A dogmática da ordem jurídica brasileira, especialmente o Direito Administrativo, é pautado segundo princípios e regras expressos e/ou implícitos que inspiram a atuação administrativa, especialmente nas hipóteses de conflito de interesses.
Dentre tais postulados fundamentais que regem a relação do Estado e o particular está o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o particular. O presente artigo pretende analisar tal princípio, o distinguindo os entendimentos doutrinários acerca do seu real e atual significado.
Segundo o grande administrativista José dos Santos Carvalho Filho, trata-se, de fato, do primado do interesse público. O indivíduo tem que ser visto como integrante da sociedade, não podendo os seus direitos, em regra, ser equiparados aos direitos sociais.
Bandeira de Mello, por sua vez, afirma:
Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade dos interesses da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último.
Portanto, o princípio implícito em referência pode ser entendido como a sobreposição do interesse público aos interesses privados individuais. É ele que fundamenta os atos de poder de império da administração, as cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos, as várias formas de exercício do poder de polícia, a Indisponibilidade do Interesse Público dentre outros. Alguns autores defendem que a supremacia do interesse público sobre o privado constitui pressuposto lógico do Estado Democrático de Direito indispensável ao convívio em sociedade.
Vale recordar que o interesse público se manifesta em seus variados tipos. O interesse público primário é aquele que visa atender os anseios de toda a coletividade ao passo que o interesse secundário está relacionado aos direitos patrimoniais do Estado. Assim, o Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado está relacionado ao interesse público primário por ser este o verdadeiro interesse do povo, que vincula a conduta do administrador.
Nesta toada, o interesse público secundário somente será perseguido quando for compatível com o interesse público primário que deve prevalecer. Deve-se esclarecer que a sobreposição é do interesse do povo, da coletividade e não o interesse do administrador, do político ou da máquina estatal.
Ocorre que coma falência dos ideários liberais e práticas autoritárias que marcaram a criação do Direito Administrativo, parte da doutrina passou a questionar se o princípio da Supremacia do interesse Público poderia ser invocado como postulado normativo ou tão somente uma regra de preferência.
Alguns doutrinadores defendem que Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o particularnão mais se coaduna com o Estado Democrático de Direito em que os direitos coletivos e individuais devem conviver em harmonia. Neste interim, entende-se que a adequação do Direito Administrativo ao Estado Democrático de Direito exige também que o interesse público, seja o primário ou o secundário, reverencie os direitos fundamentais dos cidadãos cuja proteção está expressamente consignada em todo o corpo da Constituição Federal.
Neste sentido, Luís Roberto Barroso sustenta que, no atual marco do Estado Democrático de Direito, pautado, sobretudo, pelas noções de centralidade e supremacia da Constituição, a concretização do interesse público, muitas vezes, é consumada pela satisfação de determinados interesses privados. E finaliza: o interesse público se realiza quando o Estado cumpre satisfatoriamente o seu papel, mesmo que em relação a um único cidadão (que evidencia a transformação pragmática que vem passando o Direito Administrativo e seus respectivos pilares).
Na mesma linha, Humberto Ávila assinala:
Trata-se, em verdade, de um dogma até hoje descrito sem qualquer referibilidade à Constituição vigente. A sua qualificação como axioma bem o evidencia. Esse nominado princípio não encontra fundamento de validade na Constituição Brasileira. Disso resulta uma importante consequência, e de grande interesse pratico: a aplicação do Direito na área do Direito Administrativo brasileiro não pode ser feita sob o influxo de um princípio de prevalência (como norma ou como postulado) em favor do interesse público.
Insta consignar que parte da doutrina é drasticamente contrária a esta corrente de pensamento modernista. Para José dos Santos Carvalho Filho, por exemplo, a existência dos direitos fundamentais não afasta a densidade do princípio, senão vejamos:
Se é evidente que o sistema jurídico assegura aos particulares garantias contra o Estado em certos tipos de relação jurídica, é mais evidente ainda que, como regra, deva respeitar-se o interesse coletivo quando em confronto com o interesse particular. (...) Este é na verdade, o corolário natural do regime democrático, calcado, como por todos sabido, na preponderância das maiorias.
Em que pese as divergências de tratamento do tema, ambas as correntes concordam no seguinte ponto: É defeso à Administração dispor do interesse público primário, já que destituída de autonomia da vontade.Com efeito, o interesse público secundário deve estar em harmonia com o interesse público primário para que de fato vincule a Administração e se torne legítimo.
Partindo de tais premissas, e respeitadas a doutrina em contrário que muito contribui para a evolução do tema, entendemos equivocado dizer que o interesse público aprioristicamente deva sempre prevalecer sobre os interesses individuais.
Com efeito, não se pode admitir a descrição dos interesses públicos em separado, ocupando lugar oposto, ou isolado, aos interesses individuais. No Estado Democrático de Direito, o interesse público e o privado não devem ser idealizados como instâncias antagônicas, sob pena grave lesão aos ideais do constituinte originário. A Administração apenas consegue realizar o interesse público por meio de atuação que leve em conta os direitos fundamentais dos cidadãos.
Em outros termos, a ideia de Supremacia irrestrita do Interesse Público não se coaduna com o Princípio da Unicidade da Constituição e da reciprocidade de interesses considerados que baseiam o Princípio da Proporcionalidade, este sim corolário do Estado Democrático de Direito.
Assim, somente através de uma releitura do Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado é que alcançaremos o justo equilíbrio entre direitos individuais e o interesse público tão almejado pelo Direito Administrativo Contemporâneo.
REFERÊNCIAS:
ÁVILA, Humberto. Repensando o "princípio da supremacia do interesse público sobre o particular". Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br/artigo/humberto-avila/repensando-o-principio-da-supremacia-do-interesse-publico-sobre-o-particular>. Acesso em 10 nov.2014
BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 9. ed., São Paulo, Malheiros, 1997.
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