RESUMO: a súmula 78 da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais determinou análise ampla, e não apenas médica, das condições o portador do vírus HIV ao verificar o direito a benefício previdenciário ou assistencial, sendo necessário levar em consideração o estigma social associado à doença.
Palavras-chave: Previdência Social, incapacidade, portador de HIV, estigma social.
1. Introdução
A mais recente súmula da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU), a súmula 78, traz a seguinte redação:
SÚMULA 78 - Comprovado que o requerente de benefício é portador do vírus HIV, cabe ao julgador verificar as condições pessoais, sociais, econômicas e culturais, de forma a analisar a incapacidade em sentido amplo, em face da elevada estigmatização social da doença.
A súmula 78, proposta pela juíza federal Kyu Soon Lee e aprovada por maioria, adota jurisprudência majoritária existente Juizados Especiais no mesmo sentido [1].
O presente trabalho visa discutir, ainda que de forma breve, algumas questões relacionadas ao tema.
2. HIV e estigma social
Em primeiro lugar, cabe ressaltar que não há dúvida que o HIV e a aids geram discriminação aos seus portadores. Prova da aceitação desse fato no ordenamento jurídico é a Lei nº 12.984/2014, que pune com pena de reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, as condutas discriminatórias ali arroladas.
Por sua relevância, passamos a transcrever o diploma legal em questão:
Art. 1o Constitui crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, as seguintes condutas discriminatórias contra o portador do HIV e o doente de aids, em razão da sua condição de portador ou de doente:
I - recusar, procrastinar, cancelar ou segregar a inscrição ou impedir que permaneça como aluno em creche ou estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado;
II - negar emprego ou trabalho;
III - exonerar ou demitir de seu cargo ou emprego;
IV - segregar no ambiente de trabalho ou escolar;
V - divulgar a condição do portador do HIV ou de doente de aids, com intuito de ofender-lhe a dignidade;
VI - recusar ou retardar atendimento de saúde.
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Como se observa, a lei visa inibir a discriminação, inclusive no mercado de trabalho. Ou seja, não se pode presumir que o portador de HIV e o doente de aids estejam automaticamente incapacitados para o trabalho. Ao contrário, tal discriminação é punível com reclusão.
No mesmo sentido, diz a juíza federal Kyu Soon Lee que é “importante deixar claro que a doença por si só não acarreta a incapacidade ou deficiência que a Legislação exige para o gozo do benefício” [2]
Para verificar se a doença gera incapacidade é de especial importância o laudo do perito médico, embora não esteja juiz adstrito a ele, podendo afastá-lo de forma motivada, mas não “a priori”.
Qualquer decisão que fundamente a incapacidade para o trabalho exclusivamente no fato do segurado ser portador de HIV, sem analisar as condições médicas e sociais do caso concreto, não apenas viola a súmula 78 mas também incide em generalização que o ordenamento jurídico visa coibir, segundo nos parece.
3. Da proibição da discriminação
Como acima demonstrado, a discriminação contra portadores de HIV não é apenas proibida, mas apenada com reclusão, inclusive no mercado de trabalho. A própria divulgação dessa condição com fins de ofensa à dignidade também está previsto na lei penal.
Vale citar que a Portaria Interministerial n.º 869, de 11 de agosto de 1992, que, por sua importância, reproduzimos na íntegra:
“Os Ministros de Estado da Saúde e do Trabalho e da Administração, no uso das atribuições que lhes confere o art. 87, parágrafo único, inciso IV, da Constituição Federal, e, Considerando que os artigos 13 e 14 da Lei n° 8.1 12/90 exigem tão somente a apresentação de um atestado de aptidão física e mental, para posse em cargo público;
Considerando que a sorologia positiva para o vírus da imunodeficiência adquirida (HIV) em si não acarreta prejuízo da capacidade laborativa de seu portador;
Considerando que os convívios social e profissional com portadores do vírus não configuram situações de risco;
Considerando que as medidas para o controle da infecção são a correta informação e os procedimentos preventivos pertinentes;
Considerando que a solidariedade e o combate à discriminação são a fórmula de que a sociedade dispõe para minimizar o sofrimento dos portadores do HIV e das pessoas com AIDS;
Considerando que o manejo dos casos de AIDS deve ser conduzido segundo os
preceitos da ética e do sigilo;
Considerando que as pesquisas relativas ao HIV vêm apresentando surpreendentes resultados, em curto espaço de tempo, no sentido de melhorar a qualidade de vida dos indivíduos infectados e doentes, resolvem: Proibir, no âmbito do Serviço Público Federal, a exigência de teste para detecção do vírus de imunodeficiência adquirida, tanto nos exames pré-admissionais quanto nos exames periódicos de saúde.“
Também é importante mencionar que, em regra, não pode o empregador exigir em exames admissionais ou em exames períodos o teste para a detecção do HIV, nem é o empregado obrigado a dizer ao empregador que é portador do vírus. Nesse sentido diz a Portaria 1.246, de 28 de maio de 2010, do Ministério do Trabalho e Emprego:
Art. 2º. Não será permitida, de forma direta ou indireta, nos exames médicos por ocasião da admissão, mudança de função, avaliação periódica, retorno, demissão ou outros ligados à relação de emprego, a testagem do trabalhador quanto ao HIV.
