Introdução
Entre os fundamentos da República Federativa do Brasil encontra-se a dignidade da pessoa humana, sendo o princípio que garante um mínimo para uma existência digna, tendo como consequência para que ocorra essa garantia, a criação de direitos fundamentais.
No tocante aos direitos sociais, cresce a necessidade de proteção aos indivíduos que precisam de uma atuação do Estado, para que possam ter seus direitos resguardados em situações de infortúnio.
A partir desse novo conceito, sob influência de uma tendência originada na Europa, as raízes da Seguridade Social começam a ser implantadas em nosso país. Um dos segmentos da Seguridade Social, a Assistência Social, que tem como objetivo a proteção daqueles que não possuem condições de se manter, destaca-se pela concessão do Benefício Assistencial.
No entanto, para a concessão do referido benefício, faz-se necessário o preenchimento de alguns requisitos dispostos em lei.
Dessa forma, o presente trabalho fará uma análise em torno do critério objetivo de ¼ disposto em lei para a concessão do benefício assistencial, avaliando se o mesmo é suficiente para efetivar o direito à Assistência Social e, consequentemente, à proteção da dignidade da pessoa humana.
Será analisado, ainda, o papel da Hermenêutica Concretizadora para a efetivação desse benefício.
A Dignidade Da Pessoa Humana E A Situação Econômica Brasileira
A Declaração Universal de Direitos Humanos afirma que: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.
Apesar essencialmente iguais, cada ser humano é único, merecendo igual respeito. Todo ser deve ter suas necessidades básicas satisfeitas a fim de que lhe seja reconhecida uma sobrevivência digna. Esta tem sido uma preocupação constante na doutrina do direito constitucional e dos direitos humanos. Nesse contexto, ressalta-se que:
“A igualdade jurídica é a afirmação de que todas as pessoas devem ser iguais perante a lei, independentemente de sexo, raça, credo religioso, convicção política ou filosófica ou qualquer outra diferenciação que se queira ou se possa estabelecer. Da mesma forma que as declarações de direitos afirmam que os homens nascem livres, também afirmam que estes nascem iguais em direito.” [1]
Mas, o que significa ter dignidade? De acordo com Aurélio Buarque de Holanda, “ser digno” significa ter autoridade moral, honestidade, honra, respeitabilidade, amor-próprio, enfim, respeito a si mesmo.
Embora a dignidade tenha um conteúdo moral, parece que a preocupação do legislador constituinte foi mais de ordem material, ou seja, a de proporcionar às pessoas uma vida digna, principalmente no que tange ao fator econômico.
Mas, como falar de dignidade humana quando o Brasil apresenta um dos maiores índices de desigualdade do mundo? Segundo o Instituto de Pesquisas Aplicadas - IPEA, em 2002, os 50% mais pobres detinham 14,4% e o 1% mais ricos, detinham 13,5% da renda nacional. Segundo o Senso Demográfico de 2000, 32,02 % da população estava abaixo da linha da pobreza. Entre os PPDs, 29,5% e entre os PPIs, 41,62% encontravam-se em idêntica situação, isto é, em igual estado de miserabilidade.[2]
Considerando as medidas de pobreza (renda per capita inferior a ½ do salário mínimo) e indigência (renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo), vemos que estamos longe de atingir um patamar razoável que dignifique a pessoa humana, apesar da atual Política Nacional de Assistência Social – PNAS.
De acordo com o art. 1º da LOAS, a Assistência Social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.
A Emenda Constitucional nº. 31, de 14 de dezembro de 2000, criou o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, que deve vigorar até 2010, tendo como finalidade viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis de subsistência, devendo, para tanto, aplicar recursos e promover ações suplementares. [3]
Assim, para que a dignidade humana possa ser concretizada, fazem-se necessárias algumas prestações por parte do Estado, na medida em que nem todos os cidadãos possuem condições econômicas para arcar com necessidades básicas mínimas para uma existência digna.
O Mínimo Existencial
O mínimo existencial corresponde ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna; existência aí considerada não apenas como experiência física - a sobrevivência e a manutenção do corpo – mas também espiritual e intelectual. [4]
Devido a realidades socioeconômicas divergentes e para que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana possa ser realizado cabe ao Estado a prestação de direitos sociais com o objetivo de que todos possam desfrutar de uma igualdade material, na medida em que a formal já está disposta em lei.
