1.1 Introdução
O valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar toda interpretação e compreensão do sistema constitucional.
No pano positivo, sua consagração decorre, dentre outras razões, da posição ocupada por ele no nosso sistema constitucional. Encontra-se expresso no art. 1º, III da Carta Magna de 1988 como fundamento da República Federativa do Brasil.
Isto porque, segundo a Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale, o fenômeno jurídico pode ser analisado sob três planos, quais sejam, fato valor e norma. A norma é a consagração, no plano normativo dos valores eleitos pelo legislador como relevantes. Sendo valor constitucional supremo, a dignidade da pessoa humana influenciará todo corpo normativo e também a sua interpretação.[1]
Note-se que além de fundamento e fim da ordem jurídica, a dignidade é pressuposto de igualdade real de todos os homens e da própria democracia.Nesse passo, a noção de dignidade da pessoa humana encontra-se intimamente relacionada à noção de justiça. Não se pode falar em justiça sem atender a dignidade da pessoa humana.
Essa nota de essencialidade coloca a dignidade da pessoa humana, no dizer de Flávia Piovesan, na condição de verdadeiro "superprincípio constitucional", eis que, "(...) simboliza a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, dotando-lhe especial racionalidade, unidade e sentido". [2]
1.2 Dimensões
Antonio Henrique Pérez Luño deduz três dimensões do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: (a) dimensão fundamentadora - núcleo basilar e informativo de todo o sistema jurídico - positivo; (b) dimensão orientadora - estabelece metas ou finalidades predeterminadas, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema axiológico - constitucional; (c) dimensão crítica - serve de critério para aferir a legitimidade das diversas manifestações legislativas. [3]
1.3 Origem histórica
As atrocidades perpetradas na Segunda Guerra Mundial justificaram uma discussão internacional acerca do conteúdo dos direitos fundamentais e por tabela, acerca do conteúdo da dignidade da pessoa humana. Ter seus direitos fundamentais respeitados e observados significa ver atendida a sua dignidade, ainda que a dignidade não se esgote neles.
O reconhecimento do dever de respeitar e promover a dignidade da pessoa humana parecia um único ponto de consenso mundial. Vale dizer, o pós-guerra promoveu o resgate do fundamento ético da experiência jurídica, pautado no valor da dignidade humana.
Hodiernamente, com a uniformidade econômica, de informação e, até mesmo cultural, a defesa dos direitos fundamentais do homem e, portanto, de sua dignidade, tornou-se um dos valores comuns do mundo ocidental. É indiscutível no mundo contemporâneo a primazia conferida ao valor do homem como um fim em si mesmo. E o direito, especialmente o direito constitucional, transformou-se, dentro de seus limites, em um dos instrumentos para esta defesa.
A respeito do referido princípio afirma Bonavides, "Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima, e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados".[4]
1.4 Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais sociais
Na esteira da proteção conferida a dignidade da pessoa humana, é de se notar que as Constituições do pós-guerra passaram a tutelar progressivamente os direitos sociais. Tal proteção se justifica pela simples razão de que uma tutela eficiente dos direitos sociais, econômicos e culturais viabiliza o exercício real e consciente das outras categorias de direitos fundamentais, quais sejam, os direitos individuais e políticos, e que todos, conjuntamente, contribuem para realização da dignidade da pessoa humana.[5]
No art. 6º da CF/88, que lista os denominados direitos sociais, verifica-se a concretização inquestionável do princípio da dignidade da pessoa humana na esfera das condições materiais de existência do homem.
O questionamento mais difícil envolvendo o tema, contudo, surge da constatação de que as normas de direitos sociais elencadas no pré-citado artigo (que geralmente envolvem prestações positivas), ao contrário de traduzirem regras, revestem, em sua maioria, a natureza de princípios ou subprincípios. Seus efeitos não são determinados e nem há escolha dos meios que deverão ser adotados para o seu cumprimento, tornando ainda mais emblemática a definição do alcance e aplicabilidade das referidas normas.
Sobre este aspecto, em virtude do comando do §1º do art 5º da CF, o intérprete e aplicador do direito deverá extrair dessas normas a maior eficácia possível.
