Introdução
As normas definidoras de direitos fundamentais, na atualidade, são enquadradas na categoria de princípios, ou seja, normas que ordenam que algo seja realizado da melhor forma possível dentre as possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Trata-se do conceito de mandamentos de otimizaçãocriado pelo alemão Robert Alexye amplamente difundido no Brasil.[1]
Ocorre que, para se conferir eficácia otimizada aos direitos fundamentais, são precisos alguns incrementos para que se distanciem das demais normas em geral e possam exercer fielmente o papel importantíssimo que lhes foi concedido no novo constitucionalismo.
Nesse ponto, há algumas notas que lhes distinguem: foram elevados à condição de cláusulas pétreas(CF, art. 60, § 4º, IV), contam com um núcleo essencial que não pode ser tocado em caso de restrições, caminham ao lado do princípio da proporcionalidade para que não ocorra nenhuma invasão irrazoável e, dentre outras, possuem aplicabilidade imediata.
O princípio da aplicabilidade imediata
Expressamente garantido na Constituição Brasileira de 1988 (art. 5º, § 1º)[2], na Constituição Portuguesa de 1976 (art. 18º, 1º)[3] e na Constituição Alemã de 1949 (art. 1º, 3)[4], o princípio da aplicação imediata dos direitos fundamentais confere-lhes eficácia direta e independente de legislação infraconstitucional. Alcança todos os direitos fundamentais, explícitos ou implícitos no texto constitucional.
Por aplicabilidade imediata não se entenda aplicabilidade irrestrita, no entanto: os direitos fundamentais estão sujeitos a frequentes restrições e conformações.
Em tempo: restrição se afasta de conformação. A primeira cuida de limitar o conteúdo de determinado direito a partir de expressa autorização constitucional, que se utiliza de expressões como “nos termos da lei” ou “nas hipóteses que a lei estabelecer”. Já as conformações atuam diante de conceitos indeterminados ou abstratos como meio de regular, precisar, configurar determinado direito.[5]
O fato é: por terem conteúdo aberto e flexível fática e juridicamente, os direitos fundamentais permitem que seu conteúdo seja invadido, limitando sua aplicação de acordo com a necessidade e conveniência harmoniosa dos mais variados valores assegurados em uma sociedade pluralista/inclusiva. Essa é a ideia de limites imanentes, caracterizados pelo constante conflito entre si. As palavras do italiano Gustavo Zagrebelky, nesse contexto, são de grande valia:
As sociedades pluralistas atuais – isto é, as sociedades marcadas pela presença de uma diversidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos diferentes, mas sem que nenhum tenha força suficiente para fazer-se exclusivo ou dominante e, portanto, estabelecer a base material da soberania estatal no sentido do passado – isto é, as sociedades dotadas em seu conjunto de um certo grau de relativismo conferem à Constituição não a tarefa de estabelecer diretamente um projeto predeterminado de vida em comum, senão a de realizar as condições de possibilidade da mesma.[6]
E conclui:
No tempo presente, parece dominar a aspiração a algo que é conceitualmente impossível, porém altamente desejável na prática: a não-prevalência de um só valor e de um só princípio, senão a salvaguarda de vários simultaneamente. O imperativo teórico da não-contradição – válido para a scientia juris – não deveria obstaculizar a atividade própria da jurisprudentia de intentar realizar positivamente a ‘concordância prática’ das diversidades, e inclusive das contradições que, ainda que assim se apresentem na teoria, nem por isso deixam de ser desejáveis na prática. ‘Positivamente’: não, portanto mediante a simples amputação de potencialidades constitucionais, senão principalmente mediante prudentes soluções acumulativas, combinatórias, compensatórias, que conduzam os princípios constitucionais a um desenvolvimento conjunto e não a um declínio conjunto.[7]
De qualquer forma, pelo princípio da aplicabilidade imediata, os direitos fundamentais fogem da categoria das chamadas normas programáticas, que atuam como diretrizes impostas ao legislador a serem observadas quando for tratar de determinado assunto.[8]
Dito de outra forma, contam com critérios materiais de aferição que podem ser tornados plausíveis de plano a partir de seu próprio conteúdo normativo, sem viver a mercê das leis ordinárias.[9]
Há casos, porém, que o próprio dispositivo constitucional chama a atuação do legislador ordinário para que lhe confira forma (conformação), admitindo, como visto, restrições em seu conteúdo (são as chamadas restrições mediatas, dependentes da atuação do legislador).
