RESUMO: o fator previdenciário, muitas vezes no centro de controvérsias relacionadas ao custeio da Previdência Social, não deve ser enxergado apenas sob o prisma da redução do valor das aposentadorias e da economia aos cofres públicos, devendo ser analisado, em cada um dos seus elementos, sob a ótica da justiça distributiva e dos princípios da Seguridade Social.
Palavras-chave: Previdência Social, fator previdenciário, custeio, equilíbrio financeiro e atuarial, princípios, solidariedade, justiça distributiva.
1. Introdução
Nas recentes eleições presidenciais de 2014, assim como em pleitos anteriores, o fator previdenciário figurou como relevante ponto de controvérsia entre os candidatos, eleitores, imprensa e demais atores políticos. Como é comum nas discussões acerca das polêmicas que envolvem o direito previdenciário, foram formados dois argumentos principais, um deles defendendo a ampliação dos benefícios previdenciários – que encontra base jurídica, sobretudo, no princípio da suficiência ou efetividade, segundo o qual os benefícios devem ser suficientes para afastar a necessidade dos beneficiários, e outro alegando a necessidade de restrição dos benefícios de modo a observar o princípio da preservação do equilíbrio financeiro e atuarial.
Quando se trata de discutir o fator previdenciário, da mesma forma, os debatedores acabam por se dividir, grosso modo, em dois grupos opostos, nas mesmas linhas acima mencionadas. O debate da população como um todo se repete no mundo do Direito, embora haja uma tendência nesse campo a se distinguir com mais clareza as nuances jurídicas envolvidas na matéria e a se entender a necessidade de preservação de ambos os princípios mencionados.
De forma geral, o primeiro grupo enfatiza a necessidade de amparar o trabalhador aposentado que, após décadas de trabalho, muitas vezes vê o valor de seu benefício sofrer acentuada redução por conta da aplicação do fator previdenciário. Por isso, alguns chegam a defender a simples extinção do fator previdenciário.
Já o segundo grupo alega a insuficiência dos recursos públicos para o pagamento de benefícios em valores muito superiores aos atuais e, em alguns casos, defendem a tese de que a extinção do fator previdenciário geraria dano irreparável aos cofres públicos.
O presente artigo não visa defender uma ou outra tese (mesmo porque a dicotomia entre suficiência dos benefícios e equilíbrio atuarial, segundo entendemos, é da própria natureza do direito previdenciário), mas, ao contrário, visa colaborar com a ampliação do debate, buscando afastar a ideia de que o fator previdenciário serve apenas para reduzir benefícios e evitar gastos públicos, podendo ser encarado como um instrumento de solidariedade e justiça distributiva, privilegiando os segurados mais necessitados e chegando a elevar os benefícios dos mais idosos em alguns casos.
Para isso, passaremos a analisar cada elemento que compõe o fator previdenciário, e qual sua função no sistema e quais seus efeitos.
2. Da Justiça Distributiva e sua relação os benefícios previdenciários
O conceito de justiça distributiva é discutido desde Aristóteles e já mereceu inúmeros tratamentos pelas mais diversas correntes jurídicas, filosóficas, religiosas e políticas, entre outras. Para os fins desse artigo, nos focaremos na acepção de justiça distributiva como aquela que visa promover a igualdade material, o que, no âmbito do direito previdenciário, pode ser utilizado para justificar o tratamento distinto dados aos segurados, conferindo-se mais benefícios ou benefícios de valor superior aos mais necessitados. Nesse sentido, vale lembrar que a Previdência Social tem enorme impacto na distribuição de renda no Brasil¹.
De especial relevância para a promoção da justiça distributiva são os princípios da Seguridade Social como a solidariedade (que, entre outras coisas, possibilita a disparidade entre contribuição e contraprestação), a seletividade (que prioriza o atendimento aos mais necessitados no fornecimento de benefícios), e a própria distributividade (que determina a distribuição de renda como consequência da previdência e assistência social).
Dessa forma, temos como admissível e desejável, no âmbito do direito previdenciário, que os benefícios não sejam concedidos de forma idêntica e indistinta a todos os segurados, privilegiando-se aqueles em maior situação de vulnerabilidade, tais como os idosos e inválidos.
