O princípio da nulidade da norma inconstitucional
Por anos a fio o Supremo Tribunal Federal adotou sem temperamentos o chamado princípio da nulidade da norma inconstitucional, segundo o qual uma norma considerada inconstitucional é nula ab initio. Eventual declaração de inconstitucionalidade teria, portanto, efeito extunc.
Trata-se de teoria trazida do direito americano nos primórdios do controle de constitucionalidade brasileiro, com influência direta de Rui Barbosa, que afirma: “‘Todo ato do Congresso’(diz Kent, o grande comentador) ‘todo ato das assembleias dos Estados, toda cláusula das Constituições destes, que contrariarem a Constituição dos Estados Unidos, são necessariamente nulos. É uma verdade óbvia e definitiva em nossa jurisprudência constitucional’. Essa consequência resulta evidentemente da própria essência do sistema. Onde se estabelece uma Constituição, com delimitação da autoridade para cada um dos grandes poderes do Estado, claro é que estes não podem ultrapassar essa autoridade, sem incorrer em incompetência, o que em direito equivale em nulidade. Nullus est major defectusquamdefectuspotestatis”. [1]
Na prática, o ato inconstitucional era encarado como se nunca tivesse existido, dele não emanando qualquer efeito.[2]
A relativização do aludido princípio começou a ganhar coro a partir de alguns estudos feitos por Gilmar Ferreira Mendes, que enxergou suas impropriedades e reconheceu que, em determinados casos, a decisão de inconstitucionalidade deve ter seus efeitos temporais limitados de acordo com as necessidades do caso concreto, a partir de um juízo de ponderação a ser formado pelo intérprete.[3] Trata-se de teoria desenvolvida, sobretudo, no direito alemão.
Nas palavras de Gilmar Mendes: “a base constitucional dessa limitação – necessidade de um outro princípio que justifique a não-aplicação do princípio da nulidade – parece sugerir que, se aplicável, a declaração de inconstitucionalidade restrita revela-se abrangente do modelo de controle de constitucionalidade como um todo. É que, nesses casos, tal como já argumentado, o afastamento do princípio da nulidade da lei assenta-se em fundamentos constitucionais e não em razões de conveniência. Se o sistema constitucional legitima a declaração de inconstitucionalidade restrita no controle abstrato, esta decisão poderá afetar igualmente, os processos do modelo concreto ou incidental de normas. Do contrário, poder-se-ia ter inclusive um esvaziamento ou uma perda de significado da própria declaração de inconstitucionalidade restrita ou limitada”.[4]
Tal premissa foi positivada – por influência direta de Gilmar Mendes, relator do anteprojeto que resultou nas duas leis que regulamentam as ações do controle concentrado de constitucionalidade perante o STF – pelo art. 27 da Lei nº 9.868/99, verbis:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
O Supremo Tribunal Federal, diante dessa nova realidade, passou a utilizar-se indiscriminadamente do mencionado dispositivo, inclusive no controle difuso de constitucionalidade.
Esse é o cenário que a inconstitucionalização das normas se desenvolveu no Brasil.
Definição
O chamado processo de inconstitucionalização das normas caminha ao laudo da mencionada modulação dos efeitos temporais da decisão de inconstitucionalidade, em especial no que se chama de inconstitucionalidade pro futuro por prazo definido ou indefinido.
Suas origens, como dito, estão ligadas ao direito alemão em que a Corte Constitucional legitimou o ProzessdesVerfassungswidrigwerdens e admitiu a total aplicação da norma ainda que considerada inconstitucional.[5]
Isso com base em modificações nas relações fáticas externas à sua relação de compatibilidade constitucional, transpondo a norma em um estado de transição da perfeita constitucionalidade ou inconstitucionalidade parcial à total inconstitucionalidade.
Essa “substancial alteração do suporte fático”, segundo Gilmar Mendes, “comprova que os fatos, constatações e prognoses concebidos ou adotados pelo legislador já não mais correspondem à vontade constitucional ou estão em via de com ela colidirem”.[6]
Uma vez atestado esse estado de iminência, pode-se a Corte valer-se do que chamam de “apelo ao legislador” – teoria também consagrada na Alemanha e trazida ao Brasil nos últimos anos.
É que, na prática, a constatação desse processo de inconstitucionalização de determinada norma coloca o legislador em mora para com o sistema constitucional, ante a sua omissão parcial substanciada na não atualização do preceito normativo segundo os novos dados fáticos obtidos.
Ao Judiciário, caberia, assim, alertar o Parlamento dessa situação para que tome as medidas cabíveis, sempre resguardando os princípios democráticos, da separação de poderes e seu papel de legislador negativo.
No Brasil, no entanto, tal medida não se demonstrou muito eficaz diante da extrema morosidade do Congresso.
O leading case que trouxe a tona o processo de inconstitucionalização das normas no STF nasceu a partir da instituição das defensorias públicas depois da Constituição Federal de 1988, seguindo seu art. 5º, LXXIV[7] e art. 134[8].A Lei Complementar nº 80/1994, nesse contexto, veio organizar “a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados”. Já a Lei nº 9.020/1995 veio dispor “sobre a implantação, em caráter emergencial e provisório, da Defensoria Pública da União”.
No direito pré-constitucional, uma das funções da Defensoria era atribuída ao Ministério Público pelo que dispunha o art. 68 do Código de Processo Penal (dispositivo não recepcionado pela Constituição): “quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1o e 2o), a execução da sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público”.