Destarte, os direitos sociais são aqueles direitos de prestação que exigem uma atuação positiva do Estado, e que visam conceder as condições materiais aos indivíduos, devendo observar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Como observou Andréas J. Krell, o Estado Social deve garantir aos cidadãos sua existência física com dignidade, ou seja, um “mínimo social”. [5]
A dignidade da pessoa humana, como principio que norteia todo o ordenamento jurídico e toda a interpretação constitucional, não pode ser desrespeitada, pois os poderes públicos não devem se negar a realizar atitudes positivas que otimizem esse princípio.
Buscando evitar atitudes negligentes por aqueles que detêm o poder, a doutrina, visando resguardar as condições materiais indispensáveis à consagração do princípio em comento, elaborou um conceito de mínimo existencial, sendo esse um padrão mínimo invulnerável que limita e evita as violações por parte dos poderes constituídos.
O Mínimo Existencial pode ser conceituado como o núcleo da dignidade humana, devendo ser prestadas condições materiais para um pleno desenvolvimento humano, sendo esses direitos básicos realizados através dos direitos sociais, preservando a noção de dignidade humana. Em outras palavras, o mínimo existencial são as condições essenciais de existência humana, sob pena de violação de sua dignidade.
É importante destacar que o mínimo existencial busca garantir condições materiais mínimas de sobrevivência e de existência digna, não se eximindo o Estado da prestação de outros direitos constantes no texto constitucional. Esse mínimo existencial é apenas uma garantia de um núcleo inviolável, protegendo o individuo das investidas do Estado.
O Brasil, apesar de ser um dos países mais ricos do mundo, possui grandes desigualdades sociais. Há uma grande quantidade de pessoas sem qualquer condição de existência digna, enquanto uma minoria detém a riqueza produzida em nosso país.
A miserabilidade somada à falta de serviços públicos de qualidade agrava ainda mais a situação de grande parte de nossa população. O desemprego crescente e a falta de investimentos na área de saúde, educação, segurança, habitação, entre outros, levam o país a ter destaque mundial como um país de miseráveis.
A Reserva Do Possível
Não obstante o caos social no qual o Brasil se insere, doutrinadores brasileiros vêm defendendo a teoria da Reserva do Possível, a qual reduz sobremaneira as prestações sociais.
A citada teoria, criada na Alemanha, entende que o Estado só pode assegurar direitos sociais desde que tenha condições de arcar com as prestações materiais inerentes a esses direitos. Dessa forma, não possuindo o Estado meios econômicos de assegurar tais direitos, estes seriam reduzidos na medida em que o Poder Público não poderia se comprometer com tais direitos sem ter a respectiva verba.
Nesse sentido, Ana Carolina Lopes Olsen afirma que:
“A reserva do possível é uma condição de realidade que determina a submissão dos direitos fundamentais prestacionais aos recursos existentes. Todavia, não se trata de simplesmente afirmar que os direitos fundamentais existem no mundo jurídico, mas só encontrarão efetividade quando houver recursos suficientes em caixa, disponíveis pelos poderes públicos, para realizar as prestações neles previstas. A questão não é tão simples.” [6]
Deve-se salientar que a aplicação de tal teoria em países desenvolvidos como Alemanha, França, Inglaterra, entre outros que já possuem direitos básicos garantidos, tais como saúde, educação, segurança, não afeta tanto a população como em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento como o Brasil.
Referidos direitos são resguardados e são oferecidos com excelência, para todos indistintamente, nos países centrais. Por já assegurarem direitos sociais estruturantes, esses países afirmam que os cidadãos devem esperar do Estado só aquilo que o mesmo pode oferecer.
No entanto, no Brasil, diferentemente do que ocorre em países desenvolvidos, os direitos essenciais para que o cidadão possa ter uma vida digna não são prestados, não podendo, dessa forma, ser alegada pelo legislativo e executivo a não efetivação desses direitos em nosso país.
Como sabido, milhares de brasileiros vivem em condições sub-humanas, abaixo da linha da pobreza, sem ter ao menos com o que se alimentar, tendo que, com o pouco dinheiro que conseguem, sustentar toda uma família.