No mesmo sentido já determinou o Conselho Federal de Medicina (Resolução nº 1.665 de 7 de maio de 2003, art. 4º).
Assim, não se pode presumir “a priori” que todo portador de HIV irá sofrer discriminação em qualquer
trabalho ou entrevista de trabalho, e nem mesmo que sua condição seja por todos conhecida, cabendo analisar, de forma motivada, todas as circunstâncias do caso concreto.
Também não pode eventual discriminação ser tratada apenas no âmbito previdenciário, cabendo possível responsabilidade civil, penal e trabalhista caso o trabalhador seja discriminado por sua condição, devendo o juiz da causa, nos limites de suas atribuições, comunicar aos órgãos competentes eventual ato ilícito praticado.
4. Da problemática da doença preexistente
Além de consistir em discriminação, entender qualquer portador de HIV como incapaz para o trabalho traz mais um grave problema de ordem social, podendo retirar-lhe o direito a benefícios que seriam devidos.
A Lei 8.213/91, em seu art. 42, determina:
Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição.
§ 1º A concessão de aposentadoria por invalidez dependerá da verificação da condição de incapacidade mediante exame médico-pericial a cargo da Previdência Social, podendo o segurado, às suas expensas, fazer-se acompanhar de médico de sua confiança.
§ 2º A doença ou lesão de que o segurado já era portador ao filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social não lhe conferirá direito à aposentadoria por invalidez, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento dessa doença ou lesão.
Da leitura do §2º se percebe que a injustiça que seria cometida caso se entendesse que o simples fato de portar HIV incapacita para o trabalho, uma vez que seria subtraído ao portador do vírus a possibilidade de vir a receber aposentadoria por invalidez, tendo em vista a existência de doença preexistente. Vale lembrar que muitas pessoas já nascem com o vírus e ficariam desde o nascimento impossibilitadas de conseguir o benefício.
A questão não é apenas jurídica, mas médica. Graças aos avanços da medicina, muitos portadores de HIV podem ter uma vida plenamente produtiva e apresentar expectativa de vida semelhante à do restante da população, caso recebam o tratamento adequado (que, via de regra, é prestado de forma gratuita no Brasil), não podendo ser excluídos de antemão do mercado de trabalho.
Mais correto, portanto, é entender que o portador de HIV que não esteja incapacitado ao trabalho pode filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social e poderá ter direito ao benefício de aposentadoria por invalidez (ou auxílio-doença, conforme o caso) na eventualidade de ficar incapaz após ingressar a filiação, contanto que sejam preenchidos os demais requisitos do benefício.
5. Conclusão
A súmula 78 da TNU determina a análise das circunstâncias pessoais, sociais, econômicas e culturais do portador de HIV para que se verifique a incapacidade. Pelos próprios termos da súmula, a análise não pode ser feita de forma genérica, devendo ser verificadas, de forma clara e motivada, as circunstâncias do caso concreto.
Considerar todo portador de HIV como incapaz para o trabalho “a priori” não só viola a jurisprudência, mas também consiste em discriminação vedada por lei e pela Constituição Federal.
NOTAS:
[1] TNU aprova súmula 78. Página do Conselho Federal de Justiça. Publicado em 12/09/2014. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/noticias-do-cjf/2014/setembro/tnu-aprova-sumula-78>. Acesso em: 17 dez. 2014.
[2] Idem.
REFERÊNCIAS:
TNU aprova súmula 78. Página do Conselho Federal de Justiça. Publicado em 12/09/2014. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/noticias-do-cjf/2014/setembro/tnu-aprova-sumula-78>. Acesso em: 17 dez. 2014.
SANTOS, Marisa Ferreira dos. Direito previdenciário esquematizado / Marisa Ferreira dos Santos; coord. Pedro Lenza. – 1. edição – São Paulo : Saraiva, 2011.
ALENCAR, Hermes Arrais. Benefícios previdenciários. 3. ed. São Paulo: Livraria e
Editora Universitária de Direito, 2007.
Procurador Federal em exercício na Procuradoria Geral Federal de Santos-SP, órgão da Advocacia-Geral da União (AGU)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AVIAN, Eduardo. Da súmula 78 da TNU e da concessão de benefício por incapacidade ao portador do vírus HIV Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 dez 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42712/da-sumula-78-da-tnu-e-da-concessao-de-beneficio-por-incapacidade-ao-portador-do-virus-hiv. Acesso em: 22 nov 2024.
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