Introdução
A interpretação conforme a constituição, originalmente apontada como simples método de intepretação, tem sido utilizada pelo Supremo Tribunal Federal como uma das técnicas de controle de constitucionalidade, sobretudo naqueles casos em que um texto legal apresenta dúvidas sobre seu verdadeiro alcance, ensejando interpretações diversas que eventualmente contrariem a constituição.
Enquadra-se, pois, na declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Sua correta aplicação depende de uma distinção já conhecida na hermenêutica constitucional: a distinção entre texto e norma.
Distinção entre texto e norma
A distinção entre texto e norma pode ser elevada a uma das bases científicas da hermenêutica atual. Como aponta Eros Roberto Grau, referência na matéria, “as disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando – através e mediante a interpretação – são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação”.[1] Ou, nas palavras mais diretas de Humberto Ávila: “normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”.[2]
Pode ser demonstrada empiricamente com quatro situações extremas: (a) existem no ordenamento normas sem qualquer texto legal correspondente; (b) textos sem norma alguma; (c) diversas normas contidas em um único dispositivo; e (d) diversos dispositivos têm que ser “juntados” para formarem uma única norma.
Alguns exemplos frequentemente são citados pela doutrina.
A segurança jurídica, norma de extrema importância no sistema constitucional brasileiro, não possui texto correspondente. Há quem sustente que decorra, por exemplo, do Estado de Direito[3]ou da junção dos princípios da legalidade, irretroatividade e anterioridade[4]. Já a expressão “sob a proteção de Deus” contida no preâmbulo constitucional é um típico exemplo de texto sem poder normativo, sobretudo diante do fato de o Brasil ser um estado laico.
Mas o que interesse para o tema propostosão aqueles textos dos quais se extrai várias normas. Exemplos desse fenômeno serão encontrados no tópico seguinte.
Interpretação conforme a constituição
Como método de controle de constitucionalidade sem redução de texto, o Supremo Tribunal Federal deve muito ao Min. Moreira Alves pela difusão da interpretação conforme a constituição.
Suas palavras, nesse contexto, são de grande valia: “o mesmo ocorre quando Corte dessa natureza, aplicando a interpretação conforme a Constituição declara constitucional uma lei com a interpretação que a compatibiliza com a Carta Magna, pois, nessa hipótese, há uma modalidade de inconstitucionalidade parcial (a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto – TeilnichtigerklärungohneNormtextreduzierung), o que implica dizer que o Tribunal Constitucional elimina – e atua, portanto, como legislador negativo – as interpretações por ela admitidas, mas inconciliáveis com a Constituição. Porém, interpretação fixada, como única admissível, pelo Tribunal Constitucional, não pode contrariar o sentido da norma inclusive decorrente de sua gênese legislativa inequívoca, porque não pode Corte dessa natureza atuar como legislador positivo, ou seja, o que cria norma nova”. [5]
Como se vê, na prática, o que se faz é delimitar as possíveis interpretações extraídas de determinado texto legal e afastar aquelas que se demonstram incompatíveis ou, em grau de relevância, menos compatíveis com a constituição.
Explica-se: a constituição está recheada de princípios que, segundo a teoria do alemão Robert Alexy, são mandamentos de otimização, ou seja, normas que ordenam que algo seja realizado da melhor forma possível dentre as possibilidades fáticas e jurídicas. Distanciam-se, pois, das regras, aplicáveis mediante subsunção (tudo ou nada), onde, dadas as circunstâncias nelas previstas, ou a regra é aplicada ou não é.[6]
Na interpretação conforme a constituição, um texto pode sugerir várias interpretações que, de certa forma, otimizem em maior ou menor grau determinado princípio. Nesse caso, o julgador deve priorizar aquela que fomente em maior grau o princípio envolvido. As demais interpretações podem ser, inclusive, constitucionais. Pecam, no entanto, nesse juízo de otimização.
Um exemplo para ilustrar a questão: no julgamento do RHC nº 56438/MG, Rel. Min. Moreira Alves, o STF decidiu que “na hipótese do art. 414 do Código de Processo Penal, não basta a intimação da sentença de pronúncia do réu, sendo necessária, também, a de seu defensor, para que comece a fluir o prazo para a interposição do recurso em sentido estrito. Interpretação à luz do princípio da ampla defesa”.[7]
O texto legal em tela dispunha o seguinte: “a intimação da sentença de pronúncia, se o crime for inafiançável, será sempre feita ao réu pessoalmente” (CPP, art. 414, antes das modificações introduzidas pela Lei nº 11.689/2008).
Ao estender para o defensor a obrigação de intimação da sentença de pronúncia, o STF priorizou a interpretação que mais otimizava os princípios da ampla defesa e do contraditório – essenciaisno processo penal. Não se nega, todavia, que a constitucionalidade da intimação pessoal somente do réu seria sustentável. Ou seja: trata-se de interpretação em conformidade com a constituição que, entretanto, fomenta em menor grau a ampla defesa.
Mas o grande problema da interpretação conforme a constituição está atrelado ao fato de que o Supremo Tribunal Federal deve agir como típico legislador negativo, sob pena de usurpar as funções do Poder Legislativo.
Nesse ponto, há outro caso de extrema importância julgado pelo STF que merece destaque: a ADPF nº 54-8 (fetos anencefálicos), cujo voto do Min. Carlos Velloso iniciou a discussão assentando o seguinte: “dá-se, então, que a Corte, reconhecendo a constitucionalidade de uma interpretação da norma infraconstitucional, terá como inconstitucional as demais interpretações possíveis”.