Vale ressaltar que o presente artigo não trata da distinção entre as várias espécies de aposentadoria ou entre elas e outros benefícios previdenciários ou assistenciais (matéria que, por si só, mereceria um estudo em separado), mas sim das distinções entre os diversos segurados que estão submetidos ao fator previdenciário, em especial aqueles que recebem ou intentam a aposentadoria por tempo de contribuição.
3. Análise dos elementos do fator previdenciário e seus efeitos
O fator previdenciário é composto por diversos elementos organizados numa fórmula que pode alterar o valor dos benefícios de aposentadoria por idade e aposentadoria por tempo de contribuição. A análise matemática da fórmula foge ao escopo do presente trabalho. Por uma questão de clareza, no entanto, optamos por mencionar quais elementos são incluídos como multiplicadores (aumentando o valor inicial do benefício) e quais são incluídos como divisores (diminuindo-o), ainda que a observação muitas vezes pareça evidente para o estudante da matéria.
O art. 29, §7º, da Lei 8.213/91 determina que “o fator previdenciário será calculado considerando-se a idade, a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição do segurado ao se aposentar, segundo a fórmula constante do Anexo desta Lei”. Os elementos que compõe o fator previdenciário, portanto, são a idade, a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição, segundo a mencionada norma legal. Além desses elementos, há que se acrescentar a alíquota de 0,31, como pode ser observado na fórmula contida no art. 31, §11 do Decreto 3.048/99. Passemos a analisar cada um deles.
A idade se refere à idade do segurado no momento da aposentadoria. A inclusão desse elemento como multiplicador significa que, quanto maior a idade, maior será o valor do benefício. Embora tal efeito esteja de acordo com o princípio da preservação do equilíbrio financeiro e atuarial (pois presume-se que, em média, o segurado mais idoso irá desfrutar do benefício por menos tempo), não se pode ignorar sua relação com os mencionados princípios da solidariedade, seletividade e distributividade, pois a regra privilegia os mais idosos, que em regra tem maior necessidade de amparo, maior dificuldade de ingresso no mercado de trabalho, maiores despesas médicas, e assim por diante.
A utilização desse elemento como multiplicador também traz a vantagem de apresentar um nível elevado de granularidade, em que cada ano de vida antes da aposentadoria possibilita um aumento do valor inicial benefício. Por conta disso, dependendo da idade e expectativa de sobrevida do segurado, a aplicação do fator previdenciário poderá aumentar o valor do seu benefício – fato pouco lembrado nas discussões acerca de sua extinção! Apenas à guisa de exemplo, embora tratem-se de benefícios notadamente distintos (e com requisitos e objetivos diversos), compare-se tal regra à situação do benefício de amparo assistencial ao idoso previsto na Lei Orgânica da Assistência Social, que será absolutamente vedado ao segurado com 64 anos, mas concedido com o mesmo valor ao segurado de 65 anos e ao segurado de 90 anos.
A utilização de tempo de contribuição tem efeitos semelhantes. Ao segurado que contribui por mais tempo ao INSS é garantida aposentadoria em valor superior. Novamente, embora a regra evidentemente privilegie o princípio da preservação do equilíbrio financeiro e atuarial, não se pode negar que ela esteja em consonância com a justiça distributiva - aqui, em acepção mais próxima ao sentido aristotélico de se conferir bens aos cidadão conforme seu mérito. Tal concepção de justiça, embora não se confunda com a redistribuição de renda acima mencionada, é aceita de forma praticamente unânime na sociedade brasileira, como se observa do fato de que muitos segurados, após contribuírem por anos “sobre uma renda de dois salários”, esperam receber benefício de valor equivalente, o que não ocorre.
A expectativa de sobrevida é incluída como divisor na fórmula mencionada. Quanto maior a expectativa de sobrevida, menor o valor do benefício. O Brasil, como a maior parte do mundo moderno, tem observado um aumento constante da expectativa de vida, o que significa um aumento da população de idosos e uma tendência a se estender o período de pagamento dos benefícios de aposentadoria.
A utilização da expectativa de sobrevida faz com que o valor inicial dos benefício se adapte de forma automática às novas realidades demográficas, mas também gera automática (e constante) diminuição no valor inicial dos novos benefícios caso o trabalhador não opte por se trabalhar por mais tempo antes de se aposentar. Por conta disso, esse é um dos mais polêmicos elementos do fator previdenciário.
Ainda que a dicotomia entre efetividade e equilíbrio atuarial se observe de forma clara nesse elemento, aqui também aplica-se o princípio da solidariedade. Trata-se, no caso, de exemplo de solidariedade inter-geracional.