Desse modo, a afirmação de que pela Reserva do Possível os Poderes Públicos não podem realizar a efetivação de direitos sociais reduz de forma substancial dois objetivos perseguidos por nosso país: reduzir as desigualdades sociais e promover a dignidade da pessoa humana.
Atente-se que o Estado não pode simplesmente alegar a Reserva do Possível para o não cumprimento de direitos fundamentais, na medida em que os direitos sociais são normas de aplicabilidade imediata, e devem produzir seus efeitos desde logo.
“A reserva do possível surge como um excelente escudo contra a efetividade dos direitos fundamentais a prestações positivas, como os direitos sociais, pois nada poderia ser feito, ainda que houvesse “vontade política” face à escassez de recursos.” [7]
Dessa forma, a Reserva do Possível não pode vir a impedir a concretização de direitos sociais, mormente quando sabemos que o Brasil é um dos países mais ricos do mundo, com grandes potencialidades. Além de toda riqueza produzida em nosso país, há o dinheiro dos impostos, que deve ser utilizado para a realização dos referidos direitos.
Diante do exposto, não se pode utilizar tal teoria como um escudo, vindo a se negar toda e qualquer prestação social resguardada através do manto da Reserva do Possível.
A opção de como será gasto o dinheiro público é um ato político cujas decisões definem onde e como o dinheiro deverá será gasto.
Entende-se, portanto, que devem ser dadas prioridades a determinadas necessidades básicas dos indivíduos, ao invés de financiar o capital especulativo, a concessão de regalias a determinados membros dos poderes públicos, entre tantas outras formas de desperdício de dinheiro.
Na realidade, o que se precisa urgentemente é uma melhor administração do dinheiro público, através de decisões políticas que visem favorecer o pleno desenvolvimento humano, promovendo políticas públicas que insiram o cidadão como tal, garantindo-lhe e sendo-lhe assegurados direitos exigíveis.
Antes de se aplicar, no ordenamento jurídico pátrio, teorias formuladas em outros países, deve-se analisar as condições socioeconômicas, culturais, históricas e políticas, uma vez que nem todos os países se desenvolvem com a mesma intensidade nas mais diversas áreas e setores. Tais teorias deverão ser aplicadas apenas quando em consonância e na impossibilidade absoluta de realização dos direitos sociais.
Mas como viabilizar a efetivação dos direitos sociais, quando o Estado afirma que não possui meios de efetivá-los pela falta de recursos, alegando a Reserva do Possível? Como fazer para que a norma constitucional e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana possam ser concretizados?
Diante de tais alegações, para que a norma constitucional produza seus efeitos e seja concretizada, é imperiosa a utilização da Hermenêutica Concretizadora.
Métodos e Princípios De Interpretação Constitucional
Interpretação e Hermenêutica, apesar de possuírem um mesmo objetivo, qual seja, a busca do sentido no enunciado das normas, elas não se confundem por serem institutos distintos. Enquanto a primeira é a atividade prática de buscar e revelar o sentido, o conteúdo da norma, a hermenêutica se caracteriza por ser uma ciência que se preocupa em formular e sistematizar princípios, tendo como objetivo orientar o intérprete na busca pelo conhecimento da norma.
Feitas as distinções entre os citados fenômenos, cumpre elencar os principais métodos de interpretação clássica: o literal, o histórico, o teleológico e o sistemático.
O método de interpretação literal, também chamado gramatical, textual ou filológico, é aquele que busca interpretar a norma a partir da análise dos enunciados, observando a disposição das palavras, que estão de determinada forma combinadas para um melhor entendimento por parte do intérprete. Dessa forma, esse método tem por escopo desvendar o sentido de cada palavra constante em dada norma, analisando o significado de cada uma delas.
Destaca-se também o método de interpretação histórico que se realiza através da compreensão dos fatores sociais, econômicos, culturais e históricos que levaram à elaboração de determinada norma. Nesse método, o intérprete, ao analisar determinada norma, propõe-se a fazer uma busca em todo o processo de elaboração da lei, a partir das discussões durante a elaboração da mesma, passando pelas atas, registros e tudo aquilo que possa identificar o momento histórico em que a mesma foi elaborada.
