Hipoteca é um direito real de garantia por meio do qual um bem imóvel[1] assegura o pagamento de uma dívida. Por se tratar de um direito real, a hipoteca é oponível erga omnes e deve ser registrada no cartório de registro de imóveis, na matrícula do bem em questão.
A razão para tanto está no fato de que, ao contrário do que se passa com os direitos obrigacionais, que vinculam apenas as partes, os direitos reais são exercidos contra todos (oponibilidade erga omnes) e, para que isso possa ocorrer, é indispensável que a existência do direito real em questão seja dada a conhecimento de toda a sociedade.
Todavia, é fundamental esclarecer que a necessidade de cognoscibilidade de todas as relações jurídicas que devam produzir efeitos perante terceiros faz com que, a cada dia, valorize-se o registro imobiliário, como fonte primacial de publicidade, e conseqüentemente, de segurança jurídica das transações econômicas e prestígio à boa-fé de terceiros que desejam conhecer a existência de direitos. Só cogitaremos de oponibilidade erga omnes quando o ordenamento jurídico deferir em prol da coletividade um sistema organizado de registro, hábil a gerar uma publicidade infinitamente mais eficaz do que qualquer ato de posse ou tradição de bens. (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, 2014).
Conforme lição de Luiz Guilherme Loureiro, o surgimento do registro de imóveis está intimamente ligado à necessidade de se dar publicidade às hipotecas.
Historicamente, a finalidade precípua do Registro de Imóveis foi garantir a publicidade das hipotecas. Em um país em via de industrialização, era preciso estimular o crédito e, consequentemente, instituir um sistema de garantias reais estável e seguro. Daí a necessidade de conferir ampla publicidade às hipotecas, de forma que os credores hipotecários tivessem certeza da existência, validade e eficácia de seus direitos reais de garantia. (LOUREIRO, 2010).
Pelo sistema inaugurado pelo Código Civil de 1916, não apenas os atos entre vivos de transferência de direitos reais deveriam ser obrigatoriamente transcritos no registro de imóveis (como era no sistema da Lei 3.272, de 1885 e Decretos 169-A, de 1890 e 370 e 544, de 1890), mas também as decisões em inventários e partilha (transferências causa mortis) e sentença declaratória de usucapião.
Nesses dois casos, a transferência de domínio não decorreria do registro, mas pelo decurso de prazo da usucapião, ou imediatamente quando da abertura da sucessão, por força do direito de saisine. A imposição de que também essas formas de transmissão da propriedade fossem submetidas ao registro de imóveis se justifica para assegurar a continuidade dos registros, estabelecendo-se a origem histórica do domínio, tornando-o certo e seguro. Sem essa providência, tampouco seria possível ao novo proprietário alienar ou gravar o seu bem. Em síntese, a transcrição dos atos causa mortis e da aquisição pela usucapião teriam a função de tornar pública a nova realidade jurídica do bem (Loureiro, 2010).
O sistema de transcrição vigorou até o advento da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), que extinguiu a transcrição e concebeu um sistema de registos pelo qual cada imóvel é matriculado em uma folha do livro de registros e nesta folha são registrados os atos que a lei considera relevantes relativamente a este imóvel. Assim, o exame da matrícula permite conhecer toda a história do bem: a cadeia dominial e a existência de ônus sobre o imóvel, caso da hipoteca.
A publicidade da hipoteca é uma exigência natural da oponibilidade erga omnes dos direitos reais mas não se limita a esta finalidade. Dada a possibilidade de o mesmo bem ser dado em garantia hipotecária a mais de um credor, a publicidade é ademais relevante para se estabelecer qual dívida terá prioridade caso o bem venha a ser excutido.
Demais disso, é apenas com o registro que a hipoteca é constituída como direito real e subsistirá enquanto não cancelado seu registro. Há que se registrar, todavia, que embora o registro permaneça válido enquanto perdurar a obrigação, a especialização da hipoteca deve ser renovada após 30 anos, sob pena de perempção.
Ao lado da publicidade, a prioridade é também princípio do direito registral imobiliário, positivado no artigo 186 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) e novamente no artigo 1.493 do Código Civil:
Art. 186 - O número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente. (Renumerado do art. 187 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
Art. 1.493. Os registros e averbações seguirão a ordem em que forem requeridas, verificando-se ela pela da sua numeração sucessiva no protocolo.
