Resumo: Necessidade de uma perspectiva constitucional para se interpretar a cláusula geral de boa-fé objetiva presente no artigo 422 do Código Civil de 2002. A cláusula geral não possui apenas um objetivo pré-definido, mas indica uma medida de comportamento que deve ser concretizada de acordo com as necessidades da sociedade. Estas também não se confundem com os princípios jurídicos, pois ao contrário destes, as cláusulas necessitam de uma positivação para serem válidas, sendo muitas vezes a cláusula geral o instrumento de concretização dos princípios jurídicos.Portanto, para que o esforço legislativo que deu origem ao Código Civil de 2002 não seja em vão e para que esta cláusula não seja mais uma letra morta em nossa história, é imprescindível que o intérprete promova uma conexão entre o Código Civil e a Constituição.
Palavras-chaves: Cláusulas gerais. Boa-fé objetiva. Código Civil. Constituição Federal.
Introdução
Esse artigo trata da necessidade de uma perspectiva constitucional para se interpretar a cláusula geral de boa-fé objetiva presente no artigo 422 do Código Civil de 2002.
As Cláusulas Gerais são o ponto de convergência para a tendência de abertura e mobilidade do sistema jurídico. Nelas o juiz encontra a possibilidade de exercer uma função criadora e passa a vigorar no sistema jurídico uma casuística jurisprudencial. Tais cláusulas têm na construção de sua espécie termos vagos e imprecisos, possibilitando quem julga aplicar o direito no caso concreto. Sendo assim, trata-se de uma norma incompleta.
Para melhor compreender tais cláusulas é válida a comparação entre outros institutos semelhantes. Como por exemplo os conceitos indeterminados, nos quais cabe ao juiz apenas identificar se o fato concreto reporta-se ao elemento vago indicado na espécie normativa ou não. Já nas cláusulas gerais, o juiz deve concorrer com a formação de uma norma jurídica, e não apenas identificar ou não a correspondência do elemento vago.
A cláusula geral não possui apenas um objetivo pré-definido, mas indica uma medida de comportamento que deve ser concretizada de acordo com as necessidades da sociedade. Estas também não se confundem com os princípios jurídicos, pois ao contrário destes, as cláusulas necessitam de uma positivação para serem válidas, sendo muitas vezes a cláusula geral o instrumento de concretização dos princípios jurídicos.
Outro aspecto importante ao se tratar de cláusula geral no direito privado é a relação entre o seu conteúdo e o texto constitucional, uma vez que o Código Civil e Constituição sempre tiveram um traçado paralelo, incidindo cada qual em um conjunto próprio de relações jurídicas.
Esse distanciamento é devido principalmente a concepção dicotômica que separava o direito privado do direito público. Enquanto o Código regulava a vida privada de cada indivíduo, à Constituição ordenava as relações públicas, protegendo o indivíduo do poder de império do Estado.
A técnica legislativa das cláusulas Gerais
As Cláusulas Gerais são o ponto de convergência para essa nova tendência de abertura e mobilidade do sistema jurídico. Nelas o juiz encontra a possibilidade de exercer uma função criadora e passa a vigorar no sistema jurídico uma casuística jurisprudencial. As fórmulas compreendidas em espécies abertas são uma reação ao positivismo jurídico e sua pretensão de completude e neutralidade. Agora o intérprete empreende uma atividade valorativa com a finalidade de transpor ao ordenamento jurídico novos valores.
Assim afirma Judith Martins Costa:
As normas cujo grau de vagueza é mínimo implicam que ao juiz seja dado tão-somente o poder de estabelecer o significado do enunciado normativo; já no que respeita às normas formadas de cláusula geral, compete ao juiz um poder extraordinariamente mais amplo, pois não estará tão-somente estabelecendo o significado do enunciado normativo, mas, por igual, criando direito, ao completar a fattispecie e ao determinar ou graduar as conseqüências.[1]
Portanto, são empregados na construção da cláusulas geraistermos vagos e imprecisos, possibilitando quem julga aplicar o direito no caso concreto, sendo assim uma norma incompleta.
