1. Introdução
A necessidade de correspondência entre a demanda e a sentença, além de ter previsão expressa em nosso ordenamento jurídico, sempre foi vista como um verdadeiro dogma, cuja inobservância causaria a nulidade do julgado. Assim, o presente artigo pretende, de maneira breve, verificar como o princípio da congruência vem sendo aplicado nas lides previdenciárias.
2. Relativização do Princípio da Congruência
Na linha do disposto nos artigos 128, 282, IV; 286, caput; e 460, caput, todos do CPC, ao proferir sentença, o juiz deve ficar adstrito ao que foi pedido:
Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.
Art. 282. A petição inicial indicará:
IV - o pedido, com as suas especificações;
Art. 286. O pedido deve ser certo ou determinado.
Art. 460. É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que Ihe foi demandado.
Conforme ensina Ovídio Baptista da Silva[1],
Se a atividade jurisdicional só se desenvolve quando provocada, se nosso direito não conhece casos de proteção estatal, por meio da jurisdição, aos eventuais direitos individuais senão quando o próprio titular a requeira, a demanda passa a ser o parâmetro ou a baliza que define e limita a controvérsia sobre a qual o juiz pode e deve pronunciar-se. Ele terá de decidir a controvérsia (lide) que lhe é apresentada, respondendo ao pedido de tutela jurisdicional contido na demanda. A tal obrigou-se o Estado a partir do momento em que, proibindo a realização privada do direito, avocou a si o monopólio da jurisdição.
Todavia, se ele tem o dever institucional de decidir a lide, somente poderá decidir aquela lide que lhe foi apresentada pelos litigantes, não podendo ampliá-la de modo que a sentença venha a decidir mais do que fora pedido pelas partes.
Como se vê, a priori, não há qualquer disposição autorizando que tal princípio seja relativizado nas lides previdenciárias.
Por tal razão, ainda encontram-se alguns julgados mais antigos que o aplicavam integralmente:
PREVIDENCIÁRIO - APOSENTADORIA POR INVALIDEZ - AUXÍLIO-DOENÇA - PROCESSUAL CIVIL - ALEGAÇÃO DE SENTENÇA EXTRAPETITA.
I- Se o autor requereu aposentadoria por invalidez e esta foi negada, não pode o juiz substituí-la por auxílio-doença não requerido.
II- A jurisprudência da Corte tem precedente no seguinte sentido: a) "Não sendo a incapacidade laborativa total e irreversível, não tem o segurado direito a aposentadoria por invalidez, mas aoauxílio-doença, devido enquanto perdurar seu estado de morbidez. b) Contudo, não se lhe pode deferir tal benefício, posto que não formulado na inicial". (...)
IV - Apelo provido para decotar o auxílio-doença contido na condenação.
(TRF - PRIMEIRA REGIÃO - APELAÇÃO CIVEL – 01000309113 - Processo: 199701000309113 UF: MG Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA - Data da decisão: 23/06/1998 Documento: TRF100070276 Fonte DJ DATA: 30/11/1998 PAGINA: 115).
PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. CONCESSÃO DE AUXÍLIO-DOENÇA. JULGAMENTO EXTRA PETITA. OCORRÊNCIA. SENTENÇA ANULADA ARTS. 128 E 460 DO CPC.
1. Tendo o autor formulado pedido de concessão de aposentadoria por invalidez e a r. sentença ter deferido o benefício de auxílio-doença, pleito não contido na inicial, a hipótese é de julgamento extra petita.
2. Merece ser anulada a r. sentença que decidiu sobre questão diversa da deduzida na inicial, deixando de examinar o pedido de aposentadoria por invalidez, tal como contido na exordial.
3. Apelação a que se dá provimento para anular, nos termos dos arts. 128 e 460, do CPC, a r. sentença, determinando o retorno dos autos à Vara de origem, a fim de ser apreciado o pedido formulado na inicial.
(TRF - PRIMEIRA REGIÃO - APELAÇÃO CIVEL – 01000557960 - Processo: 199901000557960 UF: MG Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA SUPLEMENTAR
Data da decisão: 30/09/2003 Documento: TRF100157485 Fonte DJ DATA: 23/10/2003 PAGINA: 102).
Ocorre que esse não é o entendimento jurisprudencial dominante atualmente. Com efeito, há tempos o STJ vem decidindo que, nas ações previdenciárias, o juiz pode conceder ao autor mais do que foi pedido ou, até mesmo, benefício diverso do requerido na inicial.
Nesse sentido:
PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. CONVERSÃO DE APOSENTADORIA ESPECIAL EM PENSÃO POR MORTE. ATO DE CONVERSÃO DEFERIDO NO PROCESSO DE EXECUÇÃO. ÓBITO DO SEGURADO APÓS PROLAÇÃO DA SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. JULGAMENTO EXTRA OU ULTRA PETITA. NÃO CONFIGURAÇÃO. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E NÃO PROVIDO.
