A Constituição Federal de 1988, em seu art. 203, inciso V, possibilita que o legislador infraconstitucional discipline a concessão do benefício de prestação continuada – BPC, respeitado o requisito de comprovação do requerente de não possuir meios de prover a própria subsistência ou de tê-la provida por sua família.
Nesse contexto, a finalidade do requisito econômico é estabelecer um nível de pobreza a partir do qual seja possível definir família incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa.
Esse nível de pobreza, por sua vez, é estabelecido mediante avaliação da renda per capita da família, a qual será considerada necessitada se esta for inferior a ¼ do salário mínimo, decorrendo daí a necessidade de indicar quais os integrantes da família terão as suas rendas computadas no cálculo.
Em sua redação original, o art. 20, § 1º, da lei nº 8.742/93 assim definia família:
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011)
(...)
§ 1º Para os efeitos do disposto no caput, entende-se por família a unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes. (BRASIL, 1993)
Percebe-se que o conceito acima estava dissociado das relações biológicas e independia, portanto, da existência de grau de parentesco. Isso porque, principalmente nas famílias de menor renda - que são os potenciais beneficiados do BPC - o agrupamento de pessoas são diversificados e constitui-se na forma que encontrem para melhor fazer face às eventualidades da vida, de forma a reunir recursos conjuntos.
Assim, utilizando-se de uma perspectiva sociológica, muito útil à realidade brasileira, a norma contemplou a família de forma abrangente, possibilitando os mais diversos arranjos a partir da consanguinidade, que vai além do núcleo formado pela conjugalidade e os filhos daí diretamente decorrentes.
Todavia, a partir da edição da Lei 9.720/1998, foi estabelecida uma conceituação mais restritiva, passando-se a considerar família o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei nº 8.213/91 e que vivam sob o mesmo teto, quais sejam, os cônjuges, companheiros, o filho e o irmão não emancipados, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido, os pais, bem como o enteado e o menor tutelado.
Vê-se, portanto, que com as alterações da Lei 9.720/1998 foram excluídos alguns parentes do conceito de família para fins de apuração da renda mensal per capita, não obstante coabitarem no mesmo teto, entre eles os filhos maiores de vinte um anos, desde que não sejam inválidos, netos, genros, entre outros.
Ocorre que a referida alteração, responsável por delimitar o conceito de família, gerou grande polêmica na prática, pois, fundamentando-se nas peculiaridades dos casos concretos, começaram a se desenvolver inúmeras decisões relativizando esse rol exaustivo do grupo familiar.
O que se tem percebido até o momento na jurisprudência é a ênfase na avaliação da situação de risco social a que a família está submetida como critério de decisão, deixando-se de lado a interpretação puramente gramatical, a qual poderia levar, muitas vezes, a resultados que contrariam o objetivo da norma.
Nesse sentido posicionou-se a Turma Nacional de Uniformização, no curso do processo nº 200770950023355, Relator Juiz Federal Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha (DJU 20.10.2008), a qual decidiu no sentido de prevalência da análise criteriosa pelo julgador da conexão entre a norma legal e a realidade fática, em que as pessoas que compõem o núcleo familiar devem ser selecionadas não com base exclusivamente em um critério legal pré-definido, mas da análise socioeconômica específica para aquele caso, conforme trecho abaixo transcrito:
Apenas para tornar mais clara a minha exposição, ilustro com um exemplo. Se temos umafamília composta por pai, mãe e um filho maior, esse último, solteiro e único trabalhador dafamília,com apenas 25 anos e possuidor de uma renda mensal de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), preenchidos os demais requisitos para a percepção dobenefício,nenhum óbice haveria para o recebimento dobenefíciopela mãe ou pai, uma vez que a renda mensal familiar seria nula, exatamente porque o filho, sendo maior, estaria excluído do seu cômputo, nos termos do dispositivo legal mencionado acima. Por outro lado, se temos um pai que recebe umbenefíciode apenas um salário mínimo, com ele convivendo a esposa e mais dois filhos e um neto, todos menores e sem qualquer renda, ainda que preenchidos os demais requisitos e comprovada a miserabilidade dafamília,por incontestável laudo sócio-econômico, não faria ele jus aobenefício, leis que, sendo o neto excluído doconceitode família,a renda mensal estaria acima do limite legal (menor que um quarto e aqui igual a um quarto do s.m.). Veja que, mesmo que o laudo social tenha atestado o contrário, no primeiro caso caberia ao Estado prestar assistência a quem dela não necessita efetivamente e, no segundo caso, negá-la, mesmo diante da evidente necessidade! É esta a preocupação que demonstro, ou seja, o apego desenfreado e acrítico ao conteúdo legal, que, sob o marco de uma pretensa pseudo-certeza e segurança jurídica, exorciza a realidade, obnubilando o acontecer da Constituição. A prevalecer esse modo de enxergar o Direito, estaremos impedindo o constituir da Constituição e a realização do projeto de vida boa que a sociedade persegue, segundo esse projeto constitucional que pretende projetar-se em seu seio. É ela, a Constituição, que permeia todo o Direito e é a ela, à Constituição, que deve submeter-se o legislador. Não se trata de apologia a qualquer ativismo judicial, mas de por sob a visada constitucional a obra do legislador, a fim de perquirir se da sua atuação resulta qualquer contradição com a Carta. E parece-me que, a tornar absoluto o matemático critério, acabamos por colocar o Direito à margem do mundo da vida, uma desconexão que somente se presta a ratificar a inefetividade dos direitos fundamentais e o acontecer da própria Constituição.(BRASIL, 2008).