Tal fato, porém, não lhes retira a eficácia plena.
Atuam em sua dimensão negativa impedindo a edição de atos estatais que contrariem seu conteúdo ou, quando menos, o restrinjam sem a correta ponderação de bens. E, da mesma forma, em sua dimensão positiva ou prestacional, exigindo do Estado seu cumprimento independentemente de legislação.
É o que nos coloca Canotilho fazendo duas observações sobre a aplicação imediata desses direitos: (i) a primeira cinge-se ao fato de que não necessitam de mediações, desenvolvimento ou concretização legislativa para que sejam aplicados, pelo que se aplicam na ausência de lei; e (ii) a segunda é que aas leis que os contrariem são consideradas inconstitucionais, permitindo sua aplicação ainda que contra a lei ou em vez da lei.[10]
Mesmo depois de editado o ato normativo respectivo, a aplicabilidade imediata continua gerando efeitos plenos. Nessa hipótese, inclusive avança guiando o papel do intérprete. Cria-seuma interpretação das leis “conforme os direitos fundamentais”.[11]
Assim, em resumo, o princípio da aplicabilidade imediata se manifesta nas seguintes assertivas: (i) concede eficácia direta aos direitos fundamentais, indiferente da existência de normas infraconstitucionais; (ii) caso existam referidas normas, devem obrigatoriamente ser interpretadas em conformidade ao direito fundamental em questão; (iii) a partir de sua consagração, chega-se aos limites imanentes dos direitos fundamentais, ou seja, na aplicabilidade imediata de vários direitos ainda que concorrentes; e, com isso, (iv) enaltece a ponderação de interesses, pressuposto de qualquer sociedade pluralista.
Atuação do Supremo Tribunal Federal
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é farta nos exemplos em que o princípio da aplicabilidade imediata é utilizado como meio de instituição de políticas públicas.
Veja-se o que a Corte decidiu, por exemplo, no RE nº 410.715 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 03-02-2006:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina.
Em outra oportunidade, garantiu-se a aplicabilidade direta do art. 196 da Constituição Federal no que concerne ao direito à saúde, reconhecendo o dever do Estado em fornecer gratuitamente medicamentos às pessoas necessitadas (RE nº 271.286, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24-11-2000):
PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ- LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.
Como se vê, o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais tem lugar nos casos em que houve ou não a manifestação do legislador. Trata-se, pois, de importante mecanismo na defesa da Constituição, que não pode ficar a mercê de questões de cunho institucionais, legislativas, políticas ou orçamentárias.
Bibliografia
Alexy, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionales, 2002.
Gomes Canotilho, José Joaquim. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.
Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003.
Gomes Canotilho, José Joaquim; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1992.
Häberle, Peter. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2003.
Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004.
Müller, Frederich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 2000.
Novais, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.
Pardo, David Wilson de Abreu. Os direitos fundamentais e a aplicação judicial do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
Steinmetz, Wilson Antonio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
Zagrebelsky, Gustavo. El Derecho Dúctil: Ley, derechos, justicia. 5ª ed., Madrid: Trotta, 2003.
[1]Naspalavras de Robert Alexy: “El punto decisivo para la distinción entre reglas e principios es que los principios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas” (Alexy, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionales, 2002, p. 86)
[2] “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
[3] “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.
[4] “Os direitos fundamentais aqui enunciados constituem preceitos jurídicos diretamente aplicáveis, que vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judicial”.
[5] Sobre aludida distinção, v. Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 15 e s.; Steinmetz, Wilson Antonio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 39-42; Alexy, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002, p. 321-9; Häberle, Peter. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2003, p. 69-75; Novais, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 182; Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 1263-4.
[6]Zagrebelsky, Gustavo. El Derecho Dúctil: Ley, derechos, justicia. 5ª ed., Madrid: Trotta, 2003, p. 13.
[7]Zagrebelsky, Gustavo. Op. cit., p. 16.
[8] Sobre as normas programáticas: Gomes Canotilho, José Joaquim. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 223-4.
[9]Müller, Frederich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2ª ed., São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 78-9.
[10]Gomes Canotilho, José Joaquim; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 146-7.
[11]Pardo, David Wilson de Abreu. Os direitos fundamentais e a aplicação judicial do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 163-72.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. O princípio da aplicação imediata dos direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41579/o-principio-da-aplicacao-imediata-dos-direitos-fundamentais. Acesso em: 22 nov 2024.
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