O voto do Min. Moreira Alvesé arrebatador e digno de transcrição literal na medida em que expõe os riscos da interpretação conforme a constituição perante o papel de legislador negativo do STF:
“Como observa Schlach (“DasBunddesveriassungsgericht”, pág. 188, München, 1985), com base nas decisões da Corte Constitucional alemã, não se pode, a título de se interpretar uma lei conforme a Constituição, dar-lhe sentido que falseie ou viole o objetivo legislativo em ponto essencial” (RTJ 139/624, 635).
Posta assim a questão, vejamos se seria possível,no caso, a interpretação conforme a Constituição dos dispositivos legais tidos, pela autora, como ofensivos aos preceitos fundamentais invocados.
O Código Penal, nos artigos 124 e 126, estamos mencionando apenas os dispositivos penais invocados, não estamos mencionando o art. 125 do Código Penal .punem o crime de aborto, ou tipificam como crime o aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (Código Penal, art. 124) e o aborto provocado por terceiro (Código Penal, art. 126). No artigo 128, I e II, a lei penal estabelece, expressamente, as exclusões do crime de aborto:
a) o aborto necessário, a fim de salvar a vida da gestante (Código Penal, art. 128, I); e b) o aborto no caso de gravidez resultante de estupro (Código Penal, art. 128, II).
O que se pretende, então, é que o Supremo Tribunal Federal estabeleça, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, mediante interpretação conforme a Constituição, a inconstitucionalidade da interpretação dos dispositivos penais indicados como impeditivos do aborto do feto anencéfalo.
Noutras palavras, que o Supremo Tribunal Federal estabeleça, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, mais uma causa de exclusão do crime de aborto. A interpretação conforme, no caso, não se limitaria a conferir, simplesmente, num caso de “normas polissêmicas ou plurissignificativas”, como registrou o Ministro Celso de Mello, forte no magistério de Gomes Canotilho (“Direito Constitucional”, 5ª ed., p. 235, RTJ 144/153), uma das interpretações possíveis, frente à Constituição. No caso, o Supremo Tribunal Federal estaria inovando no mundo jurídico, vale dizer, estaria criando mais uma forma de exclusão do crime de aborto, o que não seria possível em sede de interpretação conforme a Constituição.
Sem dúvida, Sr. Presidente, que a interpretação da lei é o que a vivifica. A interpretação da lei, noutras palavras, é a lei viva. Se “é certo que podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade”, não é menos certo, entretanto, que assim poderemos proceder “interpretando e, não, mudando-lhe o texto”, lecionou, nesta Corte, o saudoso Ministro Luiz Gallotti, no RE 71.758/GB (RTJ 66/165).
No caso, como ficou esclarecido, linhas atrás, pretende-se, mediante interpretação da lei penal conforme a Constituição, instituir uma terceira excludente de criminalidade relativamente ao crime de aborto.
O que se pretende, portanto, é que o Supremo Tribunal Federal inove no mundo jurídico. E inove mediante interpretação. Vale invocar, novamente, a lição do saudoso Ministro Luiz Gallotti: “podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade. Mas interpretar interpretando e, não, mudando-lhe o texto” (RTJ 66/165).
A precisão das palavras do Min. Moreira Alves é exemplar. Porém, o STF aparenta não as ter compreendido, já que frequentemente a Corte utiliza-se da interpretação conforme a constituição para verdadeiramente criar normas não postas pelo Legislativo. A ementa da mencionada ADPF nº 54, se contrastada com o voto acima transcrito, fala por si: “mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal”.
Aos opositores do dogma do legislador negativo nem é preciso tanto exagero, como o fez o argentino German J. Bidart Campos quando afirmou que se trata de condição humilhante que coloca o Poder Judiciário numa posição de inferioridade em relação ao Legislativo. Segundo ele, é quase que um “pedido de desculpas” por chegar perto da atividade legislativa. Isso nada mais seria do que “desmerecer e privar de sua própria função, a jurisdição constitucional”.[8]
Na verdade, ignorando as incongruências institucionais do Legislativo brasileiro e se atentando ao campo científico, nas situações em que o legislador foi explícito, há valores constitucionais de grande valia que justificam e, inclusive, exigem o citado “pedido de desculpas” pelo STF. O contrário seria o mesmo que ignorar o regime democrático e a separação de poderes.
Bibliografia
Alexy, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionales, 2002.
Ávila, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
Campos, German J. Bidart. Manual de la Constitución reformada. Tomo III, 1ª reimpresión, Buenos Aires: Ediar, 2004.
Dworkin, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GomesCanotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998.
Grau, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005.
Mendes, Gilmar Ferreira. Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2000.
[1]Grau, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005,p. 82.
[2] Ávila, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 22.
[3]GomesCanotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 250.
[4] Ávila, Humberto. Op. cit., p. 22.
[5] STF, Rp. 1.417, Rel. Min. Moreira Alves, In: Mendes, Gilmar Ferreira. Moreira Alves e o controle de constitucionalidade no Brasil. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2000, p. 52.
[6] Conferir, dentre outros: Dworkin, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 39 e s.;Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 2ª ed., Coimbra: Almedina, 1998,p. 1036 e s.; Alexy, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionales, 2002, p. 81 e s.
[7]STF, RHC nº 56.448/MG, Min. Rel. Moreira Alves, Diário da Justiça, 16/10/1978.
[8] Campos, German J. Bidart. Manual de la Constitución reformada. Tomo III, 1ª reimpresión, Buenos Aires: Ediar, 2004, p. 449.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. Interpretação conforme a Constituição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41531/interpretacao-conforme-a-constituicao. Acesso em: 22 nov 2024.
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