A interpretação teleológica ou finalística é aquela que se caracteriza por interpretar a norma avaliando a finalidade para a qual ela foi criada, ou seja, a interpretação deve ocorrer visando identificar e atender aos seus objetivos , ou seja, à sua finalidade.
O método sistemático indica que determinada norma não deve ser interpretada isoladamente. Pelo contrário, deve-se situar o dispositivo a ser interpretado, e realizar a arte interpretativa em conjunto com os demais dispositivos da lei interpretada, em consonância também com as demais normas do ordenamento jurídico. Dessa forma, a norma nunca deve ser interpretada isoladamente, mas sempre em conjunto com as demais normas do sistema jurídico.
As Constituições, como um todo, caracterizam-se por conterem normas abertas que possuem um sentido amplo, indeterminado e abrangente, diferenciando-se das demais normas jurídicas que possuem um conteúdo mais fechado.
Dessa forma, a Constituição contém normas que determinam a organização política do Estado, a estrutura do mesmo, define competências dos poderes estatais, as finalidades do Estado, entre outras coisas. Por ser a interpretação constitucional aquela que interpreta a lei suprema de um país, faz-se necessário que esta seja realizada através de métodos específicos que garantam uma interpretação, levando em consideração sua especificidade e sua importância como norma suprema.
Contudo, Dirley da Cunha Júnior observa:
“[...] como a interpretação constitucional tem por objeto a compreensão e aplicação das normas constitucionais, ela se serve de princípios próprios que lhe conferem especificidade e autonomia. É exatamente na peculiaridade de seu objeto- a Constituição - que reside a necessidade de uma interpretação especificamente constitucional, informada por métodos e princípios específicos e adequados ao seu objeto.” [8]
Vários são os princípios de interpretação constitucional, destacando-se o da unidade da Constituição. Por esse princípio, a interpretação da Constituição deve ser una, ou seja, não se deve interpretar uma norma constitucional isoladamente, em separado das demais normas constitucionais. Pelo contrário, a interpretação deve ser realizada de uma forma global, total, analisando a norma interpretada em consonância com as demais normas presentes na Constituição.
O que se depreende é que normas e princípios constitucionais não possuem hierarquia, não prevalecendo um sobre o outro e, se durante a interpretação surgir algum antagonismo entre as normas, esse deve ser afastado.
Um princípio de destaque é o do efeito integrador, com o qual se deve interpretar as normas constitucionais visando a uma maior integração política e social, e nunca a uma interpretação constitucional que venha a realizar tal desagregação.
Para realizar a interpretação constitucional, outro princípio muito utilizado é o da máxima efetividade. A interpretação das normas constitucionais deve conferir ao seu enunciado o maior grau de efetividade possível. Dessa forma, havendo a possibilidade de mais de uma interpretação, deve ser dada preferência àquela que contemple maior efetividade ao enunciado constitucional.
O princípio da justeza ou da conformidade funcional é o princípio que determina que toda a interpretação constitucional deve respeitar a divisão das funções constitucionais estabelecidas na Constituição.
Mais um princípio importante é o da concordância prática ou da harmonização que é aplicado sempre que houver conflitos entre bens constitucionais protegidos. A Constituição protege vários bens jurídicos e valores, de modo que, ao interpretá-la, deve-se harmonizar os bens nela protegidos quando em conflito, não dando preferência a uns em detrimento de outros, na medida em que não há hierarquia entre os bens protegidos pela Constituição.
O princípio da força normativa da Constituição é o princípio que afirma que, por ser a Constituição norma jurídica, esta possui força normativa impondo os seus comandos. A interpretação constitucional deve visar a sua máxima efetividade, sendo o intérprete o responsável pela conservação da força normativa da mesma, através de sua atualização, garantindo sua eficácia.
O princípio da interpretação conforme a Constituição aduz que, se diante de uma norma, várias interpretações forem possíveis, deve-se buscar interpretá-la de maneira que mais se aproxime da vontade constitucional. Dessa forma, sendo várias as possibilidades de se interpretar uma norma, busca-se uma interpretação que não contrarie o texto constitucional.
Hermenêutica Concretizadora
A Constituição, por conter as diretrizes, os princípios, os objetivos, fundamentos de determinado país, possui supremacia em relação às demais leis existentes.
