A discussão gira em torno da responsabilização do advogado público na difícil tarefa de “dizer o direito” sob o aspecto da adoção de posições jurídicas controvertidas nos Tribunais.
Não que o profissional deva desconsiderar o entendimento jurisprudencial, pois cabe a ele dizer não só como a lei trata da questão, mas também alertar como o Judiciário a enfrentará.
Pode-se distinguir duas situações. Em face de uma questão controvertida e ainda não pacificada nos Tribunais, pode adotar a interpretação que lhe parecer mais conforme com o interesse público e à Constituição, desde que aceitável sob o ponto de vista da ciência do Direito. Goza aqui de uma margem de liberdade, delimitada na lei e no texto constitucional. Seguindo as lições de Kelsen poderá adotar uma das interpretações possíveis dentro da moldura do Direito.[1]
Um juiz que condena um culpado à pena de morte, numa situação de paz, sustentado que as sanções atuais não estão cumprindo com o seu papel preventivo, procede de forma contrária à Constituição, adotando interpretação incompatível e não acolhida perante a comunidade jurídica de maneira geral. Um procurador municipal que aprova uma dispensa de licitação, sob a única justificativa de que o procedimento é demorado e custoso à Administração, adota interpretação que também não se sustenta diante da Lei 8.666/93 e da Constituição.
Porém, se um procurador federal manifesta concordância com a contratação de empresa que recebera a pena de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por órgão estadual ou municipal (artigo 87, inciso III, da Lei 8.666/93)[2], não deverá ser punido, por suposta violação à lei e ao princípio da moralidade pública (no sentido de que, se uma empresa não tem condições de licitar com um determinado ente público, não o terá com nenhum outro)[3], por tratar-se de um tema controvertido, que admite mais de uma interpretação. A Lei 8.666/93 no artigo 6.°, incisos XI e XII, define Administração (como “órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente”) e Administração Pública (como a “Administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (...)”). Como o artigo 87, inciso III, da referida lei só menciona Administração, pode-se sustentar que haveria proibição de licitar apenas diante do ente que aplicou a pena. Porém, em face dos princípios constitucionais da eficiência e da moralidade, se uma empresa não está habilitada (por algum “desvio de conduta”) para licitar com um determinado ente público, também não estará diante de qualquer outro.[4]
Veja-se que nesse último exemplo, ambas as interpretações são razoáveis, porém não se pode dizer com absoluta convicção qual é a correta, pelo menos no âmbito da ciência do Direito. As duas se sustentam juridicamente. Numa situação como essa não poderá haver responsabilização, no entanto, é prudente que o advogado mencione a existência da controvérsia e destaque como o Judiciário vem enfrentando a questão.
Assim leciona Marçal Justen Filho:
Havendo discordância doutrinária ou jurisprudencial acerca de certos temas, a assessoria jurídica tem o dever de consignar essas variações, para possibilitar às autoridades executivas pleno conhecimento dos riscos de determinadas decisões. Mas, se há duas teses jurídicas igualmente defensáveis, a opção por uma delas não pode acarretar punição. (2004, p. 372).
Pode-se dizer que uma interpretação não seria razoável se afrontasse literal disposição legal ou constitucional, sem uma fundamentação jurídica adequada, isto é, capaz de sustentar-se diante do direito positivo vigente[5]. O Tribunal de Contas da União utiliza o termo parecer “desarrazoado”, afirmando que haverá responsabilidade do advogado parecerista se existir nexo causal entre a manifestação jurídica e o ato danoso ao poder público:
Na esfera da responsabilidade pela regularidade da gestão, é fundamental aquilatar a existência do liame ou nexo de causalidade existente entre os fundamentos de um parecer desarrazoado, omisso ou tendencioso, com implicações no controle das ações dos gestores da despesa pública que tenha concorrido para a possibilidade ou concretização do dano ao Erário.
