A partir de umaanálise crítica e comparativa dos textos de Zanella Di Pietro e Maria João Estorninho, o presente artigo pretende identificar pontos comuns e divergentes no que tange a natureza jurídica dos contratos administrativos. Além disso, serão identificadas,na legislação atual sobre contratos administrativos, possíveis sinais de adoção das teorias invocadas pelas autoras.
Segundo Zanella Di Pietro, a grande controvérsia sobre a natureza dos contratos administrativos gira em torno da existência das cláusulas exorbitantes que, segundo alguns autores, assegurariam prerrogativas à administração Pública em prejuízo do Princípio da Isonomia. Por essa razão, tais doutrinadores conferem aos contratos administrativos natureza de contratos de direito privado ou lhe atribuem natureza de ato unilateral, sob o fundamento de que a Administração só age de acordo com o que a lei manda e os particulares se submetem às cláusulas regulamentares ou do serviço.
Cláusulas exorbitantes são aquelas que não seriam comuns ou que seriam ilícitas em contrato celebrado entre particulares. Por conferirem prerrogativas a uma das partes (a Administração) em relação à outra; elas colocam a Administração em posição de supremacia sobre o contratado. Assim, assinala a respeitável administrativista:
Por isso, a teoria que negava a existência dos contratos administrativos e que volta a ganhar força, ainda sob o argumento de que deve haver igualdade das partes no contrato, apega-se ao modelo original de contrato, há muito tempo superado, inclusive no direito privado.[1]
Com efeito, segundo a autora, ainda que sejam utilizados institutos de Direito Privado (princípio da igualdade das partes no contrato, princípio da autonomia da vontade, e da força obrigatória dos contratos), a Administração Pública nunca se iguala ao particular. Di Pietroadmite, com cautela, tão somente a flexibilização das cláusulas exorbitantes em contratos de maior vulto, mas não a sua extinção. Isto porque são as cláusulas exorbitantes expressamente definidas por lei, que garantem poderes irrenunciáveis à Administração Pública, e, quando colocadas em prática, asseguram a preservação do interesse público, tão caro ao Estado Democrático de Direito.
Neste sentido, pontua Zanella Di Pietro:
Pensando especificamente no tema do contrato, verifica-se que realmente nunca a posição da Administração poderá ser inteiramente igual à do particular, mesmo nas relações de direito privado: a autonomia da vontade, de que é dotado o particular, substitui-se, para a Administração, pelo princípio da legalidade; a liberdade de forma, que prevalece nas relações jurídicas entre os particulares, dificilmente existe nas relações jurídicas em que a Administração é parte; além disso, ela está vinculada a determinados fins, que a obrigam a adotar os meios que o legislador escolhe como os únicos viáveis para a sua consecução; a tudo isso acrescente-se o fato de que ela conserva, mesmo quando se utiliza do regime de direito privado, certos privilégios que lhe são concedidos por lei, em razão da pessoa, como o juízo privativo, o processo especial de execução, a impenhorabilidade de seus bens, os prazos mais dilatados em juízo.[2]
Por sua vez, Maria João Estorninho defende que as prerrogativas da Administração não podem ser consideradas incompatíveis com o Direito Privado. Isto porque em nada se diferem dos poderes conferidos às partes em um contrato particular.
A título de exemplo, tem-se o poder de fiscalização dos contratos dado à Administração que muito se aproxima com o poder de fiscalização de um dono de uma obra em relação ao contrato privado de empreitada. No que tange ao poder sancionador, para além das multas, as medidas de caráter coercitivo, que visam a execução específica da prestação pelo particular, assim como nos contratos privados, também exigem previsão expressa no contrato.
Neste mesmo sentido, relata a autora que o poder de alteração unilateral do contrato, assim como ocorre nos contratos privados, limita-se às prestações do contratado e sujeita-se a compensações, posto que necessariamente deve conjugar o interesse público com o interesse privado. Além disso, nem todo exercício do poder de alteração unilateral do contrato, pode ser discricionário, de modo que, a exemplo dos contratos privados, deve estar devidamente definido no contrato.
