Lei nº 8.987/95, contudo, em seus artigos 42 e 43, considerou válidas as concessões de serviço público formalizadas antes da vigência da CF/1988, ainda que não precedidas de licitação, pelo prazo fixado no contrato ou no ato de outorga.
Com fundamento na referida lei, portanto, foi editado o Decreto nº 2.521/1998, cujo artigo 98 retirou a possibilidade da prorrogação franqueada pelo decreto anterior, mantendo-se o prazo improrrogável de 15 (quinze) anos, contados do Decreto nº 952/1993, para as concessões e permissões efetivadas por força de disposições legais e regulamentares anteriores.
À vista da impossibilidade de prorrogação, em outubro de 2008, os contratos de exploração de mais de 1.600 linhas de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros findaram.
No entanto, como o serviço público não havia sido licitado até aquele momento, com delegação a ser feita mediante permissão – nos termos do mandamento constitucional constante do artigo 175 da Carta Magna e dos artigos 13 e 14 da Lei nº 10.233/2001 – a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), tendo em vista a necessidade de continuidade do serviço público, editou a Resolução nº 2.868,por meio da qual transformou as permissões em autorizações especiais, de caráter eminentemente precário e provisório, com vigência até 31 de dezembro de 2009 ou até o término da licitação a ser feita para fins de substituição das referidas concessões e permissões, o que ocorresse primeiro. Foi editada, ainda a Resolução nº 2.869, com idêntico propósito. Ambas as Resoluções também fixaram um cronograma para realização da licitação.
À ANTT, na qualidade de agência reguladora do setor de transportes e no que diz respeito especificamente à concessão, permissão e autorização do serviço público, compete exercer as funções “que o poder concedente exerce nesses tipos de contratos ou atos de delegação: regulamentar os serviços que constituem objeto da delegação, realizar o procedimento licitatório para escolha do concessionário, permissionário ou autorizatário, celebrar o contrato de concessão ou permissão ou praticar ato unilateral de outorga de autorização, definir o valor da tarifa e da sua revisão ou reajuste, controlar a execução dos serviços, aplicar sanções, encampar, decretar a caducidade, intervir, fazer a rescisão amigável, fazer a reversão de bens ao término da concessão, exercer o papel de ouvidor de denúncias e reclamações dos usuários, enfim exercer todas as prerrogativas que a lei outorga ao Poder Público na concessão, permissão e autorização”[2].
Em virtude de a ANTT ter comprovado a existência de um Plano Nacional de Outorgas para a licitação, denominado Propass Brasil – a ser realizado em dezembro de 2009 e que contemplava todos os trechos rodoviários explorados por empresas detentoras de permissões e concessões outorgadas anteriormente à Constituição de 1988 a despeito de licitação – o Supremo Tribunal Federal deferiu os pedidos formulados pela agência, por exemplo, na Suspensão de Liminar nº 279 (DJ 18.05.2009) e na Suspensão de Tutela Antecipada nº 322 (DJ 19.05.2009), impedindo a realização de licitação de determinado trecho rodoviário em Pernambuco e sustando decisão judicial que autorizava determinada empresa a operar uma linha, respectivamente.
O Judiciário, portanto, vinha considerando razoável a concessão de autorizações especiais para a exploração do serviço público de transporte rodoviário de passageiros, em homenagem ao princípio da continuidade do serviço público, até que fosse finalizado o procedimento licitatório, o qual aparentemente se avizinhava, à vista da existência do Propass – Plano Nacional de Outorgas.
A ANTT, entretanto, não conseguiu cumprir o cronograma no prazo inicialmente estipulado, pois se viu obrigada a solicitar ao Tribunal de Contas da União e ao Ministério Público Federal a aprovação de um novo cronograma para realização das licitações, tendo em conta que as empresas permissionárias apresentaram dados inconsistentes, os quais, caso tomados como parâmetro, poderiam colocar em risco o êxito do programa.
A alteração em apreço foi efetivada por meio de Resoluções (nº 3.320 e 3.321/2009). O prazo teve que ser alterado outras vezes, contudo, culminando com a edição da Resolução ANTT nº 3.975/2012, a qual estabeleceu o dia 31 de dezembro de 2014 como termo final para ultimação da licitação.