Sempre que o parecer jurídico pugnar para o cometimento de ato danoso ao Erário ou com grave ofensa à ordem jurídica, figurando com relevância causal para a prática do ato, estará o autor do parecer alcançado pela jurisdição do TCU, não para fins de fiscalização do exercício profissional, mas para fins de fiscalização da atividade da Administração Pública.[6]
Em outra ocasião, o Tribunal de Contas da União afastou a responsabilidade da assessoria jurídica, por não considerar o conteúdo do parecer desarrazoado e pelo fato do mesmo estar embasado em informação de órgão técnico:
No caso em tela, analisando as razões de justificativa apresentadas pela Procuradoria Jurídica da AEB[7], bem como o parecer jurídico favorável à dispensa de licitação (...), percebo que o mesmo não é ‘desarrazoado, omisso ou tendencioso’. Com efeito, sua fundamentação baseou-se nas informações prestadas pela área técnica da AEB.[8]
Portanto, diante de tema controverso, não definido pela jurisprudência, a adoção de interpretação jurídica plausível não gera nenhuma responsabilidade ao advogado público, mesmo que posteriormente seja afastada pelo Poder Judiciário. Responsabilizá-lo seria um retrocesso. Como atuar tranquilamente sabendo que a solução jurídica dada ao caso poderá ser rechaçada por algum tribunal, com consequências punitivas ao profissional? Como exercer seu ofício com isenção e independência nesses casos? Isso engessaria o exercício dessa relevante função, prejudicando a construção de uma sociedade justa e solidária. É fato que não se concebe uma boa atuação pairando sobre si uma “uma espada de dâmocles”.[9]
É esclarecedora a lição de Jorge Ulisses Jacoby Fernandes:
O que parece ser indispensável rever é a responsabilização do profissional que emite parecer técnico, sustentando tese juridicamente razoável, amparada em boa doutrina e jurisprudência. Nesse sentido, não podem os órgãos de controle externo, seja Tribunal de Contas, Ministério Público ou Poder Judiciário, pretender o monopólio da interpretação da norma em caráter retroativo, substituindo-se ao gestor público. Diante de várias e diversas interpretações possíveis, enquanto não firmada jurisprudência, cabe exclusivamente ao administrador público decidir.[10] (grifo nosso)
Já diante de um assunto pacificado na jurisprudência (sumulado[11] ou em vias de ser sumulado[12]), deverá indicar como o melhor caminho a ser percorrido pelo administrador a interpretação conferida pelos Tribunais. Sem dúvida, poderá ressalvar seu entendimento pessoal, porém, como também tem a função de prevenir litígios desnecessários, deverá adotar a interpretação final dada pelo Judiciário, notadamente se estiver proferindo um parecer vinculante. Diante de uma posição definitiva do Poder Judiciário, não há outra saída à Administração: deverá seguir o que restar decidido[13]. Isso é necessário para a convivência harmônica entre os poderes. A interpretação final de uma norma jurídica é dada pelo Judiciário[14]. E nesse caso, se o advogado orientar o administrador para uma conduta diversa da pacificada nos Tribunais, poderá ocasionar um desequilíbrio na relação entre os poderes, em prejuízo ao próprio Estado Democrático de Direito.
Ressalte-se que, mesmo diante de um parecer não vinculante, o profissional não deve conduzir o administrador à prática de um ato que será invariavelmente contestado e rechaçado pela Justiça.[15]
Por outro lado, deve-se frisar que mesmo uma interpretação sumulada pelo Supremo Tribunal Federal e vinculante pode ser modificada.[16] Nessa circunstância como ficaria eventual punição conferida a um advogado público por adotar interpretação contrária à sumulada, mas que venha a ser alterada? Numa situação como essa, deverá ser mantida eventual punição, pois na época da elaboração do ato, o profissional desconsiderou a interpretação dada pelo Judiciário, em “definitivo”, a ordem jurídica em vigor.
Por fim, ao adotar uma interpretação jurídica possível, não poderá contrariar súmula administrativa, parecer ou orientação técnica adotada pelo Advogado-Geral da União, nos termos do artigo 28, inciso II, da LC n.° 73/93, pois aí estaria desrespeitando uma disposição legal, violando dever funcional.
NOTAS:
[1] “O Direito a aplicar forma [...] uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.” KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 390.
[2] “Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: [...] III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo superior a 2 (dois) anos; [...]”.
[3]Marçal Justen Filho sustenta que: “não haveria sentido em circunscrever os efeitos da ‘suspensão de participação de licitação’ a apenas um órgão específico. Se um determinado sujeito apresenta desvios de conduta que o inabilitam para contratar com a Administração Pública, os efeitos dessa ilicitude se estendem a qualquer órgão.” JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 10. ed. São Paulo:Dialética, 2004 , p. 605.