As normas constitucionais, por possuírem força normativa, devem ser efetivadas para que a Constituição não se restrinja a um pedaço de papel. Desse modo, cada norma constitucional tem uma razão de ser, sendo elaborada com uma finalidade a ser perseguida.
É através da interpretação que se inicia o processo de concretização das normas constitucionais. A interpretação jurídica é o gênero no qual a interpretação constitucional é a espécie.
Existem vários métodos de interpretação aplicáveis à interpretação jurídica, no entanto, pela importância dada às constituições, vêm sendo desenvolvidos novos métodos de interpretação especificamente constitucionais, não deixando, no entanto, de serem aplicados os métodos tradicionais.
Os métodos interpretativos não são autônomos, devendo ser aplicados em conjunto, cada um dando sua contribuição.
Na realização da interpretação das normas constitucionais, pela sua especificidade e pela sua importância diante das demais normas, e pelo fato de a Constituição possuir normas constitucionais com sentido genérico, deve-se ter um maior cuidado na sua interpretação.
Na interpretação constitucional, é preciso ir a fundo para que haja a interpretação das normas constitucionais, devendo sempre se buscar a proteção ao Estado Social e aos direitos fundamentais. [9]
As normas constitucionais têm posição de destaque no ordenamento jurídico uma vez que contemplam normas de direitos fundamentais, essenciais para a preservação da dignidade humana.
Objetivando dar uma maior efetividade às normas constitucionais e consequentemente aos direitos fundamentais, foi elaborado na Alemanha um novo tipo de hermenêutica constitucional denominada Hermenêutica Concretizadora.
Segundo Hesse, seu principal teorizador, a interpretação adequada é “aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação”.[10]
Esse método interpretativo, buscando uma maior concretização das normas constitucionais, em especial as de direitos fundamentais, entende que, para que haja a interpretação das referidas normas, o intérprete deve possuir uma pré-compreensão da norma a ser concretizada. Dessa forma, não sendo a interpretação constitucional uma simples subsunção dos fatos à norma, torna-se necessária a realização de uma interpretação extensiva.
Na Hermenêutica Concretizadora, o intérprete, a partir de uma pré-compreensão do conteúdo da norma a ser interpretada, visa conceder um conteúdo jurídico às normas constitucionais, baseando-se num caso concreto. Desse modo, não há concretização de normas constitucionais sem casos concretos.
Nesse método de interpretação, o que ocorre é a aplicação da norma ao caso concreto, sendo necessários alguns elementos para a concretização constitucional que são: a norma a ser concretizada, a pré-compreensão da norma pelo intérprete e o problema concreto a ser resolvido.
Sendo assim, o intérprete deve ter uma pré-compreensão da norma a ser concretizada, ou seja, deve conhecê-la e daí preencher a norma, conferindo-lhe um conteúdo material, a partir de um caso concreto.
Critério de ¼ como impedimento para concretização do benefício assistencial
A Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu art. 203, V, que:
A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social e tem por objetivos: V - a garantia de 1 (um) salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.[11]
Diante do artigo exposto na Carta Magna, o Benefício Assistencial é concedido pela Assistência Social, sendo esta prestada a quem dela necessitar, independente de contribuição à Seguridade Social. O direito à Assistência Social é um direito social, exigindo uma atuação positiva do Estado.
De acordo com a lei que regulamenta o Benefício Assistencial, considera-se incapaz de prover a manutenção do idoso ou do deficiente, a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo.
Dessa forma, para analisar se determinada família possui ou não capacidade para prover o sustento do idoso ou do deficiente, deverão ser somados as rendas de todos os participantes do grupo familiar e dividir este valor pela quantidade de pessoas que compõem esse grupo. Sendo esse valor inferior a ¼ do salário mínimo, considera-se a família incapaz de prover o sustento e, consequentemente, tal benefício é concedido.
Ocorre que o critério adotado para aferição da incapacidade da família para sustentar o idoso ou deficiente é insuficiente, na medida em que pessoas idosas ou deficientes são pessoas que precisam de cuidados constantes, remédios, bom acompanhamento médico, realização de exames, entre outras coisas.
Assim, esse critério único para aferição da referida incapacidade definida em lei restringe de forma significativa a concessão do Benefício Assistencial que tem como finalidade maior propiciar condições de existência digna para portadores de deficiência e idosos.