Parágrafo único. O número de ordem determina a prioridade, e esta a preferência entre as hipotecas.
Pelo princípio da prioridade, caso sobre um mesmo imóvel concorram mais de um direito real, eles não ocuparão o mesmo posto. Ao contrário, se classificarão numa relação de precedência estabelecida pela ordem cronológica de seu surgimento. Prior tempore potior jure.
Deste modo, em princípio o título apresentado em primeiro lugar será registrado primeiramente, de forma que terá prioridade na aquisição do direito real respectivo.
Porém, o princípio da prioridade é limitado temporalmente e comporta uma exceção, no caso da hipoteca.
Quando um determinado título é apresentado para fins de registro, ele é protocolado e recebe um número de ordem, e os registros são realizados, no prazo legal, observada esta ordem.
Art. 188 - Protocolizado o título, proceder-se-á ao registro, dentro do prazo de 30 (trinta) dias, salvo nos casos previstos nos artigos seguintes.
Todavia, é possível que, o após o protocolo, a análise do título pelo oficial do registro de imóveis revele que ele padeça de algum vício sanável. Nesse caso, todas as exigências para o aperfeiçoamento do título serão feitas por escrito ao apresentante, o qual terá o prazo de 30 dias para atendimento da exigência. Não sendo ela cumprida, a prioridade estabelecida pela prenotação será perdida e, caso outro título que estabeleça um direito concorrente seja apresentado, este poderá vir a ser registrado antes, adquirindo, pois, o direito real.
Art. 205 - Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 30 (trinta) dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais. (Renumerado do art 206 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
Parágrafo único. Nos procedimentos de regularização fundiária de interesse social, os efeitos da prenotação cessarão decorridos 60 (sessenta) dias de seu lançamento no protocolo. (Redação dada pela Lei nº 12.424, de 2011)
Portanto, a preferência estabelecida pela prenotação é limitada no tempo, e caso um título primeiramente protocolado tenha vícios que não venham a ser sanados no prazo legal, é possível que um título contraditório prenotado horas depois, porém sem vícios, seja registrado primeiramente, garantindo o direito ao seu titular e eventualmente impedindo o registro do direito estabelecido no título defeituoso, caso os direitos sejam excludentes.
Dada a importância da ordem de protocolo para a aquisição de direitos reais, a lei estabeleceu diversas regras a este respeito:
Art. 190 - Não serão registrados, no mesmo dia, títulos pelos quais se constituam direitos reais contraditórios sobre o mesmo imóvel. (Renumerado do art. 191 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
Art. 191 - Prevalecerão, para efeito de prioridade de registro, quando apresentados no mesmo dia, os títulos prenotados no Protocolo sob número de ordem mais baixo, protelando-se o registro dos apresentados posteriormente, pelo prazo correspondente a, pelo menos, um dia útil. (Renumerado do art. 192 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
Art. 192 - O disposto nos arts. 190 e 191 não se aplica às escrituras públicas, da mesma data e apresentadas no mesmo dia, que determinem, taxativamente, a hora da sua lavratura, prevalecendo, para efeito de prioridade, a que foi lavrada em primeiro lugar. (Renumerado do artigo 192 parágrafo único pela Lei nº 6.216, de 1975).
Direitos reais contraditórios são aqueles relativos ao mesmo imóvel. É possível que esses direitos sejam excludentes (caso de duas escrituras de venda do mesmo imóvel a pessoas distintas e não se tratando de condomínio) ou não excludentes.
Exemplo de direitos contraditórios não excludentes é o estabelecimento de mais de uma hipoteca sobre o mesmo bem imóvel. Esta situação não apenas é expressamente admitida pelo artigo 1.476 do Código Civil como regulada pelo artigo 1.495, o qual excepciona o princípio da prioridade. Vejamos:
Art. 1.476. O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor.
(...)
Art. 1.494. Não se registrarão no mesmo dia duas hipotecas, ou uma hipoteca e outro direito real, sobre o mesmo imóvel, em favor de pessoas diversas, salvo se as escrituras, do mesmo dia, indicarem a hora em que foram lavradas.
Art. 1.495. Quando se apresentar ao oficial do registro título de hipoteca que mencione a constituição de anterior, não registrada, sobrestará ele na inscrição da nova, depois de a prenotar, até trinta dias, aguardando que o interessado inscreva a precedente; esgotado o prazo, sem que se requeira a inscrição desta, a hipoteca ulterior será registrada e obterá preferência.