A inclusão da expectativa de sobrevida como divisor no fator previdenciário obriga, de fato, aos trabalhadores mais jovens a trabalharem por período cada vez maior antes de se aposentar. No entanto, como o regime previdenciário adotado no Brasil é o da repartição simples, são esses trabalhadores que colaboram para o custeio dos benefícios daqueles que já estão aposentados – e que, mesmo que tenham parado de trabalhar com idade mais reduzida, tendem a gozar dos seus benefícios por menos tempo do que as futuras gerações.
Em suma, os mais jovens trabalharão por mais tempo para sustentar os mais velhos, mas também viverão mais do que eles, e serão amparados, por sua vez, pelas gerações vindouras.
Por fim, o último elemento do fator previdenciário é a alíquota de 0,31, utilizada como multiplicador, de modo que, por sem menor do que 1, sempre diminuirá o valor final do fator previdenciário. O número escolhido corresponde à soma das contribuições patronais (20%) as contribuições do empregado (11%), reduzindo a necessidade de outras fontes de custeio. A utilização desse fator, ao contrário dos demais, visa exclusivamente manter o equilíbrio atuarial e financeiro do sistema, sem que se aplique, a nosso ver, maiores preocupações com os demais princípios mencionados, a não ser de forma reflexa.
Cabe notar ainda que o eventual aumento dessa alíquota por lei futura teria como principal efeito, além de aumentar o valor inicial dos benefícios submetidos ao fator previdenciário, alterar a necessidade do chamado custeio indireto, ou seja, aquele que é feito por meio de dotações orçamentárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e, portanto, sustentado pelos impostos ao invés das contribuições patronais e do empregado.
Quanto aos efeitos práticos do fator previdenciário tomado em sua integralidade, é relevante observar que a conjunção de tais elementos serve como estímulo ao trabalhador para que permaneça por mais tempo no mercado de trabalho², o que traz consequências tanto positivas (por exemplo, maior segurança no custeio do sistema) quanto negativas (por exemplo, a possibilidade de redução na geração de novos empregos).
4. Conclusão
Após essa breve análise dos elementos que compõe o fator previdenciário, esperamos ter logrado demonstrar que a discussão dessa regra não pode se limitar a um simples conflito entre a suficiência dos benefícios e a preservação do equilíbrio financeiro e atuarial, uma vez que a sistemática propicia a aplicação de outros importantes princípios da Seguridade Social.
Eventual opção política pelo aumento dos valores das aposentadorias não passa, necessariamente, pela extinção do fator previdenciário, bastando alterar a alíquota de 0,31 (o que gerará, no entanto, maior necessidade de custeio do sistema por meio dos impostos, com consequências positivas e negativas para a sociedade como um todo). Tal alteração, por si só, seria capaz de transformar o fator previdenciário em forma de aumento do valor das aposentadorias, invertendo-se a discussão entre efetividade e equilíbrio atuarial.
Por outro lado, a alteração de outros elementos do fator previdenciário ou sua integral extinção e substituição por outro sistema deve considerar os efeitos que isso trará em relação aos princípios da solidariedade (em especial a solidariedade entre gerações), da seletividade e da distributividade, além do potencial desperdício de um importante instrumento de justiça distributiva.
NOTAS:
¹ KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. – 7. edição – Salvador: JusPODIVM, 2010, p. 51.
² SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito previdenciário esquematizado / Marisa Ferreira dos Santos; coord. Pedro Lenza. – 1. edição – São Paulo : Saraiva, 2011, p. 169.
REFERÊNCIAS:
KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. – 7. edição – Salvador: JusPODIVM, 2010, p. 51.
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito previdenciário esquematizado / Marisa Ferreira dos Santos; coord. Pedro Lenza. – 1. edição – São Paulo : Saraiva, 2011.
ALENCAR, Hermes Arrais. Benefícios previdenciários. 3. ed. São Paulo: Livraria e
Editora Universitária de Direito, 2007.
Procurador Federal em exercício na Procuradoria Geral Federal de Santos-SP, órgão da Advocacia-Geral da União (AGU)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AVIAN, Eduardo. Do fator previdenciário como instrumento de justiça distributiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 dez 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42324/do-fator-previdenciario-como-instrumento-de-justica-distributiva. Acesso em: 22 nov 2024.
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