O advogado público ao elaborar um parecer jurídico responde na esfera administrativa, civil e penal, se na execução dessa atribuição, por dolo ou culpa, violar dever funcional, causar danos à Administração Pública ou a terceiros ou, ainda, cometer crime ou contravenção.
Todavia, a adoção de uma tese jurídica controvertida pelo parecerista, por si só, não tem o condão de acarretar consequências sob o prisma da responsabilidade, uma vez que tal fato não constitui infração à ordem jurídica.
Muito embora esses profissionais tenham o dever de conduzir o administrador à prática de um ato conforme à lei e à Constituição, a interpretação do que é ou não legal e constitucional nem sempre é uniforme. Há o dever de dizer o que está ou não em consonância com as normas jurídicas, isso é indiscutível. Porém, a leitura que se faz dessas normas pode variar muito. Há situações em que a letra da lei é tão clara, que só se admite uma única interpretação. No entanto, em algumas hipóteses a lei é ambígua no sentido de proporcionar mais de um entendimento. Isso é próprio do homem e do Direito.
O direito não é uma ciência natural e as normas jurídicas podem receber interpretações das mais diversas, sem que se possa dizer de pronto que uma está certa e a outra errada. Quem dá a palavra final, é o Poder Judiciário, porém, até isso acontecer, mais de uma posição pode perfeitamente ser sustentada, sendo temerário dizer qual delas é a mais correta.
O constitucionalista Carlos Ayres Brito traz ilustrativa explicação sobre essa peculiaridade do Direito:
[...] nos domínios da Ciência Jurídica, os mesmos dispositivos-objeto se prestam a interpretações diferentes e até mesmo contrárias. Tal como se dá com o Evangelho de Cristo, a suscitar nos evangelistas posturas interpretativas que vão da descoincidência lateral à oposição frontal.[1]
E prossegue o renomado jurista:
Como de remansoso conhecimento, a lei em sentido material quer valer para todas as ações a que se refere, e por isso, é que se dota do atributo da generalidade. Quer valer para todos os sujeitos a quem se destina, e por esse motivo se confere a característica da impessoalidade. Quer valer para sempre (enquanto não for revogada, lógico) e daí seu traço ontológico da abstratividade. Ora, querendo-se assim genérica, impessoal e abstrata – é dizer, querendo-se válida para tudo, para todos e para sempre -, a lei não tem como fugir do discurso esquemático ou clicherizador da realidade; que é um discurso eminentemente simplista, reducionista. Do que decorre ter que pagar um preço por essa linguagem-rótulo, e o preço que a lei paga por incidir nesse tipo de comunicação verbal contracta é a abertura dos seus flancos para o dissenso interpretativo.[2]
Hans Kelsen deixou a seguinte lição: “o sentido verbal da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis.”[3] Este notável filósofo ensinou que a ciência jurídica não teria condições de definir uma única interpretação possível:
A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação “correta”. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal de segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximadamente. (2006, p. 396).
Esclarece o memorável jurista:
[...] a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. (2006, p. 391).[4]
Marcelo Neves com extrema propriedade apresenta uma brilhante lição sobre a interpretação jurídica no Estado Democrático de Direito:
Inegavelmente, a linguagem jurídica, enquanto um tipo de linguagem ordinária ou natural especializada e não uma linguagem artificial, é ambígua e vaga, o que dá ensejo a interpretações divergentes. Tal assertiva, que se tornou um lugar-comum, sendo adotada pelas mais diversas tendências da teoria do direito, não deve ser assumida sem uma avaliação específica das particularidades da sociedade moderna.[5]
Explica que na sociedade atual:
[...] a multiplicidade de valores e interesses possibilita uma variedade estrutural de expectativas sobre os textos jurídicos. Em relação à Constituição, que é mais abrangente na dimensão material, pessoal e temporal, essa situação acentua-se. Considerando que no Estado de Direito predomina o princípio da interpretação conforme a Constituição, as questões jurídicas, ao ganharem direta ou indiretamente um significado constitucional, carregam um forte potencial de conflito interpretativo. Mas é nas questões diretamente constitucionais que se observam mais claramente os chamados ‘casos difíceis’. Nelas, a ambigüidade intensifica-se e a vagueza amplia-se de tal maneira que se pode observar uma maior sensibilidade da esfera pública em relação a elas. (2006, p. 205-206).
Porém, o ilustre jusfilósofo ressalta que a linguagem jurídica não é arbitrária. Embora haja um espaço para interpretações possíveis, há um limite para essas diferentes leituras. É o que destacará a seguir:
[...] embora seja inegável que da complexidade da sociedade moderna resulta uma enorme plurivocidade e vagueza do texto constitucional, condicionada pragmaticamente pelos valores, interesses e expectativas presentes na esfera pública pluralista, não se pode afirmar que a linguagem jurídica, especialmente a constitucional, seja arbitrária. (2006, p. 206).
