Sumário: Introdução; 1. Os contratos administrativos e o formalismo que tradicionalmente os rege; 2. A necessidade de um formalismo moderado: a necessidade de se respeitar a boa-fé do administrado e de se evitar que a Administração Pública beneficie-se de um enriquecimento sem causa; Considerações finais; Referências bibliográficas.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo expor, em breve síntese, a necessidade de se flexibilizar determinados preceitos publicistas, no que toca aos contratos administrativos, seja em respeito ao princípio da boa-fé dos administrativos, seja em decorrência da vedação ao enriquecimento sem causa por parte da Administração Pública.
Com isto, espera-se fornecer elementos que ajudem a melhorcompreender determinadas peculiaridades afetas ao direito administrativo, em especial a necessidade de moderação no formalismo inerente aos contratos administrativos.
1. Os contratos administrativos e o formalismo que tradicionalmente os rege
O direito administrativo, como um todo, rege-se predominantemente por normas de direito público. Em relação aos contratos administrativos essa realidade não é diferente.
Como decorrência dessa normatização publicística, as relações levadas a efeito no campo do direito administrativo, tradicionalmente, têm em si um formalismo intrínseco.
O que não se pode perder de vista, entretanto, é a finalidade do formalismo, que é dar maior segurança às relações jurídicas. Daí, não se deve deixa-lo atingir dimensão que prejudique a própria essência do ato/contrato administrativo.
Exemplo. A cor da caneta não deve ser critério/óbice aos licitantes, no que se refere à obrigação de se rubricar as propostas apresentadas à Administração. Tratar-se-ia de um formalismo exacerbado, descontextualizado do seu papel de prover segurança e, ainda, seria passível de causar dano à finalidade administrativa, ao gerar empecilhos à máxima competitividade.
Pois bem.
Para se firmar contratos administrativos, a Lei de Licitações (Lei 8.666/93) prevê diversas regras (ver em especial o Cap. III, a partir da Seção II – “Da formalização dos contratos”), a exemplo daquela contida em seu artigo 61:
“Art. 61. Todo contrato deve mencionar os nomes das partes e os de seus representantes, a finalidade, o ato que autorizou a sua lavratura, o número do processo da licitação, da dispensa ou da inexigibilidade, a sujeição dos contratantes às normas desta Lei e às cláusulas contratuais.”
Entre outras formalidades, exige-se também que o contrato tenha forma escrita, salvo pequenas compras de pronto pagamento, sob pena de nulidade do contrato, conforme parágrafo único, do art. 60, do referido diploma legal:
“Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea "a" desta Lei, feitas em regime de adiantamento.” (g.n.).
Sendo assim, a norma permitiria apenas a validade de contratos verbais atinentes a pequenas compras (R$ 4.000,00), de pronto pagamento, ainda que houvesse efetivo contrato verbal de compra de bens, realizada a prestação pelo particular.
Ora, seria possível a Administração Pública, em nome do formalismo alusivo ao contrato escrito, deixa de considerar válido o contrato e honrar o respectivo pagamento, quando realizada a avença verbal com o particular, para a prestação de serviços, por exemplo, tendo se desincumbido de sua prestação? E a aquisição de bem no valor de R$ 5.000,00?
Entende-se que não, consoante fundamentação que será exposta no tópico adiante.
2. A necessidade de um formalismo moderado – a necessidade de se respeitar a boa-fé do administrado e de se evitar que a Administração Pública beneficie-se de um enriquecimento sem causa
Permitir que, em situações como a acima narrada, não haja a contraprestação do Poder Público, é considerar razoável que o particular tenha sua boa-fé ferida e, por outro lado, a Administração aufira ganho sem nada desembolsar.
No ponto, a corroborar a exposição supra, válido trazer à tona, a lição da doutrina acerca da questão envolvendo o parágrafo único, do artigo 60, da Lei 8.666/93:
“(...) a interpretação literal da norma levaria à conclusão de que os contratos verbais, que não são de pequenas compras, não seriam considerados válidos e não produziriam efeitos, inclusive o efeito do pagamento. Ocorre que essa interpretação prejudicaria o particular de boa-fé que forneceu o bem ou prestou o serviço e acarretaria o enriquecimento sem causa da Administração. Por esta razão, a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido o dever da Administração contratante de pagar ao contratado pela execução do ajuste verbal, em homenagem aos princípios da boa-fé e da vedação do enriquecimento sem causa.[1]”
Portanto, em face dos princípios da boa-fé (em relação ao administrado) e da vedação ao enriquecimento sem causa (no que toca à Administração), tem-se compreendido que determinadas contratos verbais, ainda que não enquadrados nos parâmetros formais do parágrafo único, do art. 60, sejam considerados válidos.
Nesse sentido, reafirmando a posição ora defendida, a jurisprudência do STJ, o Enunciado 8 da PGE/RJ e a Orientação Normativa AGU 4[2]:
STJ: “ADMINISTRATIVO. OBRAS EMERGENCIAIS. CONTRATO COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DECLARAÇÃO DE NULIDADE. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. DIREITO À INDENIZAÇÃO.
1. A eventual declaração de nulidade do contrato administrativo não tem o condão de exonerar a Administração Pública do dever de indenizar as obras já realizadas, desde que (1º) tenha ela, Administração, auferido vantagens do fato e (2º) que a irregularidade não seja imputável ao contratado.