Importante ainda salientar que esse benefício tem o condão de oferecer condições mínimas de subsistência, não sendo um benefício complementar de renda. O benefício é conferido às pessoas que se encontram em total miserabilidade.
Estefânia Barboza observa que “os direitos sociais que poderiam diminuir tais desigualdades sociais, e buscar uma justiça verdadeiramente social, apesar de consagrados na Constituição, não vêm sendo efetivados a contento”. [12]
Ocorre que muitos daqueles que necessitam de tal benefício, preenchem os demais requisitos exigidos em lei, mas, pelo fato de a família receber um pouco mais do que o critério definido em lei, qual seja, a renda per capita ser igual ou superior a ¼ do salário mínimo, não fazem jus ao benefício.
No entanto, deve-se entender que a família que possui renda per capita igual ou um pouco superior ao critério estipulado em lei, não se diferencia daquelas famílias que recebem abaixo do referido critério. A dificuldade para sustentar o idoso ou o deficiente para aquela família que recebe um valor igual ou um pouco superior ao valor de ¼ será a mesma.
A ideia de se garantir um mínimo existencial através de prestações materiais mínimas é fundamental para que aquelas pessoas possam ter condições de se desenvolver, e para que a dignidade das mesmas não seja violada.
Fazendo uma correlação com o próprio salário mínimo, o qual deveria ser suficiente para custear as despesas com alimentação, saúde, transporte, moradia, educação, lazer e vestuário, e não o é, não há que se falar em existência digna, tendo como base o critério de ¼ do salário mínimo.
A aplicação desse critério objetivo para a concessão do referido benefício não se coaduna com a realidade social atual.
A Assistência Social, definida como direito do cidadão e dever do Estado, é também Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.
Definir a capacidade ou não de determinada família para sustentar um deficiente ou idoso, utilizando-se desse único critério, é insuficiente, violando, de forma clara, a dignidade da pessoa humana, princípio norteador de todo o direito.
Ademais, a Assistência Social será devida a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à Seguridade Social, restando claro que deve ser esse direito resguardado, na medida em que é uma norma constitucional, e que por isso possui força normativa.
A dignidade da pessoa humana, sendo condição básica e necessária para que sejam ofertadas condições mínimas para que o homem possa viver, não pode em qualquer hipótese ser violada.
Sendo o critério de ¼ do salário mínimo utilizado isoladamente para a concessão do benefício, o mesmo é insuficiente para se decidir a capacidade ou não de certa família para sustentar o idoso ou o deficiente. Faz-se necessário buscar outros meios para que o direito social da Assistência Social possa ser garantido.
Estando o Benefício Assistencial inserido na Constituição Federal de 1988 como um direito social que visa resguardar uma existência digna, e sendo o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana base de todos os direitos fundamentais, não se pode interpretar isoladamente o dispositivo da Lei de Organização da Assistência Social que regulamenta tal benefício.
Para que a norma constitucional possa ser concretizada, produzindo seus efeitos, é imperioso ao intérprete da lei utilizar-se de um método de interpretação constitucional que busque efetivar e viabilizar a concretização de normas de direitos fundamentais.
Dessa forma, objetivando resguardar o direito à Assistência Social, direito social fundamental, mister é a utilização da Hermenêutica Concretizadora, que se caracteriza pela concretização da norma constitucional a partir do caso concreto. Assim sendo, na concessão do Benefício Assistencial, devem ser analisadas não só a condição financeira da família, como também as condições sociais, culturais e econômicas.
A norma constitucional, para que possa ser concretizada e produzir os efeitos desejados, não pode se restringir ao critério disposto em lei, qual seja a renda per capita ser inferior a ¼ do salário mínimo. Deve-se analisar, além do aludido critério, outros meios de comprovação da miserabilidade do futuro beneficiário.
Uma família que tem como renda per capita um valor superior ou um pouco superior a ¼ do salário mínimo, disposto na legislação como critério para recebimento do benefício, não se enquadra no dispositivo determinado em lei. Isso não quer dizer que essa família possua condições de arcar com o sustento do idoso ou do deficiente. No entanto, o membro da referida família não terá direito ao benefício. lia necessitado de tal benefio.
