1. Considerações gerais sobre o benefício de prestação continuada
A assistência social brasileira encontra-se regulamentada pela Lei nº 8.742/93, a Lei Orgânica da Assistência Social, a que os doutrinadores se referem mais usualmente como LOAS.
Dentre os benefícios pecuniários de assistência social, o principal corresponde ao pagamento de um salário mínimo à pessoa idosa ou deficiente, que não tiver como prover o próprio sustento ou tê-lo provido por sua família: o benefício da prestação continuada – BPC[1].
Para fazer jus ao benefício de prestação continuada, portanto, faz-se necessário o preenchimento de dois requisitos: um obrigatório, a hipossuficiência socioeconômica, e outros dois alternativos, idade ou deficiência física.
Os requisitos da necessidade e da deficiência física são definidos pela Lei nº 8.742/93 – LOAS, enquanto que o requisito da idade mínima, pela Lei nº 10.741/03 – Estatuto do Idoso, como se verá mais detidamente a seguir.
1.1. Requisitos subjetivos para concessão
No que toca ao requisito subjetivo da idade mínima, o artigo 34 da Lei nº 10.741/03 – Estatuto do Idoso, e o artigo 20 da Lei nº 8.742/93 estipulam a idade de 65 anos, para o homem ou a mulher.
Ressalte-se, todavia, que, nos termos da redação original da Lei nº 8.742/93, apenas os idosos maiores de 70 anos faziam jus ao benefício. Posteriormente, referido diploma legal foi alterado pela Lei nº 9.720/98, passando a fixar o critério de 67 anos, até o advento do Estatuto do Idoso que, para esse fim, definiu a idade de 65 anos para concessão do benefício, o que foi mantido pela Lei nº 12.435/11, a qual conferiu nova redação ao artigo 20 da Lei nº 8.742/93.
No que diz respeito ao requisito da deficiência, a atual redação da Lei nº 8.742/93 traz importante inovação em sua conceituação, pois passa a considerar como deficiente a pessoa que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, possam obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com os demais.
De tal modo, a deficiência deixa de ter conotação meramente física, para ser abordada como um fenômeno complexo, atrelado à dificuldade de inserção social e no mercado de trabalho, para abarcar a limitação do desempenho de atividade e restrição de participação social, em correspondência à interação entre a pessoa e seu ambiente físico e social. Em outras palavras, o critério não é mais totalmente clínico, passando a considerar a pessoa no contexto social de inclusão ou de exclusão das atividades da comunidade, como bem observa Marcelo Leonardo Tavares.[2]
Por fim, há de se registrar que, a teor do previsto no § 10 do artigo 20 da Lei nº 8.742/93, é considerado impedimento de longo prazo aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de dois anos. A avaliação da deficiência, por sua vez, será realizada de acordo com a Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde – CIF, estabelecida pela Resolução da Organização Mundial de Saúde nº 54.21, aprovada pela 54ª Assembleia Mundial da Saúde, em 22 de maio de 2001, enquanto que a avaliação social vai levar em consideração fatores ambientais, sociais e pessoais no desempenho de atividades.
1.2. Requisito objetivo para concessão
O requisito objetivo da miserabilidade encontra-se referenciado no inciso V do artigo 203 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual é garantido benefício mensal no valor de um salário mínimo à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover o próprio sustento ou de tê-lo provido pela sua família.
Coube à Lei nº 8.742/93 regulamentar a mencionada previsão constitucional, e assim o fez, no § 3º do artigo 20, in verbis:
Art. 20. [...]
§ 3º. Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.
Ocorre que, havendo lei disciplinadora da matéria, passou-se a questionar se o Poder Legislativo, a título de estabelecer o conceito de miserabilidade, poderia escolher qualquer critério, como o fez, quando elegeu a renda familiar per capita inferior a um quarto do salário mínimo.
Para Marcelo Leonardo Tavares, parece que não. Segundo os ensinamentos do autor:
A interpretação de normas legais em matéria envolvendo direitos fundamentais deve levar em consideração o conceito chave do mínimo existencial.
[...]
Pode ocorrer que, no caso concreto, o critério acolhido de forma genérica pelo legislador não se mostre suficiente para solucionar o problema de sobrevivência. Se isto acontecer, caberá ao Poder Judiciário valorizar os elementos mais adequados para a justa solução do caso concreto.[3]
No mesmo sentido, Fábio Zambitte Ibrahim, para quem:
De fato, ainda que o Legislador frequentemente utilize-se de parâmetros objetivos para a fixação de direitos, a restrição financeira pode e deve ser ponderada com características do caso concreto, sob pena de condenar-se à morte o necessitado.