A solução desse impasse foi submetida ao Supremo Tribunal Federal no RE nº 147.776[9], Min. Rel. Sepúlveda Pertence, cujo acórdão restou assim ementado:
MINISTÉRIO PÚBLICO: LEGITIMAÇÃO PARA PROMOÇÃO, NO JUÍZO CÍVEL, DO RESSARCIMENTO DO DANO RESULTANTE DE CRIME, POBRE O TITULAR DO DIREITO À REPARAÇÃO: C. PR. PEN. ART. 68, AINDA CONSTITUCIONAL (CF. RE 135.328): PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS LEIS.
1. A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia extunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da norma da Constituição - ainda quanto teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada – subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fática que a viabilizem
2. No contexto da Constituição de 1988, a atribuição anteriormente dada ao Ministério Público pelo art. 68 C. Pr. Penal – constituindo modalidade de assistência judiciária – deve reputar-se transferida para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que – na União ou em cada Estado considerado –, se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente: é o caso do Estado de São Paulo, como decidiu o plenário no RE nº 135.328. [10]
Em suma, o STF chegou à seguinte conclusão: embora o art. 68 do Código de Processo Penal não tenha sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988 já que visivelmente contrário aos seus ditames, continuará a gerar efeitos até que as Defensorias Públicas dos Estados sejam efetivamente instituídas. Ou seja: até então, aludido dispositivo se encontra em um processo de inconstitucionalização porque ainda gera efeitos.
Na mesma linha, veja-se o que aconteceu com a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS – Lei nº 8.742/93). Em um primeiro momento, o STF considerou constitucional seu art. 20, §3º, que fixou o limite máximo de ¼ do salário mínimo de renda mensal per capta para que a pessoa seja considerada incapaz de prover a manutenção do idoso e deficiente físico para fins de recebimento de benefício de prestação continuada.[11] Diante de sucessivas modificações legislativas no âmbito da Assistência Social que, em geral, fixavam parâmetros distintos para atestar a incapacidade financeira de seus beneficiários, sucedeu-se o entendimento de que aludido dispositivo entrara em um processo de inconstitucionalização.[12] Sua inconstitucionalidade seria declarada mais tarde quando se afirmou: “como a Lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e de avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes”.[13]
Na oportunidade foi proposta, inclusive, a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade para que odispositivo perdurasse até 31/12/2015, quando, segundo alguns Ministros do STF, tornar-se-ia totalmente inconstitucional. Em tal prazo caberia ao Congresso legislar sobre a matéria. Tal proposta, em especial, não obteve quórum necessário.
Bibliografia
Barbosa, Rui. Atos inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003.
Cléve, Clémerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1995.
Felipeto, Rogério. Reparação do dano causado por crime. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
Kelsen, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1995.
Medeiros, Rui. A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica, 1999.
Mendes, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990.
Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004.
Mendes, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2004.
Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
[1]Barbosa, Rui. Atos inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003, p. 40.
[2]Cléve, Clémerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1995, p. 88-9; Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 54.
[3] A ideia trouxe ao STF o embate entre dois modelos de controle de constitucionalidade: o americano, que prega a teoria da nulidade absoluta da norma inconstitucional, e o austríaco, desenvolvido por Hans Kelsen, que prega a teoria da anulabilidade da norma inconstitucional. Sobre esse último, v. Kelsen, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 230 e s. No Supremo Tribunal Federal, tradicionalmente, as tentativas de se implantar o modelo austríaco não obtiveram sucesso. V., por exemplo, STF,RE nº 93.356/MT, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ 97e RE nº 79.343/BA, Rel. Min. Leitão de Abreu, RTJ 82, p. 794-5, em que o Min. Leitão de Abreu sustentou sem sucesso perante a Corte: “Acertado se me afigura, também, o entendimento de que se não deve ter como nulo ab initio ato legislativo, que entrou no mundo jurídico munido de presunção de validade, impondo-se em razão disso, enquanto não declarado inconstitucional, à obediência pelos destinatários dos seus comandos. Razoável é a inteligência, a meu ver, de que se cuida, em verdade, de ato anulável, possuindo caráter constitutivo a decisão que decreta a nulidade”.
[4]Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 296-7. No mesmo sentido e do mesmo autor: ______. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 303 e s. Referência na matéria, temos: Medeiros, Rui. A decisão de inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei. Lisboa: Universidade Católica, 1999, passim.
[5] V. Mendes, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 21 e s.
[6]Mendes, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 22.
[7]LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;
[8]Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV.
§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais (Antigo parágrafo único renumerado pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.2004).
[9] Sobre o tema tratado nesse julgado, vide: Felipeto, Rogério. Reparação do dano causado por crime. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 57 e s.
[10] STF, RE nº 147.776, Min. Rel. Sepúlveda Pertence, Diário da Justiça, 19/6/1998.
[11] STF, ADI nº 1.232, Rel. p/ acórdão Min. Nelson Jobim, DJU 01/06/2001.
[12] V., dentre muitos, Rcl 4374, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 03-09-2013.
[13] RE nº 580.963, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe 13/11/2013.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. O processo de inconstitucionalização das normas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41551/o-processo-de-inconstitucionalizacao-das-normas. Acesso em: 22 nov 2024.
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