2. Reconhecido nos autos que as obras foram não apenas orientadas, acompanhadas e incentivadas pelo município, como também resultaram no seu interesse exclusivo, não há como negar o direito à indenização pleiteada.
3. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido.(REsp 317.463/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/03/2004, DJ 03/05/2004, p. 126)”
Enunciado 8 da PGE/RJ: “Os serviços prestados pelo particular de boa-fé sem cobertura contratual válida deverão ser indenizados (art. 59, parágrafo único, da Lei 8.666/93). O Termo de Ajuste é o instrumento hábil para promover a indenização dos serviços executados (Lei Estadual n° 287/1979, art. 90, parágrafo 2°, I c/c Decreto Estadual n° 3.149/1980, art. 67, II), impondo-se ao administrador público o dever de apurar a responsabilidade dos agentes que deram causa à situação de nulidade”
Orientação Normativa AGU 4: “A despesa sem cobertura contratual deverá ser objeto de reconhecimento da obrigação de indenizar nos termos do art. 59, parágrafo único, da Lei 8.666, de 1993, sem prejuízo da apuração da responsabilidade de quem lhe der causa.”
Este entendimento, como visto acima, encontra amparo também na imposição normativa contida no parágrafo único, do art. 59, da Lei 8.666/93:
Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa. (g.n.)
Importante ressalva deve ser feita, como corolário lógico da menção à existência de boa-fé do administrado, no sentido de que, caso a irregularidade/nulidade advenha do próprio particular, o qual, em verdade, teria agido de má-fé, este não terá direito a qualquer indenização.
Nesse sentido o STJ já decidiu que:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO.HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. AUSÊNCIA DE LICITAÇÃO. NULIDADE.CONTRATANTE QUE DEU CAUSA À INVALIDAÇÃO DO INSTRUMENTO. DEVER DE INDENIZAR AFASTADO. SÚMULA 83/STJ. REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INVIABILIDADE. SÚMULA 7/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. NÃO COMPROVAÇÃO.
1. O Tribunal a quo, em virtude da nulidade de contrato administrativo celebrado sem realização de procedimento licitatório devido, afastou o dever de indenizar da Administração ao entender que os agravantes deram causa à invalidação do instrumento.
2. No tocante à levantada contrariedade ao art. 22 da Lei 8906/94 e ao art. 59 da Lei 8666/93, o acórdão recorrido harmoniza-se com a orientação pacífica do STJ de que não há o dever de indenizar por parte da Administração nos casos de ocorrência de má-fé ou de ter o contratado concorrido para a nulidade. Incidência da Súmula 83/STJ
3. A pretensão recursal - afastar a tese de que a invalidade do contrato é imputável aos agravantes - esbarra no reexame dos aspectos fáticos da lide, vedado ao STJ, nos termos de sua Súmula 7. (...) (AgRg no REsp 1394161/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/10/2013, DJe 16/10/2013)
Portanto, reconhecida a boa-fé do particular e o proveito econômico da Administração, esta deve indenizar o administrado, a fim de que não venha a obter enriquecimento sem causa, cumprindo ressaltar, na esteira da doutrina que:
“(...) essa possibilidade deve ficar adstrita aos casos de urgência, hipótese em que a licitação, inclusive, é dispensável (art. 24, IV, da Lei 8.666/93) e a boa-fé é presumida, sob pena de se incentivarem o conluio e o cometimento de ilegalidades por parte da Administração e de determinados particulares.”[3].
Considerações finais
Como se pôde perceber, nas linhas acima, o direito administrativo, como ramo do direito público, possui relevante grau de formalismo, o que sói ocorrer no que toca ao tema contratos administrativos.
No entanto, por vezes, como acontece na hipótese do parágrafo único, do art. 60, da Lei 8.666/93, o formalismo intrínseco aos atos/contratos administrativos, deve ter natureza moderada, a fim de evitar o sacrifício de outras normas e/ou princípios jurídicos.
Como restou esclarecido, há situações em que, ainda que o contrato seja verbal, de um serviço de pequeno valor e pronto pagamento, tal avença merece ser respeitada e adimplida pelo Poder Público, em nome de princípios como o da boa-fé (do administrado) e da vedação ao enriquecimento sem causa (por parte da Administração), com amparo inclusive no art. 59, da mesma Lei. A doutrina e a jurisprudência, como se procurou destacar, caminham no mesmo sentido.
A partir deste breve artigo, espera-se ter fornecido elementos capazes de ajudar a melhor compreender determinadas peculiaridades afetas ao direito administrativo, em especial a necessidade de moderação no formalismo inerente aos contratos administrativos.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 2ª. Ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2014.
Notas:
[1]OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 2ª. Ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2014. Pág. 433.
[2]Citados na obra de OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Ob. Cit. Pág. 433/434.
[3]OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Ob. Cit. Pág. 434.
Procurador Federal e Professor de Processo Civil da Universidade Estadual do Tocantins (UNITINS). Pós-graduado em Direito Público (UnB/AGU), em Direito da Economia e da Empresa (Fundação Getúlio Vargas - FGV) e em Relações Internacionais (Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAGA, Bruno César Maciel. Os contratos administrativos e o formalismo moderado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41577/os-contratos-administrativos-e-o-formalismo-moderado. Acesso em: 22 nov 2024.
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