Em outros termos, o que defende a autora é que a doutrina civilista também evoluiu para assegurar a flexibilidade dos contratos privados sempre que alterações circunstanciais assim a exigirem, afim de salvaguardar o equilíbrio entre as partes. A única “exorbitância” apontada como peculiar aos contratos administrativos cinge-se a possibilidade da Administração poder executar os poderes contratuais independente de previsão legal ou contratual, o que não é dado ao particular.
Assim, assevera que a crescente intervenção do Estado nos contratos, a partir do Sec. XX, e as situações próprias do direito moderno (contratos de adesão, clausulas gerais de responsabilidade, desequilibro entre as partes contratantes) permitem que os poderes da Administração sejam plenamente admitidos nos contratos de direito privado.
Neste sentido, Maria João Estorninho conclui:
Na minha opinião e como já provei anteriormente, julgo que é perfeitamente compatível com o Direito Privado o exercício unilateral destes poderes por um dos contratantes, imponto a sua vontade ao seu parceiro contratual. Há normas de Direito civil que especificamente contemplam esta possibilidade, e nos demais casos, isso é perfeitamente admissível ao abrigo da autonomia privada das partes. O que me parece específico é apenas o facto de a Administração ser dotada desta possibilidade independentemente de previsão legal.”[3]
Efetuadas tais breves considerações acerca das linhas doutrinárias defendidas por Di Pietro e Maria João Estorninho, se faz necessário analisar a abordagem legislativa sobre o tema, com sua consequente evolução histórica.
Admitidas como prerrogativas administrativas ou cláusulas contratuais exorbitantes, fato é que a Lei n. 8.666/93, que regulamentou o Art. 37, da XXI Constituição Federal e instituiu normas para licitação e contratos da Administração Pública, conferiu amplos poderes à Administração.
Em sucinta relação, tem-se a possibilidade de a Administração Pública exigir do contratado uma garantia que possa utilizar para ressarcir-se de eventual prejuízo causado pelo contratado, prevista no art. 56 da Lei n. 8.666/93; a possibilidade de Alteração Unilateral por parte da Administração assegurada no art. 58, I e o art. 65 da Lei n. 8.666/93,que autoriza que o contrato administrativo celebrado seja alterado unilateralmente pela Administração, para melhor adequação às finalidades de interesse público, nas hipóteses de alteração qualitativa e quantitativa; e a prerrogativa administrativa de rescindir unilateralmente o contrato firmado, se assim exigir o interesse público que deve nortear toda a sua atuação, conforme previsto no art. 58, II c/c art. 79, I e 78, I a XII e XVII da Lei n. 8.666/93.
O art. 58, III, da Lei n. 8.666/93 confere, ainda, à Administração Pública a prerrogativa de fiscalizar a execução do contrato. Outra cláusula exorbitante é a possibilidade de aplicação de penalidades por parte da Administração Pública assegurada no art. 58, IV, da Lei n. 8.666/93, ocorrendo a inexecução total ou parcial do contrato.
Por fim, a derradeira cláusula exorbitante é a denominada “Restrições a uso da exceção do contrato não cumprido”. Em se tratando de contrato administrativo, o contratado não está autorizado a suspender a execução do contrato em razão do inadimplemento da Administração Pública.
Ainda que se verifique a mora da Administração em cumprir seus encargos, ainda assim, o contratado deverá dar prosseguimento à execução do contrato em razão dos Princípios da Continuidade do Serviço Público e da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular.
Já na lei reguladora das concessões de serviços públicos n.º 8.987/95,é possível identificar semelhanças e divergências em relação ao regramento previsto na Lei n.º 8.666/93, especialmente no que tange ao enrijecimento das cláusulas impostas aso contratado. Quanto ao poder de alteração unilateral segue-se o mesmo regramento havendo apenas divergência de nomenclaturas (encampação e caducidade).No que tange a aplicação de penalidades ao contratado o regramento também é idêntico à Lei n.º 8.666/93.
Em relação ao poder de fiscalizar a execução do contrato, há uma fiscalização ainda mais intensa. A Administração pode, em determinadas situações, determinar até mesmo a intervenção na empresa concessionária, por meio de um decreto. Depois de decretada a intervenção, a Administração tem 30 (trinta) dias para dar início a um processo administrativo que apure as irregularidades, sendo de 180 (cento e oitenta) dias o prazo para que este processo acabe.