Por outro lado, a mesma TNU já decidiu de forma diversa quando afastou a filha maior de 21 anos do núcleo familiar, sob o fundamento principal de que o art. 20, § 1º, da Lei nº 8.742/93 fazia referência ao art. 16 da Lei nº 8.213/91, e que o citado rol é exaustivo (ou seja, argumento totalmente oposto ao do acórdão citado acima, que considerou a listagem como sendo exemplificativa). Vejamos:
PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO NACIONAL. PREVIDENCIÁRIO. CONCESSÃO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL A MULHER IDOSA. NOÇÃO DE GRUPO FAMILIAR. INTERPRETAÇÃO RESTRITA DO ART. 20, §1º, DA LEI Nº 8.743/95 E DO ART. 16 DA LEI Nº 8.213/91. 1. Para fins de concessão de benefício assistencial, o conceito de grupo familiar deve ser obtido mediante interpretação restrita das disposições contidas no §1º do art. 20 da Lei nº 8.742/93 e no art. 16 da Lei nº8.213/91, entendendo-se como família o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei nº 8.213/91, desde que vivam sob o mesmo teto. 2. Caso em que não se inclui no grupo familiar da autora, a filha maior, ainda que viva sob o mesmo teto. 3. Isto porque a norma de regência é expressa e o rol do art. 16 da Lei nº 8.213/91 é taxativo, sendo descabida, no caso, interpretação in dúbio contra misero, ainda mais tratando-se, como se trata, de benefício de caráter assistencialista. 4. Ademais, por ser esporádica a colaboração dos filhos maiores no sustento de seus ascendentes, não seria razoável a mantença do idoso ou do portador de deficiência ad eternum ao alvitre de outro integrante do grupo familiar, que, pode, eventualmente, cessar a cooperação no sustento do hipossuficiente, deixando-o sem condições de prover à própria subsistência. 5. Pedido de uniformização provido. (BRASIL, 2010).
Posteriormente, o art. 20, § 1º, da Lei 8.742/93, teve sua redação novamente modificada pela Lei 12.435/2011, estabelecendo que a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.
Verifica-se, dessa forma, que a norma ainda se mantém distanciada de sua redação original, que permitia a inclusão, no grupo familiar, de qualquer pessoa vivendo sob o mesmo teto, independentemente de relação civil de parentesco, e assemelha-se ao texto anterior, já que lista expressamente quem pode ser considerado como integrante do núcleo familiar.
O fato da Lei 12.435/2011 ter reiterado a técnica adotada pela Lei 9.720/1998, não obstante as inúmeras discussões acerca do caráter exemplificativo ou exaustivo desta norma, demonstra claramente que a intenção do legislador foi a de restringir os integrantes do núcleo familiar às pessoas listadas expressamente no art. 20, § 1º, da Lei 8.742/93.
Assim, tem-se que, com o advento da Lei 12.435/2011, somente podem ser inseridas no cômputo de integrantes e na apuração da renda do grupo familiar as pessoas com o mesmo domicílio arroladas de forma expressa e exaustiva no art. 20, § 1º, da Lei 8.742/93.
Ressalte-se, ainda, que a Lei 12.435/2011 inseriu a figura do padrasto e da madrasta no conceito de família. Ora, se o enteado era considerado como membro do grupo familiar do seu padrasto ou madrasta, até mesmo anteriormente à alteração trazida pela Lei 12.435/2011, razoável que a renda destes também seja levada em consideração para fins de aferição da renda do grupo familiar do enteado.
Em decorrência da nova norma foi também retirado o limite de idade, previsto no art. 16 da Lei 8.213/91 – já que o referido dispositivo inclui como dependentes previdenciários o filho e o irmão não emancipados, menores de 21 anos ou os inválidos - e foi estabelecida uma nova condicionante para que o filho, enteado, ou irmão do requerente seja considerado o grupo familiar: ser solteiro. Isso porque se o filho, enteado ou irmão, possuir vínculo matrimonial ou de união estável, ele faz parte de outro grupo familiar, e seus rendimentos são direcionados a este, mesmo que resida no mesmo teto do requerente.
Em síntese, a alteração legal excluiu do conceito familiar as pessoas que, não obstante guardem relação de parentesco e domicílio comum com o requerente do benefício,possuem outros dependentes.
Por fim, tem-se que, com ampliação do grupo familiar, com a inserção de filhos, enteados e irmãos maiores de 21 anos, desde que solteiros, haverá, em regra, uma diminuição na concessão dos benefícios assistenciais. Assim, sendo estes componentes, na maioria dos casos, economicamente ativos, as suas rendas passam a ser consideradas no cálculo da renda per capita do requerente. Por outro lado, caso estes novos componentes que foram inseridos no grupo familiar não possuem alguma renda, a ampliação do grupo familiar facilitará a comprovação do requisito socioeconômico pelo requerente.
Referências
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PROCURADOR FEDERAL lotado na Procuradoria Federal em Minas Gerais, Especialista em Direito Público pela PUC/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: XAVIER, Bruno Di Fini. O Conceito de família para aferição do requisito econômico do Benefício de Prestação Continuada - PBC Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 nov 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41552/o-conceito-de-familia-para-afericao-do-requisito-economico-do-beneficio-de-prestacao-continuada-pbc. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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