RESUMO: No presente artigo estudaremos os aspectos legais e doutrinários de um interessante caso julgado recentemente pelo STJ. Trata-se de uma ação judicial em que se pleiteava indenização pelo não recolhimento das células-tronco do cordão umbilical de um recém-nascido. Utilizaremos esse caso prático para analisar a questão da possibilidade de indenização por dano moral ao nascituro e a teoria da perda de uma chance que, embora seja ainda recente na doutrina e na jurisprudência, vem ganhando cada vez mais espaço no Direito Civil brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: DIREITO. RECÉM-NASCIDO. INDENIZAÇÃO. DANOS. MORAIS. PERSONALIDADE. DIGNIDADE. PESSOA. HUMANA. RESPONSABILIDADE. CIVIL. TEORIA. PERDA. CHANCE.
1. Introdução
Em recente julgamento (REsp 1.291.247[1]), o Superior Tribunal de Justiça concedeu indenização por danos morais a um recém-nascido pela falha na prestação de serviço por empresa especializada em coleta e armazenagem de células-tronco embrionárias, com fulcro em dois importantes fundamentos: o direito do nascituro a danos morais e a teoria da perda de uma chance.
Esses dois temas, bastante atuais e polêmicos na doutrina e jurisprudência, constituem o objeto do presente artigo.
2. Proteção aos direitos da personalidade – direito do recém-nascido a danos morais
A Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (ECA), em seu art. 3º, estabelece que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
Observa-se que a norma inserta nesse dispositivo legal confere capacidade plena, no tocante aos direitos fundamentais, ao menor de idade. Assim, a criança e o adolescente, embora não tenham atingido a maturidade física e psicológica, encontram-se em situação jurídica idêntica à dos adultos, quando se trata de direitos fundamentais.
Ressalte-se que entre os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, encontra-se a dignidade da pessoa humana, que compreende a garantia dos direitos da personalidade, os quais, segundo Carlos Alberto Bittar, são “direitos inatos (originários), absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios, necessários e opníveiserga omnes”[2].
Cumpre lembrar, por oportuno, que o art. 2º do Código Civil fixa como o início da personalidade civil o nascimento com vida, colocando a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Nessa esteira, Caio Mario da Silva Pereira ensina que “a personalidade, como atributo da pessoa humana, está a ela indissoluvelmente ligada. Sua duração é a da vida. Desde que se vive e enquanto se vive, o homem é dotado de personalidade”[3]. (Instituições de Direto Civil, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 2009, 23ª ed., p. 183).
Maria Helena Diniz adota o conceito criado por Goffredo Telles Jr. para definir os direitos da personalidade como “os direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a vida, a integridade, a liberdade, a sociabilidade, a reputação ou honra, a imagem, a privacidade, a autoria etc.”, acrescentado que “são direitos subjetivos ‘excludendialios’, ou seja, direitos de exigir um comportamento negativo dos outros, protegendo bens inatos, valendo-se de ação judicial"[4].
Portanto, no ordenamento jurídico brasileiro, a proteção aos direitos da personalidade é irrestrita, tendo o art. 12 do Código Civil previsto a possibilidade de indenização por danos morais sempre que houver ameaça ou lesão aos direitos personalíssimos.
Ressalte-se que a lei não restringe o direito à indenização às pessoas adultas ou àqueles com capacidade de fato ou de exercício, podendo-se concluir que, quando se trata da proteção aos direitos da personalidade, o recém-nascido, a despeito da ausência de consciência, tem direito a danos morais. Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “as crianças, mesmo da mais tenra idade, fazem jus à proteção irrestrita dos direitos da personalidade, entre os quais se inclui o direito à integridade mental, assegurada a indenização pelo dano moral decorrente de sua violação, nos termos dos arts. 5º, X, in fine, da CF e 12, caput, do CC/02” (REsp 1037759/RJ[5]).