A simples análise do critério disposto em lei restringe a concessão do benefício àquelas pessoas que estão em total situação de miserabilidade, na medida em que tais pessoas não serão agraciadas com o benefício, contrariando não só o princípio elementar do direito constitucional da dignidade da pessoa humana, como também o direito social da Assistência Social.
A interpretação da lei que define o critério de ¼ não deve ser interpretada isoladamente, mas juntamente com a Constituição Federal e com as demais normas que se relacionam à Assistência Social. Para que o intérprete não fique restrito apenas à lei regulamentadora, deve-se, portanto, ser realizada uma interpretação sistemática.
Em Ação Direta de Inconstitucionalidade de n º 1.232 impetrada no STF, questionando a Constitucionalidade do critério objetivo disposto em lei, a Corte Máxima de nosso país decidiu ser constitucional tal critério. No entanto, apesar da decisão do STF sobre esse assunto, o mesmo apenas conferiu sua constitucionalidade, não se referindo à possibilidade ou não da comprovação da miserabilidade através de outros meios.
Desse modo, o critério estabelecido em lei deve ser considerado apenas como uma presunção de miserabilidade, de tal forma que a família que se encontre com renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo já é considerada incapaz de sustentar o idoso ou o deficiente. No entanto, não pode ser negada a produção de outros meios de prova para comprovar que a família do requerente do benefício é miserável.
Para que possa ser dada a eficácia desejada ao direito social da Assistência Social, deve-se buscar realizar uma interpretação jurídica objetivando assim, realizar o mandamento constitucional.
Dessa forma faz-se imperiosa a utilização de uma interpretação constitucional, e que, como tal, faça valer a Constituição, conferindo-lhe força normativa, possibilitando uma melhor compreensão e aplicação, garantindo sua plena eficácia, com a consequente aplicação do direito.
Relacionando a Hermenêutica Concretizadora à problemática da concessão do beneficio assistencial, nota-se que ela é de fundamental importância, na medida em que esta tem como objetivo principal concretizar as normas constitucionais com base em casos concretos, analisando suas nuances e peculiaridades, sendo extremamente necessária para que seja concretizado o direito à Assistência Social.
Portanto, os critérios para a concessão do Benefício Assistencial não devem ser analisados de uma forma puramente objetiva, devendo ser averiguadas questões subjetivas do beneficiário, objetivando um melhor atendimento à intenção constitucional. Diante disso, deve-se buscar cada vez mais a aplicação de uma Hermenêutica Concretizadora, tendo como finalidade a efetivação dos direitos fundamentais e consequentemente a proteção à dignidade humana.
Conclusão
O Benefício Assistencial é concedido pela Assistência Social e tem como objetivo a concessão de um salário mínimo para o idoso ou o deficiente que não possuem condições de se manter ou de ser sustentados por sua família. Não sendo capazes de se autossustentar, cabe à família mantê-los.
É considerada incapaz de prover a manutenção do idoso ou do deficiente a família cuja renda per capita de cada membro da mesma seja inferior a ¼ do salário mínimo. Não sendo esse requisito preenchido, não se é concedido o benefício.
No entanto, apenas a análise desse critério objetivo para a concessão desse benefício tem cerceado o direito da obtenção do mesmo, impedindo a concretização do direito fundamental social à Assistência Social e violando o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Tendo a Assistência Social a finalidade de prover os mínimos sociais para a manutenção das necessidades básicas do indivíduo que não possui uma boa condição financeira, esta não vem sendo efetivada a contento.
O critério estabelecido em lei, qual seja, a renda per capita familiar ser inferior a um ¼ do salário mínimo, para aferir a incapacidade da família para sustentar o idoso ou o deficiente não é suficiente para atingir sua finalidade. Analisar a capacidade de determinada família a partir desse único critério fere a própria Constituição Federal, que não restringe a concessão desse benefício, na medida em que afirma que a Assistência Social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à Seguridade Social.
Ademais, se faz necessária para averiguar a miserabilidade de determinada família a realização de uma perícia socioeconômica, que deve ter por objetivo a análise das reais condições sociais em que a família está inserida. Dessa forma, o fato de a mesma ter como renda per capita um valor superior ao definido em lei, dependendo do caso concreto, pode ser insuficiente.
Diante disto, não se pode inviabilizar tal benefício baseando-se nessa única situação, não devendo em hipótese alguma ser feita uma análise taxativa, literal da norma que regulamenta tal benefício.
