INTRODUÇÃO
Hodiernamente, diante da evolução no campo tecnológico, empresarial e social, o Estado Brasileiro se viu obrigado a estabelecer formas de contratação mais céleres e efetivas, uma vez que as demandas sociais exigiam uma gestão administrativa mais eficiente, sem olvidar dos princípios basilares que orientam a Administração Pública.
Neste contexto, é editada no Brasil, baseado em modelos de contratação já adotados nos Estados Unidos e na União Europeia, a Medida Provisória nº 527 de 2011, posteriormente convertida na Lei n.12.462/11, que trata do Regime Diferenciado de Contratações Públicas para a Copa das Confederações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016.
Partindo de tais premissas, o presente artigo trata especificamente dessa nova forma de contratação estabelecida pela recente Lei n.12. 462/2011, analisando pontualmente algumasde suas inovações.
CONTEXTO DO SURGIMENTO DA LEI n.12. 462/2011 E SEU ÂMBITO DE APLICAÇÃO
O art. 37, inc. XXI da Constituição de 1988aponta que as contratações com o Poder Público, salvo situações especificas, se darão mediante licitação, o que foi primeiramente regulado pela Lei Federal nº 8.666/93, que instituiu o Estatuto das Licitações e Contratos Administrativos, seguido por legislações posteriores.
Neste contexto, é de bom alvitre observarmos a definição de licitação dada por Celso Antônio Bandeira de Mello:
Licitação – em suma síntese – é um certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa entre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas. Estriba-se na idéia de competição, a ser travada isonomicamente entre os que preencham os atributos e aptidões necessários ao bom cumprimento das obrigações que se propõem assumir.[1]
Conforme ventilado acima, diante doimperativo de se compatibilizar a necessidade de licitação com a celeridade e eficiência que determinadas situações demandavam, foi criado o Regime Diferenciado de Contratação - RDC, pela Lei n. 12.462/2011, primeiramente instituído para aplicação nos projetos ligados aos eventos organizados pela Federação Internacional de Futebol Associação - FIFA no país (2013 e 2014) e aos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro.
Contudo, seu âmbito de aplicação vem sofrendo grande alargamento nos últimos anos, sendo também já aplicado: as ações integrantes do PAC (Lei nº 12.688/2012); para obras e serviços de engenharia no âmbito do SUS (Lei nº 12.745/2012); para obras e serviços de engenharia no âmbito do sistema público de ensino (Lei nº 12.722/2012); para obras e serviços de engenharia para construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo (Lei nº 12.980/2014).
Trata-se de conjunto de normas para contratações públicas que diverge da Lei Federal n. 8.666/93 em aspectos relevantes, com intuito de estabelecer um ambiente de licitações mais célere e melhorar a execução dos contratos decorrentes dessas competições.
É possível apontar várias inovações do RDC quanto ao modelo clássico de licitações como a inversão das fases de habilitação e julgamento das propostas e a possibilidade de contratação de mais de uma empresa para execução de um mesmo objeto, a fim de que se maximize a eficiência da prestação ao Estado, com a criação de um ambiente competitivo intracontratual.
Porém, o presente artigo se limitará a tratar detalhadamente apenas de algumas mudanças mais impactantes ou daquelas mais polêmicas em que, possivelmente, doutrina e jurisprudência não guardarão sintonia.
AVANÇOS E RETROCESSOS TRAZIDOS PELO RDC
A referida lei em exame colocou a sustentabilidade em destaque à medida em que o conceito deixou de ser utópico para ser dever legal inserido em diversos dispositivos.
É possível verificar de forma nunca dantes vista, uma preocupação literal com a melhor utilização de recursos naturais, menor consumo de energia e vigilância nos impactos urbanísticos associados à obra.
A inclusão do ser humano com limitações físicas, sujeito de direitos, é outra louvável novidade.A Lei n. 12.462/2011 consagra o Estatuto da Pessoa Portadora de Deficiência – Lei nº10.098/00 no que tange a inclusão de mecanismos de acesso para o uso de pessoas deficientes ou com mobilidade reduzida às obras a serem construídas.
O Regime Diferenciado de Contratações trouxe outro significativo avanço ao certame licitatório ao consignar a informatização dos procedimentos e fases, permitindo um acompanhamento em tempo real das contratações e a todos os detalhes do processo por parte dos órgãos.Neste compasso, é assegurado o acesso total e irrestrito dos órgãos de controle (TCU, CGU, etc.) às informações relativas à contratação, possibilitando que o devido controle externo garanta transparência e lisura à contratação.
Os tipos de licitação utilizados pelo RDC são praticamente idênticos aos adotados pela Lei nº 8.666/1993, devendo ser ressalvada apenas a inclusão de um novo: o maior retorno econômico. Cria-se um novo critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, que leva em consideração, sobretudo, o retorno econômico que o contrato poderá gerar para a Administração Pública. É o que estipula o art. 23 da Lei nº 12.462/2011:
Art. 23. No julgamento pelo maior retorno econômico, utilizado exclusivamente para a celebração de contratos de eficiência, as propostas serão consideradas de forma a selecionar a que proporcionará a maior economia para a administração pública decorrente da execução do contrato.