1. O STJ tem entendimento consolidado de que, em matéria previdenciária, deve flexibilizar-se a análise do pedido contido na petição inicial, não entendendo como julgamento extra ou ultra petita a concessão de benefício diverso do requerido na inicial, desde que o autor preencha os requisitos legais do benefício deferido.
2. Reconhecido o direito à aposentadoria especial ao segurado do INSS, que vem a falecer no curso do processo, mostra-se viável a conversão do benefício em pensão por morte, a ser paga a dependente do de cujus, na fase de cumprimento de sentença. Assim, não está caracterizada a violação dos artigos 128 e 468 do CPC.
3. Recurso especial conhecido e não provido.
(REsp 1426034/AL, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/06/2014, DJe 11/06/2014)
PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. AÇÃO REQUERENDO CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DE APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. ACÓRDÃO QUE CONCEDE APOSENTADORIA POR IDADE. GARANTIA DE MELHOR BENEFÍCIO AO SEGURADO. INOCORRÊNCIA DE JULGAMENTO EXTRA PETITA. AGRAVO REGIMENTAL DO INSS DESPROVIDO.
1. O Direito Previdenciário não deverá ser interpretado como uma relação de Direito Civil ou Direito Administrativo no rigor dos termos, mas sim como fórmula ou tutela ao hipossuficiente, ao carecido, ao excluído. Este deve, também, ser um dos nortes da jurisisdição previdenciária.
2. É firme a orientação desta Corte de que não constitui julgamento extra ou ultra petita a decisão que, verificando a inobservância dos pressupostos para concessão do benefício pleiteado na inicial, concede benefício diverso por entender preenchidos seus requisitos, tendo em vista a relevância da questão social que envolve a matéria. Precedentes: 3. Agravo Regimental do INSS desprovido.
(AgRg no REsp 1320249/RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/11/2013, DJe 02/12/2013)
A razão para a flexibilização de tal princípio nos pleitos previdenciários estaria no fato de que em tais processos seria necessário garantir o valor social de proteção ao Segurado da Previdência Social, de modo que a relativização seria possível para a tutela do hipossuficiente.
Não obstante, essa exegese não está imune de críticas, na medida em que as lides previdenciárias, de um modo geral, são interpostas por meio de advogados, os quais possuem conhecimento jurídico e o dever de orientar seus clientes, ajuizando ações com demandas adequadas.
Além disso, pessoas menos favorecidas também litigam em outros ramos do direito, os quais, muitas vezes, possuem igual valor social, sem que se cogite na mitigação do princípio da congruência. Por outro lado, a previdência social não se destina apenas a pessoas em situação de vulnerabilidade, na medida em que o regime geral de previdência social abrange todos os trabalhadores da iniciativa privada, inclusive os de salários elevados e ótimas condições sociais. Nesse caso, igualmente se admite a possibilidade inobservância de congruência entra o pedido e o deferido?
Nesse contexto, a atual jurisprudência parece mais causar insegurança jurídica do que resolver o problema dos segurados da previdência, pois ao se relativizar o princípio da congruência se está abrindo espaço para a concessão de benefícios, os quais sequer foram requeridos administrativamente (o que já seria um óbice para o julgamento de mérito) e sem proporcionar à autarquia previdenciária o direito da ampla defesa e do contraditório.
Tal fato, acrescido da circunstância de que muitas ações previdenciárias tramitam nos Juizados Especiais Federais, os quais possuem restrições recursais, pode dar ensejo à consolidação de situações indevidas, causando prejuízos não só ao INSS, mas a toda sociedade, já que os benefícios previdenciários são pagos com verbas públicas, motivo suficiente para se buscar uma exegese que vise assegurar o interesse público.
3. Considerações Finais
A jurisprudência consolidou o entendimento de que nas lides previdenciárias não é necessário existir correspondência entre a demanda e a sentença, com fundamento na tutela do hipossuficiente, podendo o juiz conceder ao segurado benefício não requerido, ainda que com ofensa ao direito de defesa do INSS.
No entanto, tem-se esquecido que os benefícios previdenciários são pagos com verbas públicas, obtidas através das contribuições de todos os segurados, razão suficiente para se chegar à conclusão de que o interesse público deveria prevalecer sobre o privado.
[1] SILVA. Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil, Volume 1: processo de conhecimento. 7ª ed., rev. e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 211-212.
Procuradora Federal desde novembro 2007. Chefe de Divisão de Gerenciamento da Dívida Ativa da Coordenação-Geral de Cobrança e Recuperação de Créditos da Procuradoria-Geral Federal de 2009 a 2010. Ex-Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em Direto Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIZZI, Ângela Onzi. Princípio da Congruência nas Lides Previdenciárias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 dez 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42067/principio-da-congruencia-nas-lides-previdenciarias. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
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