Cumpre salientar ainda que o legislador constituinte, ao inserir o inciso V, do artigo 203 da CF, em análise conjunta com seu caput, não buscou restringir a concessão de tal beneficio na medida em que o mesmo afirma que assistência será prestada a quem dela necessitar. Não pode, em hipótese alguma, uma lei infraconstitucional limitar a Constituição Federal, na medida em que a primeira retira sua validade a partir desta última, não podendo contrariar a mesma.
Dessa forma, o legislador, devido ao princípio da supremacia da Constituição, deve elaborar as leis infraconstitucionais tendo como base a Constituição, buscando atender a sua finalidade e aos bens por ela protegidos, não sendo possível a restrição ao direito fundamental social.
Diante dessa limitação imposta pela lei regulamentadora do Benefício Assistencial, não se deve buscar uma interpretação baseando-se apenas na lei seca. Pelo contrário, deve-se interpretá-la em consonância com o caso concreto que fornecerá subsídios para conferir a miserabilidade de determinada família.
Destaque-se ainda que, apesar de o STF ter decidido pela constitucionalidade do dispositivo que determina o critério objetivo para aferição da incapacidade de determinada família para manter o idoso ou o deficiente, em sua decisão, a Corte Máxima de nosso país não restringiu como critério único e exclusivo para aferição da miserabilidade, o critério de ¼.
Assim, o critério de ¼ é apenas uma presunção objetiva de incapacidade por parte da família, cujo idoso ou deficiente, enquadrando-se nesse critério, fará jus ao benefício. No entanto, se a renda per capita da família é um pouco superior ao critério objetivo, nada impede a verificação dessa incapacidade através de outros meios comprobatórios no caso concreto.
Diante de todo o exposto, entende-se que deve se buscar a utilização de uma Hermenêutica Concretizadora que vise, a partir da análise do caso concreto, com suas peculiaridades, concretizar a norma de direito constitucional, qual seja, o direito à Assistência Social, através do Benefício Assistencial.
Torna-se necessária, ainda, a utilização de princípios especificamente constitucionais para sua interpretação, não ficando a interpretação da constituição presa unicamente ao dispositivo legal, coadunando-se com a nova fase pela qual passa a interpretação constitucional, qual seja, o pós-positivismo que se caracteriza cada vez mais pela valorização dos princípios, em detrimento do formalismo positivista.
Dessa forma, a análise do caso concreto a partir de uma Hermenêutica Concretizadora é de fundamental importância, na medida em que concede a possibilidade de averiguação da incapacidade da família em manter o idoso e o deficiente através de outros meios, conferindo a força normativa da Constituição.
[1] MAGALHÃES, José Luiz Quadros; ROBERT, Cinthia. Teoria do Estado, Democracia e Poder Local. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 185.
[2] POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL – PNAS, aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social por intermédio da Resolução n 145, de 15 de outubro de 2004, e publicada no Diário Oficial da União – DOU do dia 28 de outubro de 2004. Brasília: 2005, p. 18.
[3] MORAES, op. cit., 2005, p. 52.
[4] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. 2ª. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 230.
[5] KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 60/61.
[6] OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p. 212.
[7] OLSEN, op. cit., p. 209.
[8] CUNHA JÚNIOR, op. cit., p. 189.
[9] GALINDO, Bruno. Direitos Fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá, 2003, p. 129.
[10] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, trad. G. F. Mendes. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1991 apud GALINDO, Bruno. Direitos Fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá, 2003, p. 144.
[11] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 1988.
[12] BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. A problemática da efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais no plano nacional. In: Direitos Humanos. Vol. I. PIOVESAN, Flávia (coord.) 1ª. ed. Curitiba: Juruá, 2007, p. 273.
Advogado integrante da Equipe Trabalhista da Bulhões e Bulhões Advocacia, localizada na cidade de Maceió/AL, mas com atuação em todo o país.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GAMA, Tiago Rodrigues Leão de Carvalho. Aplicação da hermenêutica concretizadora para efetivação do benefício assistencial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41885/aplicacao-da-hermeneutica-concretizadora-para-efetivacao-do-beneficio-assistencial. Acesso em: 22 nov 2024.
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