Reconhecendo a possibilidade de se conceder indenização por danos morais ao nascituro, o STJ, no julgamento do REsp 1.291.247, que constitui a base do presente artigo, entendeu que a falha da empresa especializada, que deixou de coletaro materialgenético que poderia ser usado, no futuro, em eventual tratamento de saúde do então recém-nascido, causou-lhe danos extrapatrimoniais, passíveis de reparação.
Observa-se, dos julgados ora citados, a prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana, na proteção aos direitos da personalidade.
3. Teoria da perda de uma chance
A teoria da perda de uma chance decorre da evolução do instituto da responsabilidade civil que, atualmente, deixou de exigir a existência de culpa, passando a configurar verdadeira reparação do dano, fundamentada no risco.
Pablo StolzeGagliano e Rodolfo Pamplona Filho ensinam que “a responsabilidade, para o Direito, nada mais é, portanto, que uma obrigação derivada – um dever jurídico sucessivo – de assumir as consequências jurídicas de um fato, consequências essas que podem variar (reparação dos danos e/ou punição pessoal do agente lesionante) de acordo com os interesses lesados[6].
Para Regina Beatriz Tavares da Silva, “muito embora a doutrina não seja uniforme na conceituação da responsabilidade civil, é unânime a afirmação de que este instituto jurídico firma-se no dever de ‘reparar o dano’, explicando-o por meio de seu resultado, já que a ideia de reparação tem maior amplitude do que a de ato ilícito, por conter hipóteses de ressarcimento de prejuízo sem que se cogite da ilicitude da ação”[7].
Ao longo da evolução da responsabilidade civil no direito brasileiro, surgiu a possibilidade de reparação de danos baseada na perda de uma chance. Essa nova vertente da responsabilidade civil tem origem na expressão perte d’une chance, surgida na França, na década de 60, e nos últimos anos vem ganhando a simpatia dos tribunais pátrios e de parte da doutrina.
Na lição de Sérgio Cavalieri Filho “caracteriza-se essa perda de uma chance quando, em virtude da conduta de outrem, desaparece a probabilidade de um evento que possibilitaria um beneficio futuro para a vítima, como progredir na carreira artística ou militar, arrumar um melhor emprego, deixar de recorrer de uma sentença desfavorável pela falha do advogado, e assim por diante. Deve-se, pois, entender por chance a probabilidade de se obter um lucro ou de se evitar uma perda”[8].
Na teoria da perda de uma chance há, portanto, “a certeza da probabilidade”, conforme explica o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, no voto condutor do acórdão proferido no REsp1.291.247:
Relembre-se que a teoria da perda de uma chance tem aplicação,quando o evento danoso acarreta para alguém a perda de uma chance deobter um proveito determinado ou de evitar uma perda. (...)Situa-se nesse ponto a característica essencial da perda de uma chance: acerteza da probabilidade. (...)Por isso, na perda de uma chance, há também prejuízo certo, e nãoapenas hipotético, situando-se a certeza na probabilidade de obtenção de umbenefício frustrado por força do evento danoso.Repara-se a chance perdida, e não o dano final.
Desse modo, não se trata de um dano hipotético, pois a chance perdida é concreta, passando a ser considerada como bem juridicamente protegido, pelo que o rompimento do processo deve ser objeto de reparação.
Também não se está a reparar uma mera possibilidade, mas a probabilidade certa de obtenção de lucro ou de que o prejuízo seria evitado caso o evento não tivesse ocorrido.
Como não há previsão no ordenamento jurídico, a doutrina tradicional não admite a teoria da perda de uma chance, exigindo, ainda, a comprovação do dano para a reparação civil.
Todavia, essa nova vertente da responsabilidade civil vem sendo amplamente aceita, sobretudo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, como aconteceu no julgamento do REsp1.291.247, cujos fundamentos constituem o objeto do presente estudo.
A Corte Superior também adotou a teoria da perda de uma chance no julgamento de casos como o quetratava de contrato firmado por participante de programa televisivo de perguntas e respostas(REsp 1.383.437/SP[9]);o que considerou omissiva e culposa aconduta de advogado por impetração de mandado de segurança fora do prazo e sem a devida instrução(EDcl no REsp 1.321.606/MS[10]); e o da a recusa de atendimento médico, que privilegiou trâmitesburocráticos em detrimento da saúde do paciente (REsp 1.335.622/DF[11]).