Doutrinariamente, entende-se que a primeira hipoteca concedida é a de primeiro grau, e as hipotecas seguintes são consideradas de segundo ou terceiro graus, assim sucessivamente.
O artigo 1.494 reitera o quanto disposto nos artigos 190 a 192 da Lei de Registros Públicos.
Já o artigo 1.495 cuida da hipótese de uma hipoteca de segundo grau mencionar a existência da hipoteca anterior, ainda não foi registrada e tampouco prenotada.Esta situação já era, ademais, prevista pelo artigo 189 da Lei de Registros Públicos:
Art. 189 - Apresentado título de segunda hipoteca, com referência expressa à existência de outra anterior, o oficial, depois de prenotá-lo, aguardará durante 30 (trinta) dias que os interessados na primeira promovam a inscrição. Esgotado esse prazo, que correrá da data da prenotação, sem que seja apresentado o título anterior, o segundo será inscrito e obterá preferência sobre aquele. (Renumerado do art. 190 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
A rigor é dever do proprietário que oferece o bem em hipoteca mais de uma vez informar ao seu credor de que o bem já se encontra hipotecado, sob pena de incorrer no crime de alienação fraudulenta da própria coisa, modalidade de estelionato prevista no artigo 171, § 2o, II do Código Penal. Daí a existência de um artigo do Código Civil contemplando justamente uma segunda hipoteca que é concedida informando a existência de hipoteca anterior.
Estelionato
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.
§ 1º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz pode aplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2º.
§ 2º - Nas mesmas penas incorre quem:
(...)
Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria
II - vende, permuta, dá em pagamento ou em garantia coisa própria inalienável, gravada de ônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender a terceiro, mediante pagamento em prestações, silenciando sobre qualquer dessas circunstâncias;
Pelo princípio da prioridade, caso o detentor do título que constitui a hipoteca de segundo grau o protocolasse primeiramente, o seu título seria registrado com precedência e sua hipoteca lograria obter a preferência. Ele se tornaria o credor hipotecário principal e em caso de alienação do bem o seu crédito seria integralmente satisfeito primeiramente e apenas eventual saldo atenderia ao crédito dos demais credores (credores sub-hipotecários). Ademais, o bem somente poderia ser executado após o vencimento da primeira hipoteca registrada, ainda que as demais hipotecas, tivessem vencimento anterior, salvo insolvência do devedor. Mas não é considerada insolvência para este fim o não pagamento das hipotecas de segundo grau em diante. (artigo 1.477 do Código Civil).
Porém, não é essa a solução desejada pelo Direito. Oreferido artigo 1.495 vem precisamente excepcionar este princípio, estabelecendo um prazo de 30 dias para que o titular da hipoteca concedida primeiramente a protocole e assegure a preferência que seu título lhe conferia. Caso isto ocorra, a hipoteca de primeiro grau será registrada antes, confirmando seu titular o credor hipotecário principal, e a segunda hipoteca, concedida posteriormente, muito embora tenha sido prenotada antes, permanecerá como uma sub-hipoteca.
Por outro lado, caso decorrido o trintídio legal a primeira hipoteca não seja protocolada, a segunda hipoteca será registrada, fazendo surgir para seu beneficiário o direito real com preferência sobre a hipoteca anterior, que falhou em ser registrada. Nesse caso, o credor da segunda hipoteca tornar-se-á o credor principal com as vantagens que a lei lhe confere.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CENEVIVA, WALTER. Lei dos Registros Públicos Comentada. 20a ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. 10a ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014.
KONNO, Alyne Yumi. Registro de Imóveis: Teoria e Prática. 2a ed. São Paulo: Memória Jurídica Editora, 2010
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Direitos Reais à Luz do Código Civil e do Direito Registral. São Paulo: Editora Método, 2004
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: Teoria e Prática. São Paulo: Editora Método, 2010
[1]É também possível a hipoteca de navios e aeronaves e de outros direitos reais (art. 1.473 do Código Civil)
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Graduada em Direito pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOLLERO, Barbara Tuyama. Breves apontamentos sobre a hipoteca e o seu registro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42204/breves-apontamentos-sobre-a-hipoteca-e-o-seu-registro. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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