RESUMO: É comum a prolação de decisões judiciais, em sede de antecipação de tutela, concedendo a servidores públicos o direito ao recebimento de verbas alimentares objeto de discussão em juízo. Quando, porventura, a decisão concessiva da tutela antecipada é revogada, instaura-se outro conflito entre as partes (servidor e Administração): discute-se acerca da obrigatoriedade ou não de se restituir ao erário os valores recebidos. Nesse contexto, busca o presente artigo analisar essa questão, à luz da doutrina e jurisprudência pátrias.
PALAVRAS-CHAVE: Tutela. Antecipada. Provisoriedade. Servidor. Verba. Alimentar. Restituição. Erário. Obrigatoriedade. Boa-fé. Segurança. Jurídica.
1. Introdução
Segundo a dicção do art. 273, caput, do Código de Processo Civil, o juiz poderá antecipar, total ou parcialmente, a requerimento da parte, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação.
Na lição de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, “tutela antecipatória dos efeitos da sentença de mérito é providência que tem natureza jurídica mandamental, que se efetiva mediante execução ‘lato sensu’, com o objetivo de entregar ao autor, total ou parcialmente, a própria pretensão deduzida em juízo ou os seus efeitos”[1] (grifos conforme original).
Além da prova inequívoca e da verossimilhança da alegação, o art. 273 exige ainda outros dois requisitos alternativos, ou seja, não cumulativos, para a concessão da tutela antecipada: que haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou que fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.
A despeito da natureza satisfativa da tutela antecipada, uma de suas principais características é a provisoriedade, uma vez que pode ser modificada ou revogada a qualquer tempo (art. 273, §§4º e 5º).
Sérgio Bermudes ensina que só a sentença transitada em julgado assegura, em termos definitivos, a proteção jurídica concedida, provisoriamente, na tutela antecipada[2].
Diante das características da provisoriedade e da revogabilidade do provimento antecipatório, não admite a lei a concessão de tutela antecipada quando houver perigo de irreversibilidade (art. 273, §2º).
A partir dessas peculiaridades do instituto da antecipação de tutela, estudaremos, no presente artigo, a possibilidade de ressarcimento ao erário público, de verbas alimentares recebidas em decorrência de decisão judicial precária, revogada na sentença.
2. RESTITUIÇÃO AO ERÁRIO DOS VALORES RECEBIDOS POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL PRECÁRIA POSTERIORMENTE REVOGADA – PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ E DA SEGURANÇA JURÍDICA – INAPLICABILIDADE
A Lei n. 8.112, de 11.12.1990 (Estatuto do Servidor Público), em seu art. 46[3], com a redação dada pela Medida Provisória n. 2.225-45, de 4.9.2001, estabelece a obrigatoriedade do servidor de restituir aos cofres públicos os valores recebidos indevidamente.
Da leitura do referido dispositivo legal, extrai-se que a obrigação de devolver emerge do recebimento indevido de verbas públicas, independentemente de ter o pagamento decorrido de erro da Administração – apesar de não ter sido essa situação expressamente prevista na lei – ou de decisão judicial que venha a ser revogada ou rescindida (Lei 8.112/90, art. 46, §3º).
Como não há menção expressa na lei acerca da obrigatoriedade da reposição ao erário no caso de erro da Administração, a jurisprudência tem se posicionado no sentido de que a verba alimentar recebida de boa-fé não está sujeita à restituição, conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AgRg nos EDcl no AREsp 173228/SC: “A Primeira Seção desta Corte, no julgamento do REsp1.244.182/PB,sob o rito do art. 543-C do CPC, consagrou a orientação de que, noscasos em que o pagamento indevido foi efetivado em favor deservidorpúblico, em decorrência de interpretação equivocada ou de máaplicação da lei por parte da Administração, a verba não estásujeita à devolução”[4].
Por outro lado, quando se trata de pagamento efetuado em decorrência de decisão judicial precária, proferida em sede de antecipação de tutela, a Corte Superior vem decidindo em sentido contrário, no sentido da obrigatoriedade da devolução, conforme se observa do seguinte aresto:
DIREITO ADMINISTRATIVO. RESTITUIÇÃO AO ERÁRIO DOS VALORES RECEBIDOS POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL PRECÁRIA POSTERIORMENTE REVOGADA.