É importante destacar, nesse ínterim, que as normas relacionadas com a dignidade da pessoa humana não podem ter seus efeitos concretos postos em dúvida. Isto porque as normas relacionadas com o princípio da dignidade da pessoa humana, dotadas de preponderância axiológica, em virtude de seu status constitucional, no momento do confronto, não podem ser subjugadas por outras de mesma hierarquia, cujos efeitos foram previamente identificados, como ocorre comumente com as normas que cuidam da separação de poderes, da deliberação majoritária ou da reserva orçamentária.[6]
Observe-se que não se pretende defender a aplicação absoluta e incondicional do princípio da dignidade da pessoa humana em qualquer caso, eis que notória a idéia de que não existem direitos absolutos ou princípios que não possam ser ponderados em dadas circunstâncias e em último caso, para atender a própria dignidade da pessoa humana.
Contudo, também não podemos deixar de afirmar, na esteira do pensamento de Ana Paula Barcellos, que em toda amplitude dos efeitos que essas normas - princípios definidoras de direitos sociais pretendem produzir, é possível identificar um conteúdo mínimo que se apresenta com a estrutura de regra.[7]
Há um núcleo de condições materiais que compõe a noção de dignidade de maneira tão fundamental que sua existência impõe-se como uma regra, e não como um princípio. Isto é; se tais condições não existirem, não há o que ponderar ou otimizar ao modo dos princípios e a dignidade terá sido violada, da mesma forma como as regras o são. Para além desse núcleo, a norma mantém a sua natureza de princípios estabelecendo fins relativamente indeterminados, que podem ser atingidos por meios diversos, dependendo das noções constitucionalmente legítimas do Legislativo e do Executivo em cada momento histórico.
Esse núcleo mínimo consubstanciador da dignidade da pessoa humana é atemporal, subsistindo ileso às modificações de valores, naturais num Estado Democrático e pluralista.
Se não existir consenso a respeito do conteúdo mínimo da dignidade, estar-se-á diante de uma crise ética e moral de tais proporções que o princípio da dignidade da pessoa humana terá se transformado em uma fórmula totalmente vazia, um signo sem significado correspondente.
Nesse ínterim, deverá ser garantido a este conteúdo mínimo de dignidade a sindicabilidade em juízo, isto é, deverá ser possível exigir diante do Poder Judiciário, como direito subjetivo, toda extensão do efeito isoladamente pretendido pela norma.[8]
Isto porque as normas - princípios sobre a dignidade da pessoa humana são, por todas as razões, as de maior grau de fundamentalidade na ordem jurídica como um todo, a elas devem corresponder as modalidades de eficácia jurídica mais consistentes. No caso, a eficácia positiva ou simétrica, na expressão de Barcellos, e não apenas as modalidades de eficácia interpretativa, negativa ou vedativa de retrocesso, comumente preconizadas pela doutrina.
Para tanto é que se reclama a hermenêutica concretizadora, que culmine por prestigiar a força normativa dos princípios constitucionais fundamentais, otimizando a força do princípio da dignidade da pessoa humana. De outra forma, estar-se ia admitindo que os governantes não estão vinculados à norma constitucional de modo relevante, podendo simplesmente ignorar seus comandos, sem qualquer conseqüência jurídica.
Impende ressaltar que abordagem mais convencional da matéria nega qualquer eficácia a tais normas, a exemplo de Cretella Jr:
"Na regra jurídica constitucional que dispõe que ' todos têm direito e o Estado tem dever' - dever de saúde -, na realidade, 'todos não tem direito', porque a relação jurídica entre o cidadão -credor e o Estado-devedor não se fundamenta em vinculum iuris gerador de obrigações, pelo que falta ao cidadão o direito subjetivo público, oponível ao Estado, de exigir, em juízo, as prestações prometidas, a educacional e a da saúde, a que o estado se obrigara, por proposição ineficaz dos constituintes, representantes do povo. O Estado deve, mas o debet tem conteúdo ético, apenas (...)".[9]
Como visto, o que a doutrina não entende possível, é exigir, com fundamento na própria norma constitucional, a prestação positiva. Todavia, é de se ter em mente que, embora a dignidade da pessoa humana seja, de fato, o princípio fundamental da ordem jurídica, vetor da interpretação em geral e da ponderação normativa em particular, não podem ser ignorados os demais princípios e normas constitucionais, por força da unidade da Constituição e porque os demais princípios constitucionais (p.ex, separação dos poderes) são partes de uma estrutura cujo objetivo maior é preservar a própria dignidade da pessoa humana. Daí, a proteção conferida primordialmente a esse núcleo mínimo de dignidade.