Trata-se de elogiável inovação do Regime Diferenciado de Contratação, já que prestigia o princípio da economicidade e o princípio da eficiência, tão apreciados no Direito Administrativo.
O RDC possibilita, ainda, a contratação da obra de engenharia apenas com a apresentação de um anteprojeto. Apesar do decreto regulamentador especificar os elementos indispensáveis ao anteprojeto, alguns doutrinadores entenderam que a exigência de documento único poderia deixar lacunas em prejuízo à execução do objeto contratado.
Porém, considerando os objetivos visados pelo Regime Diferenciado de Contratações Públicas previsto na Lei 12. 462/2011, quais sejam, ampliação da eficiência, busca da melhor relação custo benefício, tratamento isonômico entre os licitantes (eficiência economicidade e isonomia), a tendência expressada pela referida lei pela desnecessidade de projeto básico para a realização de licitações de obras e serviços de engenharia é de plena valia e tende a ser vantajosa para a Administração.
Isto porque em um único documento, o anteprojeto, serão definidas todas as especificações técnicas que embasarão a elaboração dos projetos básico e executivo, de forma a possibilitar a participação em igualdade de condições a todos eventuais interessados no procedimento licitatório. Ademais, o anteprojeto irá descrever parâmetros técnicos e financeiros que permitam à Administração verificar quem fez a melhor proposta para executar e entregar o objeto almejado.
Assim, desde que o anteprojeto contenha todas as especificações do objeto contratual de forma clara e objetiva, a ausência de projeto básico para realização de licitações para obras e serviços de engenharia não trará prejuízos ao julgamento objetivo, ao planejamento das despesas públicas e a posterior execução do contato.
Outra questionável novidade trazida pela Lei nº 12.462/2011 é o sigilo do orçamento prévio realizado pela Administração Pública. É o que dispõe o Art. 6º da Lei 12. 462/2011:
Art. 6º O orçamento previamente estimado para a contratação será fornecido somente após o encerramento da licitação, sem prejuízo da divulgação do detalhamento dos quantitativos e das demais informações necessárias para a elaboração das propostas.
§1º Nas hipóteses em que for adotado o critério de julgamento por maior desconto, a informação de que trata o caput deste artigo constará do instrumento convocatório.
§2º No caso de julgamento por melhor técnica, o valor do prêmio ou da remuneração será incluído no instrumento convocatório.
§3º Se não constar do instrumento convocatório, a informação referida no caput deste artigo possuirá caráter sigiloso e será disponibilizada estritamente a órgãos de controle interno.
Oprofessor MÁRCIO CAMMAROSSANO(2011) apresenta os argumentos favoráveis dos que defendem o sigilo e os argumentos contrários dos que o criticam.Os argumentos favoráveis giram em torno da busca pela proposta mais vantajosa. Indicar o preço estimado pela Administração seria já adiantar um valor médio em torno do qual girarão as propostas das empresas, de modo que o orçamento mal elaborado geraria uma contratação ruim, induzindo as empresas a erro.
Em sintonia com a ideia de sigilo do orçamento prévio, Tribunal de Contas da União em diversas oportunidades tem manifestado o seu entendimento pela restrição da publicidade na divulgação do orçamento da licitação na modalidade pregão, até que se finalizasse a fase de lances:
Em sede de licitação, na modalidade pregão, não se configura violação ao princípio da publicidade o resguardo do sigilo do orçamento estimado elaborado pela Administração até a fase de lances, sendo público o seu conteúdo após esse momento.[2]
Em sentido contrário, os princípios da ampla defesa e do contraditório para os casos de desclassificação das propostas, bem como o da publicidade e ampla sindicabilidade da licitação indicam a necessidade de divulgação do orçamento.
Se por um lado há quem defenda que a RDC não estabeleceu obrigatoriedade no sigilo e que esta técnica, já adotada no pregão, tem por objetivo evitar que o orçamento seja o piso das propostas, por outro lado, há quem afirme que não há qualquer comprovação de que a novidade trazida pela Lei 12.462/2011 quanto ao sigilo do orçamento prévio tenha resultado prático efetivo na prevenção de conluio entre os participantes.
Em que pese opiniões em contrário, não há como afirmar que o sigilo orçamentário, por si só, afasta o risco de conluio entre os participantes do certamente, uma vez que os organizadores da licitação e os órgãos de controle terão acesso ao orçamento e poderão divulgá-lo para participantes específicos, em troca do tão malquisto enriquecimento ilícito.
Além disso, o orçamento leva em conta os preços de mercado que são de conhecimento dos participantes do procedimento licitatório. Logo, a sua finalidade não é alcançada. Certamente, se o sigilo fosse a solução para evitar conluios, seria estendido para todas as modalidades licitatórias, o que não ocorreu até o presente momento.