Esclarece o mestre:
Na interpretação jurídica, não se trata de extrair arbitrariamente de uma infinidade de sentidos dos textos normativos a decisão concretizadora, nos termos de um contextualismo decisionista, mas também é insustentável a concepção ilusória de que só há uma solução correta para cada caso, conforme critérios de um juiz hipotético racionalmente justo. A possibilidade de mais de uma decisão justificável à luz de princípios e regras constitucionais parece-me evidente. O problema está exatamente em delimitar as fronteiras entre as interpretações justificáveis e as que não são “atribuíveis” aos textos constitucionais e legais no Estado Democrático de Direito. (2006, p. 207).
E como dirimir esse problema no campo da elaboração de pareceres jurídicos? Qual é a fronteira entre uma interpretação razoável, possível e outra que não se justificaria?
Marcelo Neves ilumina o debate, e ao fazer traz à reflexão uma assertiva de Wittgenstein:
‘Assim, pois, você diz que o acordo entre os homens decide o que é correto e o que é falso? – Correto e falso é o que os homens dizem, e na linguagem os homens estão de acordo. Não é um acordo sobre opiniões, mas sobre o modo de vida.’ Transportando essa proposição para o nosso contexto normativo, pode-se afirmar que uma forma de vida não se constitui de uma unidade de valores. Ela diz respeito a regras do jogo lingüisticamente estruturadas. Por conseguinte, o ‘acordo’ passível de ser exigido refere-se ao sentido da linguagem em que se estrutura as regras do jogo. A respeito, poder-se-ia acrescentar a seguinte proposição: ‘O emprego incompreendido de uma palavra é interpretado como expressão de um processo estranho.’ E esclarecer: ‘a frase parece estranha apenas quando se representa, em relação a ela, um jogo de linguagem diferente daquele no qual nós a empregamos efetivamente.’ A noção de “estranheza” do sentido da linguagem, o qual, dessa maneira, não corresponde às regras do jogo, é suscetível de ser relida no que se refere a determinar as fronteiras entre as interpretações textuais juridicamente corretas e incorretas. (2006, p. 209-210).
Após essa explicação prévia conclui:
Definida a interpretação ‘como a substituição de uma expressão da regra por outra’, pode-se afirmar que, do ponto de vista da heterovalidação na esfera pública pluralista, uma interpretação é incorreta quando a sua ‘estranheza’ impede que se possa compreendê-la como expressão de uma regra do jogo extraível do respectivo texto constitucional ou legal. Com mais precisão e rigor, cabe falar de produção de sentido ‘estranho ao texto’. A ‘estranheza’ importa que ela não tem capacidade de generalizar-se consistentemente como critério para o tratamento de outros casos em que se recorre aos mesmos dispositivos. (2006, p. 210).
Por fim, esclarece:
Deve-se, porém, ter em conta algumas advertências quando se analisa pragmaticamente as fronteiras entre interpretações incorretas e corretas com base na noção de expressões e proposições ‘estranhas’. Em primeiro lugar, não se trata aqui de negar a flexibilidade, incerteza e improbabilidade da interpretação jurídica em uma sociedade super-complexa, caracterizada por uma esfera pública heterogênea. A linguagem constitucional é ambígua e vaga, dando ensejo a interpretações inovadoras. Quando falo de ‘estranheza’, refiro-me, em uma leitura não ortodoxa de Wittgenstein, às situações em que determinado enunciado interpretante não pode ser compreendido ou admitido como expressão de uma regra do jogo construível a partir do texto constitucional. Enunciado interpretativo ‘estranho’ significa aqui interpretação absurda, inteiramente implausível, isto é, totalmente insuscetível de ser atribuída ao respectivo texto na esfera pública. Inegavelmente, porém, a plurivocidade da linguagem constitucional possibilita que várias interpretações inovadoras e improváveis sejam admissíveis como corretas. (2006, p. 211, grifo nosso).
Diante dessas considerações, a princípio, parece desarrazoado responsabilizar um advogado público por escolher uma interpretação jurídica possível, porém contrária à adotada por um Tribunal, pois é da natureza da norma jurídica estar aberta a mais de uma forma de compreensão. E essa característica não pode prejudicar quem tem o dever de manejar esse instrumento. É um tema que merece bastante reflexão.
[1]GRAU, Eros Roberto; CUNHA, Sérgio Sérvulo (orgs). Estudos de Direito Constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 89.
[2] Ibid., p. 90.
[3]KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 389.
[4]Por óbvio Hans Kelsen não quer conduzir a nenhuma arbitrariedade. Diz o mestre: “não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de Direito Positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como “correta” – desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica.” (p. 2006, 391 – grifo nosso).
[5] NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 2004-2005.
Procurador Federal - AGU, ex-Procurador do Município de Praia Grande e especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RUFINO, Fernando Bianchi. A responsabilidade do advogado público frente à adoção de posição jurídica controvertida Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41696/a-responsabilidade-do-advogado-publico-frente-a-adocao-de-posicao-juridica-controvertida. Acesso em: 22 nov 2024.
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