1.5 Debate jurisprudencial r
Na jurisprudência a questão também é complexa. Cingem-se mais as discussões na área da saúde e educação, de maneira casuística. Algumas decisões negam a prestação à saúde requerida, ao fundamento de que as normas constitucionais pertinentes seriam meramente programáticas. Outras negam igualmente, acrescentando o problema das limitações orçamentárias, tendo em vista as demais necessidades sociais e a competência exclusiva do Poder Executivo na matéria.
Afastando a legitimidade do Poder Judiciário:
EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO SOCIAL DE NATUREZA PRESTACIONAL. CRIAÇÃO DE ABRIGOS MUNICIPAIS COM VISTAS À PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE EM SITUAÇÃO DE ABANDONO. DETERMINAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO DE INCLUSÃO DE VERBA ORÇAMENTÁRIA. INGERÊNCIA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. IMPOSSIBILIDADE. Não pode o Judiciário, sob qualquer pretexto, ir além do exame estrito da legalidade e da legitimidade, pena de imiscuir-se indevidamente em terreno reservado à Administração. Falta aos Juízes, porque situados fora do processo político-administrativo, a capacidade funcional de garantir a efetivação de direitos sociais prestacionais mormente quando, a mais das vezes, se não sempre, dependente de condições de natureza econômica ou financeira que longe estão dos fundamentos jurídicos. (grifo nosso). EMBARGOS DESACOLHIDOS.[10]
Em sentido contrário, felizmente, há um crescente número de decisões que chegam a afirmar que as limitações orçamentárias não podem restringir o direito à saúde, bem como, a competência exclusiva do médico na determinação da prestação a ser dispensada ao paciente-autor, não cabendo ao Poder Público restringi-la. Nesse sentido:
APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO. SAÚDE. MENOR. REALIZAÇÃO DE PROCEDIMENTO CIRÚRGICO. CHAMAMENTO AO PROCESSO. UNIÃO. LITISCONSÓRCIO FACULTATIVO. NULIDADE INOCORRENTE. INTELIGÊNCIA DO ART. 46, § ÚNICO, DO CPC. O chamamento ao processo induz litisconsórcio sucessivo facultativo, pelo que autorizada a limitação do número de litigantes pelo Magistrado (art. 46, § único, do CPC). Assim, o indeferimento de inclusão da União no pólo passivo de demanda que versa sobre serviço de saúde pública não configura nulidade. RESERVA DO POSSÍVEL. MÍNIMO EXISTENCIAL. A reserva do possível, doutrina de resistência à justiciabilidade dos direitos sociais, não pode ser argüida quando em pauta direito fundamental intimamente relacionado com o princípio da dignidade da pessoa humana e inserido no padrão hermenêutico do mínimo existencial, como o direito à saúde, salvo situação excepcional não verificada no caso concreto. (grifo nosso) APLICABILIDADE IMEDIATA DA NORMA CONSTITUCIONAL DEFINIDORA DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. INTELIGÊNCIA DO ART. 5º, §1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.A norma-princípio contida no art. 5º, § 1º, da Constituição Federal aplica-se ao direito fundamental à saúde, pelo que a norma constitucional do art. 196 tem aplicabilidade imediata. Negado provimento e, em reexame necessário, confirmada a sentença.[11]
É de se notar que, mesmo amparados pelo status constitucional do princípio da dignidade, os direitos fundamentais sociais ainda enfrentam uma série de dificuldades para sua concretização, ora em razão do conservadorismo hermenêutico que acomete grande parte da doutrina e jurisprudência pátrias, ora pelo incessante jogo de empurra entre os poderes.
Diante de tudo que foi exposto, conclui-se que a coexistência harmônica da eficácia positiva da dignidade da pessoa humana de um lado, e dos demais princípios constitucionais, (como, p. ex, o da separação de poderes), depende de atribuir-se eficácia jurídica positiva apenas ao núcleo da dignidade, ao chamado mínimo existencial, reconhecendo legitimidade ao Judiciário para determinar as prestações necessárias à sua satisfação.
Aquele espaço normativo da dignidade referente a um consenso mínimo poderá ser objeto de controle judicial. Nesse âmbito há direito subjetivo de exigir judicialmente que seu efeito ideal seja realizado concreta e diretamente, isso além das outras modalidades de eficácia jurídica, normalmente atribuídas às normas que o veiculam (interpretativa, negativa e vedativa de retrocesso) - a denominada "eficácia mínima".
Notas: