Sabe-se que o fato gerador dos benefícios por incapacidade não é a existência de determinado tipo de doença ou mal de saúde. O que autoriza a concessão destes benefícios, quando cumpridos os demais requisitos, é a existência de doença ou lesão que torne o seu portador incapaz de exercer a sua atividade habitual.
Como o RGPS tem a natureza securitária, que se evidencia nestes benefícios, para que a sua concessão seja devida, o indivíduo deve, antes de estar incapacitado, ostentar dois outros requisitos: ser segurado do regime, e ter cumprido a carência de 12 contribuições.
O tema a ser abordado neste artigo diz respeito exatamente ao iter que ocorre entre o descobrimento da doença e o momento que ela incapacita o segurado. Como foi dito acima, a mera existência da doença não gera o direito ao gozo do benefício. Portanto, num raciocínio silogístico, poderíamos concluir que também a mera existência da doença, que não gere incapacidade, não pode atrair a aplicação dos arts. 42, §2º, e 59, §único, da Lei 8.213/91, transcritos abaixo:
§ 2º A doença ou lesão de que o segurado já era portador ao filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social não lhe conferirá direito à aposentadoria por invalidez, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento dessa doença ou lesão.
Parágrafo único. Não será devido auxílio-doença ao segurado que se filiar ao Regime Geral de Previdência Social já portador da doença ou da lesão invocada como causa para o benefício, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento dessa doença ou lesão.
Ora, como a simples existência da doença que não incapacita não gera direito ao gozo do benefício, seria medida de justiça que também essa simples existência não pudesse ser invocada como alegação de preexistência da incapacidade.
Embora a assertiva, em regra, esteja correta, tenho me deparado com casos na prática que demandam uma maior reflexão. São os casos em que o indivíduo que jamais contribuiu com o RGPS descobre ser portador de uma doença gravíssima, a qual pode inclusive isentar o cumprimento da carência, como o câncer ou a SIDA.
A questão pode ser melhor visualizada com um exemplo: Y tem 45 anos, e todo o trabalho remunerado que realizou na vida foi na informalidade, jamais havendo recolhido sequer uma contribuição ao RGPS. Em um exame de rotina, Y descobre ser portador do vírus da AIDS. Após se informar sobre a forma como a legislação trata a sua situação, Y, com a carga viral ainda baixa, recolhe uma contribuição, no valor do teto do RGPS. Seis meses depois, atacado pela primeira infecção oportunista, e impossibilitado de exercer qualquer trabalho, Y requer o benefício por incapacidade.
Ora, poderia se pensar da seguinte forma: Y não estava incapacitado quando recolheu sua primeira e única contribuição. Y era simplesmente portador de uma doença que não gerava incapacidade, de modo que essa doença não poderia ser alegada para fins de determinar a preexistência da incapacidade em relação à sua filiação. Deste modo, o benefício seria devido, e pago no valor máximo do RGPS. Caso viesse a falecer, Y poderia deixar para sua esposa uma pensão por morte no mesmo valor, por décadas, às custas de uma contribuição de R$ 400,00.
Essa solução é a que simplesmente realiza a subsunção do fato à regra. Mas, é necessário refletir: o regime não possui um caráter claramente securitário?
Onde fica o caráter securitário em casos como este? Porque um indivíduo que sempre ignorou a previdência, optando por permanecer à sua margem, merece cobertura quando recolhe suas primeiras contribuições após ficar ciente ser portador de uma doença que, se ainda não o incapacitou, certamente um dia o irá incapacitar?
A resposta para casos como este, como já defendi em outros trabalhos, passa pela filtragem constitucional da legislação previdenciária, principalmente sob o prisma do princípio contributivo (art. 201, caput, CF/88), do equilíbrio financeiro e atuarial e do princípio da solidariedade.
Não há absolutamente nada de solidário na postura de iniciar as contribuições, aos 65 anos, após se saber possuidor um tumor cerebral. Então o Direito, palavra aqui utilizada num sentido amplo e vulgar de justiça, é conivente com a postura de quem, espontaneamente, opta por se apropriar dos recursos que outros trabalhadores pagam sob a forma de contribuição previdenciária, mas que, ao se deparar com uma doença séria e de cura improvável, ainda que num primeiro momento não o incapacite, busca a proteção do regime que sempre ignorou recolhendo apenas uma contribuição?
No meu entender, a questão passa por analisar o histórico contributivo do indivíduo e a natureza de sua doença. Ora, alguém que jamais contribuiu, ou que deixou de contribuir hámuitos anos, e que só volta a recolher contribuições após a descoberta de uma doença como uma neoplasia maligna, viola frontalmente o caráter securitário do RGPS, bem como os princípios da solidariedade e contributivo que lhe norteiam. Ainda que, no momento do recolhimento da contribuição, não haja incapacidade laborativa.
É que, nesses casos, a incapacidade laborativa decorre da simples natureza da doença. Passa a ser uma questão de “quando”, e não de “se” ficará incapacitado.
Não se trata aqui de defender uma posição que privilegia o interesse público secundário em detrimento da vida. É inadmissível que deturpadores da Lei sempre se escondam atrás de expressões como dignidade da pessoa humana, enquanto, durante a suas vidas, nada mais fazem que contribuir para as mazelas que assolam a sociedade.
Obviamente, esse indivíduo receberá a atenção do ramo da Seguridade Social que é universal e gratuito, ou seja, a saúde pública. Mas a Previdência Social está ligada de forma indissociável da ideia de contributividade, que tem estatura constitucional, e deve ser observada pelo operador do direito.
Não apenas esses princípios são ofendidos por posturas como essa. Não há qualquer isonomia em tratar de forma igual o segurado diligente que recolhe suas contribuições com o fito de se precaver de problemas como esse e o segurado que busca amparo num regime que ignorou apenas quando ciente de estar em risco de vida.
Portanto, a conclusão a que se chega é a de que a mera subsunção do fato a norma não é suficiente à resolução de questões complexas como esta. É necessário ao interprete filtrar a legislação através de um interpretação que lhe dê sentido, e não que, ao revés, lhe negue a finalidade.
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