É devida a restituição ao erário dos valores de natureza alimentar pagos pela Administração Pública a servidores públicos em cumprimento a decisão judicial precária posteriormente revogada. Não é possível, em tais casos, aplicar o entendimento de que a restituição não seria devida, sob o argumento de que o servidor encontrava-se de boa fé, porquanto sabedor da fragilidade e provisoriedade da tutela concedida. Precedente citado: EREsp 1.335.962-RS, Primeira Seção, DJe 2/8/2013[5].
Com efeito, diante da precariedade da tutela antecipada, a boa-fé do servidor não tem o condão deafastar a obrigatoriedade de reposição ao erário, nas hipóteses em que a decisão concessiva é posteriormente revogada.
Sobre a precariedade da tutela antecipada, vale transcrever o seguinte excerto da doutrina de Teori Albino Zavascki:
Ao contrário da tutela-padrão a que antes se fez referência, que tem amarca da definitividade, assim considerada pela sua imutabilidade jurídica(coisa julgada), a tutela especial ora em exame é concedida em caráter precárioe com a condição de vigorar por prazo determinado. É, pois, tutela provisória,entendida a provisoriedade em seu sentido amplo, para compreendertemporariedade e a precariedade. É provisória porque temporária, isto é, comeficácia necessariamente limitada no tempo. E é provisória porque precária, jáque pode ser revogada ou modificada a qualquer tempo, não estando sujeita àimutabilidade própria da coisa julgada[6].
Lembre-se que constitui exigência legal, para a concessão de tutela antecipada, a inexistência de perigo de irreversibilidade da decisão. Assim, a obrigatoriedade de reposição ao erárioconstitui consequência lógica da revogaçãoda tutela antecipatória, assegurando-se às partes o retorno ao status quo ante (art. 273, §§2º e 4º, do CPC).
Não há que se falar, por fim, em ofensa ao princípio da segurança jurídica, pois esta reside justamente na possibilidade de reversão das partes ao status quo ante. “Não fosse assim, o perigo de dano não teria sido eliminado, mas apenas deslocado, da esfera do autor para a do réu”[7], conforme leciona Teori Albino Zavascki.
3. Conclusão
Pelo exposto, a verba alimentar recebida por força de decisão concessiva de tutela antecipada, posteriormente revogada, deve ser restituída ao erário, haja vista que a adoção de entendimento diverso constituiria violação ao art. 273, §§2º e 4º do CPC, pois afastaria a provisoriedade e a reversibilidade, que constituem características essenciais do instituto da antecipação dos efeitos da tutela.
[1] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação extravagante. 7ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 646.
[2]BERMUDES, Sérgio. A reforma do código de processo civil. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1996, p. 28.
[3] Lei 8.112/90: Art. 46. As reposições e indenizações ao erário, atualizadas até 30 de junho de 1994, serão previamente comunicadas ao servidor ativo, aposentado ou ao pensionista, para pagamento, no prazo máximo de trinta dias, podendo ser parceladas, a pedido do interessado. (Redação dada pela Medida Provisória n. 2.225-45, de 4.9.2001) §1º O valor de cada parcela não poderá ser inferior ao correspondente a dez por cento da remuneração, provento ou pensão. (Redação dada pela Medida Provisória n. 2.225-45, de 4.9.2001) §2º Quando o pagamento indevido houver ocorrido no mês anterior ao do processamento da folha, a reposição será feita imediatamente, em uma única parcela. (Redação dada pela Medida Provisória n. 2.225-45, de 4.9.2001) §3º Na hipótese de valores recebidos em decorrência de cumprimento a decisão liminar, a tutela antecipada ou a sentença que venha a ser revogada ou rescindida, serão eles atualizados até a data da reposição. (Redação dada pela Medida Provisória n. 2.225-45, de 4.9.2001)
[4]AgRg nos EDcl no AREsp 173228/SC, Relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 21.10.2014, DJe 31.10.2014.
[5]EAREsp 58.820/AL, Relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 8.10.2014, DJe 14.10.2014
[6]ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da Tutela. 4ª ed., rev.e ampl., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 33
[7] Op. cit. p. 101.
Procuradora Federal. Pós-graduada em Direito Processual Civil - Universidade do Sul de Santa Catarina -UNISUL - conclusão em junho/2008. Graduada em Direito - Universidade Federal de Uberlândia - UFU - conclusão em janeiro/2000.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NEVES, Letícia Mota de Freitas. Obrigatoriedade de restituição ao erário de verba alimentar recebida em decorrência de decisão judicial revogada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41880/obrigatoriedade-de-restituicao-ao-erario-de-verba-alimentar-recebida-em-decorrencia-de-decisao-judicial-revogada. Acesso em: 22 nov 2024.
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