A adoção da federação como forma de Estado, adotada pela Constituição Federal de 1988, é instituto que desperta, ainda hoje, debates interessantes. Dentre estes, um dos mais instigantes é a discussão em torno dos Estados-membros, sobre se possuem ou não o atributo da soberania. De acordo com Soibelman, soberania é o “poder absoluto de autodeterminação, o que não conhece outro poder concorrente”. Diante dessa definição, será que é possível reconhecer os Estados-membros de uma federação como soberanos? É sobre esse assunto que se debruça esta breve reflexão.
Partindo da premissa de que o federalismo é uma aliança ou união de Estados, Dallari defende que “os Estados que ingressam na federação perdem sua soberania no momento mesmo do ingresso, preservando, contudo, uma autonomia política limitada”. Parece ter razão o nobre jurista. Ora, soberania é um conceito que traz ínsito em sua definição a noção de capacidade de se autodeterminar, de possuir total independência em relação a qualquer outro ente, podendo firmar-se, impor-se, enfim.
Na verdade, a despeito de opiniões nos mais diversos sentidos, o fato é que a própria Constituição de 1988 nos fornece as respostas para essa discussão. Ela elenca a soberania como fundamento da República Federativa do Brasil, logo em seu início, no artigo 1º, inciso I. Fazendo uma exegese constitucional, pois, percebe-se que o legislador constituinte conferiu o atributo da soberania à República Federativa do Brasil, e tão somente a ela.
Já no que tange aos entes federados, a Carta Magna foi igualmente clara, ao versar que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.
Em síntese, vê-se o texto constitucional delimita que soberania é atributo exclusivo da República Federativa do Brasil. Os entes federados, a seu turno, embora não sejam soberanos, gozam de autonomia. Dentre estes, então, estão os Estados-membros, que não possuem soberania, sendo apenas autônomos.
A realidade dos Estados-membros, despidos de soberania e dotados de autonomia, é brilhantemente retratada por Paulo Bonavides, quando afirma que: “no Estado Federal deparam-se-nos vários Estados que se associam com vistas a uma integração harmônica de seus destinos. Não possuem esses Estados soberania externa e do ponto de vista da soberania interna se acham em parte sujeitos a um poder único, que é o poder federal, e em parte conservam sua independência, movendo-se livremente na esfera de competência constitucional que lhes for assinalada para efeito de auto-organização”.
Autonomia, pode-se assim dizer, é a capacidade para desenvolver atividades dentro de limites previamente circunscritos pelo poder soberano. “O Estado Federal se origina a partir de uma Constituição (esta o cria), ou seja, todos os entes vão alienar a sua soberania a um único ente, que será o ente soberano, restando àqueles o exercício de autonomia que a Constituição irá conferir aos mesmos”.
Os Estados-membros, portanto, têm uma autonomia delimitada pela própria Federação, que o faz através da Constituição. Dentre esses limites, o mais famoso é a indissolubilidade do vínculo, sendo vedado aos Estados-membros o direito de secessão, de desvincular-se do Estado Federado a que se integrou.
A autonomia dos Estados-membros é dividida em uma tríplice capacidade: de auto-organização, auto-governo e auto-administração. Auto-organização é a capacidade de criar suas próprias normas, o que, no caso dos Estados, materializa-se nas constituições estaduais e leis estaduais (vide art. 25 da CF/88), sempre em atenção, todavia, à observância dos princípios sensíveis, extensíveis e estabelecidos da CF/88.
“Ao expedir as normas que configuram a organização federal, a Constituição defere ao Estado o poder de organização própria, designando como fontes do poder autônomo de organização a Constituição e as leis estaduais. Nesse cerne organizatório, situa-se a autonomia do Estado-membro, que caracteriza e singulariza o Estado Federal, de modo geral, e o Estado Federal brasileiro, de modo particular, no domínio das formas estatais”.
O auto-governo nos Estados, a seu turno, é bastante nítido, configurado na existência dos três poderes, a saber: Poder Executivo (Governador), Poder Legislativo (Assembléia Legislativa Estadual) e Poder Judiciário (Justiça Estadual). Por fim, há também a auto-administração, que é o exercício de competências administrativas, legislativas e tributárias. Na verdade, é o desenvolvimento da auto-organização e do auto-governo. É a chave-mestra.
Diante dessas considerações, portanto, a partir, inclusive, de uma interpretação literal da Constituição de 1988, conclui-se que os Estados-membros de uma federação não são soberanos. São eles, no entanto, dotados de uma autonomia (com capacidade de auto-organização, auto-governo e auto-administração) que lhes confere liberdade em várias esferas, ainda que circunscrita por limites estabelecidos pela Federação. Embora não sejam verdadeiros Estados do ponto de vista internacional, dado que lhes falece o atributo da soberania, são verdadeiros Estados federados, verdadeiros Estados enquanto membros de uma Federação que, em dado momento histórico, houveram por bem integrar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3% A7ao.htm>. Acesso em 16 mai. 2011.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1985.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 6. ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Jus Podivm, 2014, p. 711.
HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 2. ed. rev., atual e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 339.
SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia do Advogado. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1981.
NOTAS:
SOIBELMAN, Leib. Enciclopédia do Advogado. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1981, p. 332.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 227.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 207.
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