No intuito de coletar dados mais confiáveis, destarte, foram feitas pesquisas em âmbito nacional, nos anos de 2009 e 2010. Tais dados foram utilizados para elaboração do Plano de Outorgas, o qual foi em seguida submetido a audiências públicas, nos anos de 2011 e 2012.
De fato, tal medida se afigurava indispensável. “É essencial à noção de moderna regulação que o ente regulador estatal dialogue e interaja com os agentes sujeitos à atividade regulatória buscando não apenas legitimar a sua atividade, como tornar a regulação mais qualificada porquanto mais aderente às necessidades e perspectivas da sociedade”[3].
Após submissão e aprovação do Ministério dos Transportes e do TCU, o Conselho Nacional de Desestatização – CND aprovou o Plano de Outorgas, culminando finalmente com a publicação do Edital de Licitação nº 01/2013 da ANTT.
Nada obstante,ante as sucessivas prorrogações de prazo promovidas pelo Poder Público para ultimação dos procedimentos licitatórios, o Poder Judiciário passou a considerá-lo omisso quanto ao cumprimento da exigência constitucional de realizar licitação, concedendo autorizações judiciais para operação de linhas sob tal entendimento.Nesse sentido, foi emblemático o julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada nº 357 do Supremo Tribunal Federal, em 14 de janeiro de 2010, sendo oportuno transcrever um de seus trechos, in verbis:
“Não obstante a complexidade que caracteriza o referido programa de licitações - haja vista a quantidade de linhas a serem licitadas e a necessidade de se conferir racionalidade ao sistema -, entendo restar caracterizado, na espécie, quadro de flagrante omissão administrativa, pois, em verdade, passados mais de vinte anos da edição da Constituição de 1998, que, seu art. 175, expressamente exige que toda e qualquer permissão ou concessão de serviço público seja precedida de licitação, permanecem em vigor concessões, permissões e autorizações outorgadas sob a realidade constitucional pretérita e não precedidas de licitação”[4].
Com a devida vênia ao posicionamento que vem sendo adotado pelos Tribunais brasileiros, resta nítido o árduo e longo empenho da Administração Pública na busca de regularizar o setor de transporte interestadual de passageiros, não sendo razoável admitir a alardeada omissão do Poder Público em realizar licitação.
Foi justamente na tentativa de solucionar de vez a questão que o Edital ANTT nº 01/2013 foi lançado, após longo trâmite e debate. Infelizmente, contudo, foi paralisado ainda na fase de oferecimento de impugnações ao edital, em virtude de uma decisão liminar concedida no bojo de uma das inúmeras ações intentadas contra o certame.
Em 18 de junho de 2014, contudo, foi publicada a Lei nº 12.996, a qual alterou a forma de delegação da prestação do serviço de transporte interestadual de passageiros. Com o advento da nova lei, a delegação do serviço, que até então era feita mediante permissão, exatamente como dispunha o Edital nº 01/2013, passou a ser feita mediante autorização.
O art. 13 da Lei nº 10.233/2001 passou a conter a seguinte redação, in verbis:
Art. 13. Ressalvado o disposto em legislação específica, as outorgas a que se refere o inciso I do caput do art. 12 serão realizadas sob a forma de:
(Redação dada pela Lei nº 12.815, de 2013)
(...)
V - autorização, quando se tratar de: (Redação dada pela Lei nº 12.996, de 2014)
a) prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros; (Incluída pela Lei nº 12.743, de 2012)
(...)
e) prestação regular de serviços de transporte terrestre coletivo interestadual e internacional de passageiros desvinculados da exploração da infraestrutura. (Incluído pela Lei nº 12.996, de 2014)
(...)
(sem grifos no original).