[4]O Superior Tribunal de Justiça enfrentou a questão em acórdão assim ementado: “ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DE PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÕES. MANDADO DE SEGURANÇA. ENTES OU ÓRGÃOS DIVERSOS. EXTENSÃO DA PUNIÇÃO PARA TODA A ADMINISTRAÇÃO. 1. A punição prevista no inciso III do artigo 87 da Lei nº 8.666/93 não produz efeitos somente em relação ao órgão ou ente federado que determinou a punição, mas a toda a Administração Pública, pois, caso contrário, permitir-se-ia que empresa suspensa contratasse novamente durante o período de suspensão, tirando desta a eficácia necessária. 2. Recurso especial provido.” BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 174274. 2.ª turma. Relator: Ministro Castro Meira. Brasília, DF. DJ 22/11/2004, p. 294. Disponível em: <http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=174274&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=2>. Já o Tribunal de Contas da União tratou do assunto de maneira diversa. Determinou “à Coordenação-Geral de Serviços Gerais do Ministério da Saúde que oriente as unidades integrantes da estrutura do referido Ministério, para que, em observância ao princípio da legalidade, não incluam, nos editais de licitação pertinentes aos certames que instaurem, cláusulas que: a) impeçam a participação de interessados eventualmente apenados por outro órgão ou entidade da Administração Pública com suspensão temporária, uma vez que o art. 87, inc. III, da referida Lei nº 8.666/93, apenas faz referência à própria Administração contratante (...).” BRASIL. Tribunal de Contas da União. Decisão nº 52/99. Plenário. Relator: Humberto Souto. Brasília, DF. DOU 12/3/1999, Seção I, p. 103. Disponível em: <http://contas.tcu.gov.br/portaltextual/MostraDocumento?qn=1&doc=1&dpp=20&p=0>. Acesso em 23 agosto 2007.
[5]O artigo 34 do EOAB dispõe que constitui infração disciplinar “advogar contra literal disposição de lei, presumindo-se a boa-fé, quando fundamentado na inconstitucionalidade, na injustiça da lei ou em pronunciamento judicial anterior.”
[6]BRASIL. Tribunal de Contas da União. Prestação de Contas. Acórdão nº 462/2003. Plenário. Relator: Walton Alencar Rodrigues. Brasília, DF. DOU 26/05/2003. Disponível em: <http://contas.tcu.gov.br/portaltextual/MostraDocumento?qn=4&doc=2&dpp=20&p=0> Acesso em 23 agosto 2007.
[7] Agência Espacial Brasileira
[8]BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório de auditoria. Acórdão nº 1.616/2003. Plenário. Relator: Augusto Sherman Cavalcanti. Brasília, DF. DOU 07/11//2003. Disponível em: <http://contas.tcu.gov/portaltextual/MostraDocumento?qn=1&doc=1&dpp=20&p=0>. Acesso em 23 agosto 2007.
[9]É mais do que normal um juiz entender de uma forma e o tribunal entender de outra, e nem por isso esse magistrado será punido por tal conduta, em virtude de sua independência funcional, garantida na Constituição. Essa prerrogativa permite ao julgador uma tranquilidade na hora de julgar, pois julga conforme sua consciência, devendo obediência apenas à lei, à Constituição e aos princípios gerais de direito.
[10] JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Responsabilidade por parecer jurídico no serviço público. Revista de Administração Pública e Política [L&C], n. 78, dezembro de 2004, p. 11.
[11]Enquanto a matéria não é sumulada, o pretenso entendimento predominante pode ser alterado, mas é prudente que o advogado público ressalte a divergência e verifique qual a chance do Judiciário adotar em definitivo uma ou outra interpretação.
[12] Se já houver decisão do pleno do STF, por exemplo.
[13]Por oportuno cumpre transcrever a lição do professor Ricardo Marcondes: “no direito positivo brasileiro não há exceções: a função jurisdicional é privativa do Poder Judiciário e, sob o aspecto material, consiste na solução definitiva de controvérsias sobre a aplicação do Direito. Desse conceito material extraem-se três notas fundamentais: o exercício das funções legislativa e administrativa sempre poderá ser revisto pelo Poder Judiciário; consequentemente somente a função jurisdicional possui a nota de definitoriedade (coisa julgada); o Poder Judiciário só atua se houve controvérsia sobre o direito aplicável (com a ressalva a seguir examinada) e, por isso, jamais age de ofício, só atua se provocado.” MARTINS, Ricardo Marcondes. Efeitos dos vícios do ato administrativo. 2007. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2007, p. 84-85.
[14]Ressalva-se, no entanto, a chamada interpretação autêntica efetuada pelo próprio Poder Legislativo. “Diz autêntica, ou legislativa, a interpretação feita pelo próprio legislador, mediante a elaboração de outra lei, dita interpretativa.” MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 20.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 105.
[15]É um dever ético do advogado “aconselhar o cliente a não ingressar em aventura judicial” (artigo 2.°, parágrafo único, inciso VII, do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil)
[16] “Art. 5o Revogada ou modificada a lei em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso.”
Procurador Federal - AGU, ex-Procurador do Município de Praia Grande e especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RUFINO, Fernando Bianchi. O advogado público e a difícil tarefa de dizer o direito diante de posições jurídicas controvertidas nos Tribunais, considerando seus aspectos práticos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 nov 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41710/o-advogado-publico-e-a-dificil-tarefa-de-dizer-o-direito-diante-de-posicoes-juridicas-controvertidas-nos-tribunais-considerando-seus-aspectos-praticos. Acesso em: 22 nov 2024.
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