4. Conclusão
Pelo exposto, a despeito da inexistência de previsão no ordenamento jurídico positivo acerca da possibilidade de indenização ao nascituro e da teoria da perda de uma chance, esses temas vêm ganhando espaço na doutrina e na jurisprudência, e têm sido utilizados como fundamentos para o reconhecimento da obrigatoriedade de reparação civil, em situações que até poucos anos atrás eram inéditas, mas que atualmente se tornaram comuns, como é o caso da coleta de células-tronco embrionárias do cordão umbilical do recém-nascido.
[1] STJ REsp n. 1.291.247/RJ, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 19.8.2014, DJe 1.10.14: RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PERDA DE UMA CHANCE. DESCUMPRIMENTO DE CONTRATO DE COLETA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS DO CORDÃO UMBILICAL DO RECÉM-NASCIDO. NÃO COMPARECIMENTO AO HOSPITAL. LEGITIMIDADE DA CRIANÇA PREJUDICADA. DANO EXTRAPATRIMONIAL CARACTERIZADO.1. Demanda indenizatória movida contra empresa especializada em coleta e armazenagem de células tronco embrionárias, em face da falha na prestação de serviço caracterizada pela ausência de prepostos no momento do parto.2. Legitimidade do recém-nascido, pois "as crianças, mesmo da mais tenra idade, fazem jus à proteção irrestrita dos direitos da personalidade, entre os quais se inclui o direito à integralidade mental, assegurada a indenização pelo dano moral decorrente de sua violação" (REsp. 1.037.759/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/02/2010, DJe 05/03/2010).3. A teoria da perda de uma chance aplica-se quando o evento danoso acarreta para alguém a frustração da chance de obter um proveito determinado ou de evitar uma perda.4. Não se exige a comprovação da existência do dano final, bastando prova da certeza da chance perdida, pois esta é o objeto de reparação.5. Caracterização de dano extrapatrimonial para criança que tem frustrada a chance de ter suas células embrionárias colhidas e armazenadas para, se for preciso, no futuro, fazer uso em tratamento de saúde.6. Arbitramento de indenização pelo dano extrapatrimonial sofrido pela criança prejudicada.7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema.
[2] BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, 7ªed., p. 11
[3] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direto Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2009, 23ª ed., p. 183
[4]DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 9ª ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10.1.2002. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 27.
[5] STJ REsp 1.037.759/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi,, Terceira Turma, julgado em 23.2.2010, DJe5.3.2010
[6]GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Responsabilidade Civil. V. 3. 7° ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 3.
[7] SILVA, Regina Beatriz Tavares da. in FIUZA, Ricardo (Coord.). Novo Código Civil Comentado. 3ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 832.
[8]CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 75.
[9] STJ REsp 1.383.437/SP, Rel. Ministro Sidnei Benetti, Terceira Turma, julgado em 27.8.2013, DJe 6.9.2013
[10] STJ EDcl no REsp 1.321.606/MS, Rel. Ministro Antônio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 23.4.2013, DJe 8.5.2013
[11] STJ REsp 1.335.622/DF, Rel. Ministro Ricardo Villas BôasCueva, Terceira Turma, julgado em 18.12.2012, DJe 27.2.2013
Procuradora Federal. Pós-graduada em Direito Processual Civil - Universidade do Sul de Santa Catarina -UNISUL - conclusão em junho/2008. Graduada em Direito - Universidade Federal de Uberlândia - UFU - conclusão em janeiro/2000.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NEVES, Letícia Mota de Freitas. O direito do recém-nascido a indenização por danos morais pela falha na coleta de células-tronco - A "teoria da perda de uma chance" Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 nov 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41679/o-direito-do-recem-nascido-a-indenizacao-por-danos-morais-pela-falha-na-coleta-de-celulas-tronco-a-quot-teoria-da-perda-de-uma-chance-quot. Acesso em: 22 nov 2024.
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