A administração também possuia prerrogativa da ocupação temporária de bens para evitar a paralisação do serviço público, em respeito ao Princípio da Continuidade. Se houver dano nessa ocupação temporária, o Estado terá que indenizar.
Nos contratos de concessão, há ainda a possibilidade de reversão dos bens, ao final do contrato. A reversão é uma transferência de propriedade. Mediante o pagamento de indenização, ao final do contrato de concessão, a administração pode reverter para si todos os bens da concessionária atrelados à prestação do serviço.
Apesar do caráter severo em relação ao particular contratado contido na Lei n.º 8.666/93 e na Lei n.º 8.987/95, a crescente constitucionalização do Direito Administrativo e a tendência mundial pela busca do consenso, obrigaram a legislação administrativaa acompanharo movimento doutrináriode flexibilizaçãodas cláusulas exorbitantes no contrato administrativo.
Os primeiros passos de tal flexibilização foram inseridos na Lei n. 11.079/2004, denominada de Lei das Parcerias Público-Privadas, que, ente outras situações, traz as seguintes previsões:
a) penalidades aplicáveis ao particular mas também à Administração (artigo 5º);
b) repartição dos riscos entre as partes, inclusive os referentes ao caso fortuito, a força maior, ao fato do príncipe e as áleas econômicas extraordinárias;
c) estabelecimento de garantias prestadas pela Administração (artigo 8º).
Ora, se comparado aos contratos administrativos previstos na Lei n. 8.666/93, os quais fazem largo uso das cláusulas exorbitantes e conferem privilégios no intuito de colocar o Poder Público em posição de supremacia ao contratado, verifica-se nitidamente que o contrato de parceria público-privada traz consigo grandes avanços, colocando o parceiro privado em condição de igualdade, tornando-se mais claros e seguros os critérios para remuneração e estabelecimento de garantias.
Portanto, em vista da legislação administrativa atual aplicável às parcerias públicas privadas, é possível defender a existência de uma forte correlação entre os direitos e as obrigações do parceiro público e do parceiro privado, diferentemente do que acontece nos contratos administrativos tradicionais em que a relação jurídica instaurada é de caráter verticalizado, em função da disciplina normativa que os rege.
Assim, a partir da análise da evolução histórica do direito pátrio, pode-se concluir que a tendência é que a teoria da autora Maria João Estorninho pela compatibilidade dos contratos administrativos com o direito privado prevaleça, já que a horizontalização dos direitos e deveres nos contratos administrativos é a nova via encontrada pelo Direito Administrativo para harmonizar a garantia da continuidade dos serviços públicos e a rentabilidade almejada pelo particular contratado.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm> Acesso em 06/11/2014.
BRASIL. Lei n. 8.987 de 13 de fevereiro de 1995, Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm>. Acesso em 06/11/2014.
BRASIL. Lei n11.079 de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l11079.htm> Acesso em 06/11/2014.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ainda existem os chamados contratos administrativos? IN: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Coordenadores). Supremacia do Interesse Público e outros temas relevantes do direito administrativo. Belo Horizonte: Editora Atlas, 2010. P. 398 – 411.
ESTORNINHO, Maria João. Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. P. 115 a 148.
[1]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ainda existem os chamados contratos administrativos? IN: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Coordenadores). Supremacia do Interesse Público e outros temas relevantes do direito administrativo. Belo Horizonte: Editora Atlas, 2010. p.408.
[2]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.Ob cit. p. 409.
[3]ESTORNINHO, Maria João. Requiem pelo contrato administrativo. Coimbra: Livraria Almedina, 2003. p.147.
Procuradora Federal, lotada na Procuradoria Federal de Minas Gerais. <br>Especialista em Direito Processual pela UNIDERP. Pós-graduanda em Advocacia Pública pelo IDDE. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROSA, Nayana Machado Freitas. Natureza jurídica dos contratos administrativos segundo a doutrina de Zanella Di Pietro e Maria João Estorninho e a tendência normativa atual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41685/natureza-juridica-dos-contratos-administrativos-segundo-a-doutrina-de-zanella-di-pietro-e-maria-joao-estorninho-e-a-tendencia-normativa-atual. Acesso em: 22 nov 2024.
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