Resumo: Este artigo tem por objeto analisar situação corrente na Administração configurada na constatação de pagamento indevido de retribuições a servidor público frente ao percurso de longo período de tempo contado da percepção irregular.
1. Introdução
Com esse breve estudo serão analisadas as situações ocorridas no cotidiano administrativo onde há verificação de pagamento indevido a servidores públicos, tendo essa constatação, muitas vezes, sendo originária a partir da iniciativa do próprio agente público. Será visto a possibilidade ou não de exercício do poder de anulação do ato pela Administração diante do decurso de tempo.
2. Desenvolvimento
Há situações no seio da Administração em que a constatação do pagamento indevido dá-se, tão-somente, a partir da iniciativa do servidor público. São hipóteses em que, ausente a provocação do agente público, quiçá a Administração não se atentaria para o não cabimento da percepção de vantagens pecuniárias. São casos, portanto, de falha, inércia e inação administrativa.
A Administração tem o dever de rever seus atos, a fim de restaurá-los à situação de conformidade. Trata-se, pois, da aplicação do princípio da autotutela, consagrado nos Enunciados das Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, respectivamente:
A Administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.
A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
A Lei nº 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, estabelece em seu art. 54 que o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis pra os destinatários decai em 5 (cinco) anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada a má-fé:
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.
§ 2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.
Conquanto não se negue à Administração o dever de anular os próprios atos, quando eivados de ilegalidade, ou revogá-los por motivo de conveniência e oportunidade, o fato é que o exercício dessa faculdade sofre limites e restrições no interesse da estabilidade das relações jurídicas e no respeito aos direitos adquiridos pelos particulares afetados pelas atividades do Poder Público. Em outras palavras, a possibilidade da Administração rever o ato de administrativo tem limitações temporais.
Assim, decorridos 5 (cinco) anos, não pode mais a Administração Pública anular ato administrativo gerador de efeitos no campo de interesses individuais, por isso que se opera a decadência.[1]
A citada norma positivada no art. 54 da Lei nº 9.784/1999, resultou daquilo que a doutrina e a jurisprudência já consideravam latente no ordenamento jurídico. O sentido da norma é o de que a inércia da Administração Pública consolida seus atos, bem como seus efeitos, ainda quando possam ser considerados ilegais, já que o administrado não pode ficar sujeito indefinidamente ao poder de autotutela do Estado, sob pena de desestabilizar o princípio da segurança jurídica, da boa-fé e o da confiança.
Com efeito, um pagamento efetuado mensalmente pela Administração, durante longo período, consolida-se com o decorrer do tempo.
O § 1º do citado art. 54 estabelece que em se tratando de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência conta-se da percepção do primeiro pagamento.
Operada a decadência, não resta outra alternativa, senão manter o pagamento, não podendo a Administração rever seu ato. Dessa forma, caso já tenha se passado, por exemplo, seis anos do recebimento indevido, a Administração a Agência não poderá obter a suspensão e a restituição de valor. Esse foi o posicionamento adotado pelo Ministro Gilmar Mendes em caso semelhante:
AI 595723 / MG - MINAS GERAIS - AGRAVO DE INSTRUMENTO - Relator(a): Min. GILMAR MENDES Julgamento: 16/03/2007
DECISÃO: Trata-se de agravo contra decisão que negou processamento a recurso extraordinário fundado no art. 102, III, "a", da Constituição Federal, interposto em face de acórdão assim ementado (fl. 109): "EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA PAGAMENTO INDEVIDO DE GRATIFICAÇÃO A SERVIDOR PÚBLICO - DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO - VANTAGEM INTEGRANTE DOS PROVENTOS HÁ MAIS DE CINCO ANOS - DECADÊNCIA. Nos termos da lei estadual (art. 13 da Lei no 11.050 de 1993), não se exige a instauração de prévio procedimento para que a Administração efetive o desconto de parcela paga a servidor público indevidamente ou a maior. Para este, a oportunidade de defesa ou de impugnação surge neste momento, seja perante a Administração, seja perante o Judiciário (Precedentes deste Tribunal: Apelação Cível 312.980-6, j. 05/05/2003, {...}. Entretanto, e apesar disso, se consumado, há mais de cinco (5) anos, o ato que deferiu à impetrante o benefício da gratificação por curso de pós-graduação, opera-se a decadência, não restando outra alternativa à autoridade apontada coatora senão manter o pagamento como anteriormente concedido, não podendo a Administração Pública rever tal ato (art. 54 da Lei no 9.784/99, repetido na Lei Estadual no 14.184, de 31/01/2002)." No voto condutor do acórdão recorrido restou assentado (fl. 118): "Através de ato da Diretoria de Aposentadoria e Proventos da Secretaria de Estado da Educação, publicado em 21/10/95, foi concedida à impetrante a gratificação de 10% sobre o vencimento do cargo efetivo, a partir de 06/04/93, por curso de pós-graduação (fls. 14). O ato que tornou sem efeito a referida gratificação, foi publicado em 16/03/2001 (fls. 16)." Alega-se violação ao art. 37, caput (princípios da legalidade e moralidade administrativa), da Carta Magna. Sustenta-se que a Administração Pública, a qualquer tempo, pode rever os seus atos quando eivados de qualquer ilegalidade. Na hipótese, a matéria evoca, inevitavelmente, o princípio da segurança jurídica. A Administração busca a suspensão do pagamento de parcela remuneratória paga durante quase 8 anos e a restituição dos valores recebidos. Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material. Esse princípio foi consagrado na Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, tanto em seu artigo 2o, que estabelece que a Administração Pública obedecerá ao princípio da segurança jurídica, quanto em seu artigo 54, que fixa o prazo decadencial de cinco anos, contados da data em que foram praticados os atos administrativos, para que a Administração possa anulá-los. No mesmo sentido da legislação federal foi editada a Lei Estadual no 14.184, de 31 de janeiro de 2002, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública do Estado de Minas Gerais, que em seus artigos 64 e 65 estabelecem: "Art. 64. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade e pode revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos. Art. 65. O dever da Administração de anular ato de que decorram efeitos favoráveis para o destinatário decai em cinco anos, contados da data em que foi praticado, salvo comprovada ma-fé. § 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento. § 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato." Em diversas oportunidades esta Corte manifestou-se pela aplicação desse princípio em atos administrativos inválidos, como subprincípio do Estado de Direito, tal como nos julgamentos do MS 24.268, DJ 17.9.2004 e do MS 22.357, DJ 5.11.204, ambos por mim relatados. No caso em apreço, cabível a aplicação do princípio da segurança jurídica, pois o direito da Administração de anular seu ato decaiu em 5 anos, não podendo o Estado alegar que "é facultado à administração decretar a invalidade de seus próprios atos quando eivados de vícios ou de revogá-los por razão de oportunidade e conveniência". Constata-se também, na hipótese, a boa fé da agravada. Assim, nego seguimento ao agravo (art. 557, caput, do CPC). Publique-se. Brasília, 16 de março de 2007. Ministro GILMAR MENDES Relator.
Além disso, firmou-se jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça no sentido de que supressão de vantagem refere-se ao próprio fundo de direito, sendo ato único de efeitos permanentes, não se renovando mês a mês.[2]
Em relação à restituição ao Erário, há o entendimento assente de que o pagamento indevido efetivado em favor de servidor público, em decorrência de interpretação equivocada ou de má aplicação da lei por parte da Administração e havendo o beneficiado recebido os valores de boa-fé, mostra-se indevido o desconto de tais valores.[3] O entendimento foi firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, a partir do julgamento do REsp. nº 488.905/RS, Quinta Turma.
A fim de melhor elucidação do tema, o precedente dessa Corte de Justiça merece transcrição, em razão de abarcar os pontos até aqui delineados:
MS 9112 / DF – MANDADO DE SEGURANÇA CORTE ESPECIAL DJ 14/11/2005
ADMINISTRATIVO – ATO ADMINISTRATIVO: REVOGAÇÃO – DECADÊNCIA – LEI 9.784/99 – VANTAGEM FUNCIONAL – DIREITO ADQUIRIDO – DEVOLUÇÃO DE VALORES.
Até o advento da Lei 9.784/99, a Administração podia revogar a qualquer tempo os seus próprios atos, quando eivados de vícios, na dicção das Súmulas 346 e 473/STF.
A Lei 9.784/99, ao disciplinar o processo administrativo, estabeleceu o prazo de cinco anos para que pudesse a Administração revogar os seus atos (art. 54).
A vigência do dispositivo, dentro da lógica interpretativa, tem início a partir da publicação da lei, não sendo possível retroagir a norma para limitar a Administração em relação ao passado.
Ilegalidade do ato administrativo que contemplou a impetrante com vantagem funcional derivada de transformação do cargo efetivo em comissão, após a aposentadoria da servidora.
Dispensada a restituição dos valores em razão da boa-fé da servidora no recebimento das parcelas. Segurança concedida em parte.
3. Conclusão
Conclui-se, a partir deste breve arrazoado, que em passando mais de cinco anos de recebimento indevido de vantagens por parte de servidor público, tal ato não é passível de anulação em razão da decadência. A restituição ao erário é indevida, tendo em vista a compreensão da jurisprudência.
4. Referências Bibliográficas
MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 – Interpretada e Comentada. Editora Impetus. 6ª edição, 2012.
NOHARA, Irene Patrícia, MARRARA, Thiago. Processo Administrativo: Lei nº 9.784/99 Comentada. Atlas. 1ª edição, 2009.
[1] Resp 219.883/SP, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, DJ 04/08/2003.
[2] EREsp 194.266/RS, 3ª Seção, DJ 16/12/2002; RMS 16.295/GO, 5ª Turma, DJ de 28/03/2005.
[3] REsp 937708 / RS, 5ª Turma, DJ 01/12/2008; REsp 908474 / MT, 6ª Turma, DJ 29/10/2007; AgRg nos EDcl no Ag 785552 / RS, 5ª Turma, DJ 05/02/2007
Procuradora Federal em Brasília - DF
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Teresa Resende. Da percepção indevida de vantagens por servidor público e da anulação pela Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42203/da-percepcao-indevida-de-vantagens-por-servidor-publico-e-da-anulacao-pela-administracao-publica. Acesso em: 22 nov 2024.
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