Ademais, se não é dada ampla publicidade ao orçamento antes do julgamento final, propostas podem ser sumariamente desclassificadas, sem a possibilidade de defesa, por apresentarem preços manifestamente inexequíveis, ou que estejam acima do orçamento estipulado, ofendendo, assim, os princípios do contraditório e da ampla defesa, tão caros à atuação administrativa.
Diante das razões acima expostas, o sigilo do orçamento previsto no Art. 6º da Lei 12.462/2011 –RDC, que já é objeto de questionamento na ADI 4645 (dentre outros dispositivos inseridos no diploma), em tramite no Supremo Tribunal Federal, deve ser declarado inconstitucional, eis que ofende além dos princípios supra referidos, o princípio da Razoabilidade e o Direito ao Acesso à Informação, previsto no inc. XXXIII do art. 5º, no inc. II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição da República, além de não atender ao fim a que se destina.
Superada a polêmica questão envolvendo o sigilo do orçamento prévio, cabe assinalar que o novo regime de contratação diferenciada, inaugura, ainda, o Princípio da Solidariedade, nos termos do Art. 7, IV, da Lei n. 12.462/2011:
Art. 7o No caso de licitação para aquisição de bens, a administração pública poderá:
(...)
IV - solicitar, motivadamente, carta de solidariedade emitida pelo fabricante, que assegure a execução do contrato, no caso de licitante revendedor ou distribuidor.
Sobre o dispositivo em questão, assevera Marcio Camarosano:
Com efeito, como exigir do fabricante do bem, que não participa da licitação, que assegure a execução de um contrato, como se contratado tivesse sido, na hipótese de não cumprimento das obrigações pelo contratado? Afinal, se o fabricante não participou do certame, não terá demonstrado habilitação e nem oferecido proposta, como estão obrigados os que almejam ser contatados pela Administração Pública.
Admitir que quem não tenha participado da licitação possa vir a executar o contrato com outrem firmado, parece implicar ofensa a direitos dos demais participantes licitantes remanescentes, de, observada a ordem de classificação de suas respectivas propostas, serem convocados para fazê-lo.[3]
Em outros termos, a possível exigência de carta de solidariedadetende a quebrar a ordem de preferência entre os licitantes participantes do certamente, a medida em que impõe a execução do contrato a terceiro totalmente estranho ao processo licitatório. Destarte, resta claro de que tal previsão revela-se extremamente questionável.
CONCLUSÃO
Em vista de todo o exposto, não há dúvidas de que vários dispositivos do novo regime possuem falhas e lacunas que devem ser sanadas. Porém, as polêmicas aqui expostas, não devemrepresentar um demérito a louvável finalidade do diploma, qual seja desburocratizar as licitações, garantindo-lhes celeridade e eficiência, o que foi alcançado em outros tantos dispositivos.
Ainda há muito o que construir. O fomento ao debate foi lançado. Cabe a nós, aplicadores do direito, questionarmos o novo regime ainda em aberto, de modo que a discussão gere bons frutos para o aprimoramento do Direito Administrativo.
REFERÊNCIAS:
BOLZAN, Fabrício. Leituras Complementares de Direito Administrativo: Licitações e Contratos. Salvador: Jus Podvm, 2012.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 03 nov. 2014.
CAMAROSANO, Márcio. Arts. 5º a 7ª da Lei 12.462, de 5 de agosto de 2011. In CAMAROSANO, Márcio. DAL POZZO, Augusto Neves. VALIM, Rafael (Organizadores). Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC. Aspectos fundamentais. Belo Horizonte: Editora Fórum.
CARVALO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2012.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004.
O REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS: comentários à Lei nº 12.462, de 2011 - Textos em discussão 100, Núcleo de pesquisas e estudos do Senado – Agosto 2011, p.12. Disponível em: www.senado.gov.br - acessado em 01/11/2014.
TCU, Acórdão nº 2080/2012, Plenário, Rel. Min. José Jorge, DOU 14.08.2012.
[1]MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004. p.483.
[2] TCU, Acórdão nº 2080/2012, Plenário, Rel. Min. José Jorge, DOU 14.08.2012
[3]CAMAROSANO, Márcio. Arts. 5º a 7ª da Lei 12.462, de 5 de agosto de 2011. In CAMAROSANO, Márcio. DAL POZZO, Augusto Neves. VALIM, Rafael (Organizadores). Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC. Aspectos fundamentais. Belo Horizonte: Editora Fórum. p. 40.
Procuradora Federal, lotada na Procuradoria Federal de Minas Gerais. <br>Especialista em Direito Processual pela UNIDERP. Pós-graduanda em Advocacia Pública pelo IDDE. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROSA, Nayana Machado Freitas. O regime diferenciado de contratações publicas e suas inovações: avanços e retrocessos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41704/o-regime-diferenciado-de-contratacoes-publicas-e-suas-inovacoes-avancos-e-retrocessos. Acesso em: 22 nov 2024.
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