A principal vantagem desta técnica legislativa é desempenhar as funções de abertura – integrando o sistema jurídico de acordo com as mudanças sociais – e mobilidade – realizando uma adequação valorativa. Apesar de apresentar todas estas vantagens em relação à casuística, as normas gerais necessitam de um método capaz de responder à “problemática valorativa”.[2]
Cláusulas gerais e o direito brasileiro: o sentido constitucional da cláusula geral de boa-fé objetiva no Código Civil
Apesar de fracassarem no passado, as cláusulas gerais têm sido empregadas com sucesso nas legislações mais recentes do direito brasileiro. O Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Cidade são exemplos de uma utilização positiva desta técnica legislativa. A diferença entre estas normas e o Código Comercial brasileiro de 1850 é o fato de possuírem normas descritivas de valores.
O novo Código Civil brasileiro, inspirado pelas codificações anteriores aos anos 70, apesar de utilizar-se de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, não liga tais normas a qualquer referência valorativa. Vejamos o exemplo da cláusula geral de boa-fé nos contratos:
“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”.
Se aplicada como expressa no artigo 422, essa norma pode vir a ser fruto do arbítrio do poder discricionário do juiz que confiaria exclusivamente em sua percepção subjetiva a tarefa da concretização normativa, gerando insegurança jurídica. Ou ainda pode simplesmente ficar esquecida por 150 anos como a cláusula geral do Código Comercial brasileiro, que assim como nosso Código Civil de 2002 não apresentava qualquer ponto de referência normativa:
“Art. 131 - Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases:
1 - a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras;”
Portanto, para que o esforço legislativo que deu origem ao Código Civil de 2002 não seja em vão e para que esta cláusula não seja mais uma letra morta em nossa história, é imprescindível que o intérprete promova uma conexão entre o Código Civil e a Constituição.
Como bem exposto por Gustavo Tepedino: “As cláusulas gerais do novo Código Civil poderão representar uma alteração relevante no panorama do direito privado brasileiro desde que lidas e aplicadas segundo a lógica da solidariedade constitucional e da técnica interpretativa contemporânea.”[3]
Se aplicada a partir dos princípios constitucionais informadores da atividade econômica, podemos vislumbrar o sentido transformador da cláusula geral da boa-fé objetiva na interpretação dos negócios jurídicos.
Portanto, a interpretação de um contrato à luz da cláusula geral de boa-fé objetiva nunca pode estar dissociada dos quatro princípios fundamentais da atividade econômica:
a) “A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF)”;
b) “O valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF)”;
c) “A solidariedade social ( art. 3º, I, da CF)”;
d) “A igualdade substancial (art. 3º, III, da CF)”;
Os dois primeiros constam na Constituição como fundamentos da República, enquanto os dois últimos são objetivos da República.[4]
Todos os artigos mencionados estão vinculados ao artigo 170 da Constituição Federal, segundo o qual “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego (...)”.
Dessa maneira, seja como princípio interpretativo (art. 113, CC), seja como princípio fundamental do regime contratual (art. 422, CC) a aplicação dessa cláusula geral de boa-fé estará sempre vinculada ao dever de interpretar o negócio de modo a preservar o conteúdo econômico e social perseguido pelas partes. Daí decorrem os deveres anexos e recíprocos de lealdade, informação e transparência, nas fases pré-negocial, negocial e pós-negocial.
Considerações finais
É imprescindível a atenta atuação do interprete para que as poucas inovações produzidas no confuso e extenso processo legislativo do Código Civil de 2002, não sejam desperdiçadas ou mal utilizadas. Somente sobre uma perspectiva civil-constitucional o Código Civil poderá se adaptar ao ordenamento jurídico brasileiro e suas boas ideias, como as cláusulas gerais de boa-fé, poderão ser implementadas.
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[1]MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 1999, p. 330.
[2] AMADO, Juan Antonio Garcia. Teorias de latopica jurídica. Madrid: Civitas, 1988, p.14.
[3] TEPEDINO, Gustavo. A parte geral no novo Código Civil: Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar. 2002, p.20.
[4]NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 31.
Procuradora Federal. Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARTURI, Claudia Adriele. O sentido constitucional da cláusula geral de boa-fé objetiva no Código Civil de 2002 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42085/o-sentido-constitucional-da-clausula-geral-de-boa-fe-objetiva-no-codigo-civil-de-2002. Acesso em: 22 nov 2024.
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