Convém não olvidar, ainda,o disposto no art. 43 da Lei nº 10.233/2001, que prevê expressamente que independem de licitação as hipóteses de outorga de autorização, in verbis:
Art. 43. A autorização, ressalvado o disposto em legislação específica, será outorgada segundo as diretrizes estabelecidas nos arts. 13 e 14 e apresenta as seguintes características: (Redação dada pela Lei nº 12.815, de 2013)
I – independe de licitação;
II – é exercida em liberdade de preços dos serviços, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competição;
III – não prevê prazo de vigência ou termo final, extinguindo-se pela sua plena eficácia, por renúncia, anulação ou cassação.
(sem grifos no original)
Diante da modificação trazida pela nova lei, o procedimento licitatório que vigeu até muito recentementepara o regime de delegação dos serviços de transporte terrestre coletivo interestadual e internacional de passageiros não encontra mais amparo nas normas em vigor, por perda superveniente de interesse público, evidenciada pela edição de um novo marco regulatório (Lei nº 12.996/14), fruto da vontade política do Poder Legislativo.
“Não nos parece que o novo contexto regulatório, e as agências como parte dele, tenha o efeito de subtrair dos governantes eleitos a prerrogativa de interferir nas políticas públicas. Não. A legitimidade do governante de interferir (com papel destacado) na Economia segue incólume”[5].
Assim, em atenção à novel Lei nº 12.996/14, a ANTT teve que revogar a licitação regida pelo Edital de Licitação nº 1/2013, através da Resolução 4.355/2014, passando a realizar estudos e discussões sobre a regulamentação da autorização para os serviços regulares de transporte terrestre coletivo interestadual e internacional de passageiros.
A ANTT dispõe do prazo de 01 (um) ano, a contar da publicação da lei, para regulamentar os procedimentos para o deferimento das autorizações, devendo extinguir as autorizações especiais vigentes. É o que versa o artigo 5º da Lei nº 12.996/14, in verbis:
“Art. 5o A ANTT deverá extinguir as autorizações especiais vigentes para os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, no prazo de até 1 (um) ano, contado da publicação desta Lei, podendo esse prazo ser prorrogado, a critério do Ministro de Estado dos Transportes, mediante proposta da ANTT”.
A partir de agora, portanto, incumbe à agência reguladora definir todas as regras, adaptar seus regulamentos ao novo marco legal, etc, tudo de forma a, definitiva e finalmente, regulamentar a questão.
“A produção de normas abstratas pressupõe a atribuição de competência discricionária por parte de uma lei. A natureza da questão regulada e as peculiaridades da situação deverão orientar o procedimento específico a ser adotado pela agência. (...) Presume-se que a matéria objeto de disciplina abstrata pela agência reflete conhecimento técnico-científico especializado. Portanto, o procedimento normativo tem de propiciar a identificação de todos os problemas técnicos e das soluções adequadas e compatíveis”[6].
Espera-se que agora, de fato, ultimada tal regulamentação, seja enfim possível dar cumprimento ao mandamento constitucional insculpido no artigo 175 da CF/88, regulamentando os serviços de transporte interestadual de passageiros, em homenagem à eficiência da Administração Pública e à própria segurança dos usuários e do sistema como um todo.
REFERÊNCIAS:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2009.
JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002.
MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Suspensão de Tutela Antecipada nº 357. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/STA357.pdf. Acesso em 27 out. 2014.
WANKE, Peter; FLEURY, Paulo Fernando. In: Estrutura e Dinâmica do Setor de Serviços no Brasil (organizadores: João Alberto De Negri, Luis Claudio Kubota). Brasília: IPEA, 2006.
[1] WANKE, Peter; FLEURY, Paulo Fernando. In: Estrutura e Dinâmica do Setor de Serviços no Brasil (organizadores: João Alberto De Negri, Luis Claudio Kubota). Brasília: IPEA, 2006, p. 417.
[2]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22 ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 470-471.
[3]MARQUES NETO, Floriano de Azevedo.Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 32.
[4] Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/STA357.pdf. Acesso em 27 out. 2014.
[5]MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 91.
[6] JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 565.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Larissa Suassuna Carvalho. O sistema de transporte interestadual de passageiros e sua regulação pelo poder público Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41519/o-sistema-de-transporte-interestadual-de-passageiros-e-sua-regulacao-pelo-poder-publico. Acesso em: 22 nov 2024.
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