[...]
A concessão do benefício assistencial, nestas hipóteses, justifica-se a partir do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o qual possui, como núcleo essencial, plenamente sindicável, o mínimo existencial, isto é, o fornecimento de recursos elementares para a sobrevivência digna do ser humano.[4]
Passou-se a adotar outros critérios supervenientes mais favoráveis aos necessitados, como, por exemplo, o de ½ salário mínimo per capita, aduzindo suposta revogação tácita por leis que criaram outros programas assistenciais do Governo Federal, tais como o “Bolsa Escola”, o “Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA” e o “Bolsa Família”.
A respeito, Frederico Amado chegou a manifestar-se no seguinte sentido:
Entende-se que essas decisões judiciais não merecem prosperar. Algumas leis elegeram o critério da renda familiar per capita inferior a ½ salário mínimo para a concessão de benefícios assistenciais de menor valor, a exemplo do Programa Bolsa Família, sendo descabido se falar em revogação tácita do critério de 1/4. Ademais, há exigência constitucional da prévia fonte de custeio para a extensão de benefícios da seguridade social, o que evidentemente não foi atendido.[5]
2. Considerações acerca das decisões do STF a respeito do requisito objetivo
2.1. A ADI nº 1.232/DF
Inicialmente, as discussões doutrinárias e jurisprudenciais aludidas ao norte acabaram por culminar na propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.232/DF, na qual se questionava a constitucionalidade do critério objetivo fixado no § 3º do artigo 20 da Lei nº 8.742/93.
No ano de 1998, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 1.232/DF, firmou entendimento no sentido de que o requisito da renda familiar inferior a um quarto do salário mínimo era constitucional.
A Corte Suprema ainda foi além: por maioria, afirmou que o critério em questão teria natureza absoluta, ou seja, seria de verificação matemática. Sendo assim, somar-se-ia a renda dos membros da família que, por lei, configuraria o grupo familiar para fins de concessão do benefício de prestação continuada, e se dividiria pelo número de integrantes. Caso o resultado fosse inferior a um quarto do salário mínimo vigente, estaria atendida a previsão constitucional da miserabilidade.
A partir de tal decisão, não havia mais que se falar em inconstitucionalidade desta exigência, considerando que, desde o advento da Lei nº 9.868/99[6], as decisões proferidas em ADI passaram a ter caráter vinculante, além do efeito erga omnes característico.
Sucede que, apesar disso, os debates acerca do tema perduraram, e parte da jurisprudência continuou a se posicionar pela natureza relativa do requisito[7]. Para esta corrente, ainda que as condições do caso concreto indicassem, matematicamente, que a renda per capita do núcleo familiar era superior a um quarto do salário mínimo, haveria a chance, pela análise das condições subjetivas do requerente, de fazer jus à proteção assistencialista.
2.2. O RE nº 567.985/MT
Aos poucos, o próprio Supremo Tribunal Federal começou a temperar o entendimento por ele firmado.
Para tal, muito contribuíram as decisões dos Ministros Celso de Mello[8], Carlos Britto[9] e Ricardo Lewandowski[10], que passaram a negar seguimento às reclamações ajuizadas pelo INSS, com o fundamento de que esta via processual, como já assentado pela jurisprudência do Tribunal, não é adequada para se reexaminar o conjunto fático-probatório em que se baseou a decisão reclamada para atestar o estado de miserabilidade do indivíduo e conceder-lhe o benefício assistencial sem seguir os parâmetros do § 3º do artigo 20 da Lei nº 8.742/93.
O Ministro Sepúlveda Pertence passou a enfatizar, em análise de decisões que concederam o benefício com base em legislação superveniente à Lei nº 8.742/93, que as decisões reclamadas não declararam a inconstitucionalidade do § 3º do artigo 20 dessa lei, mas apenas interpretaram tal dispositivo em conjunto com a legislação posterior, a qual não foi objeto da ADI nº 1.232.[11]
Somem-se a essas as decisões do Ministro Marco Aurélio, que sempre deixou claro seu posicionamento no sentido da insuficiência dos critérios definidos pelo § 3º do artigo 20 da Lei nº 8.742/93 para fiel cumprimento do artigo 203, inciso V, da Constituição Federal de 1988.[12]
A análise das supramencionadas decisões demonstra que, gradativamente, a interpretação da Lei nº 8.742/93 em face da Constituição foi sofrendo mudanças substanciais na Corte Suprema.
Foi assim que, após inúmeros recursos e reclamações, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da questão constitucional citada no Recurso Extraordinário 567.985/MT e, em sessão plenária realizada em 18/04/13, por maioria dos votos, pronunciou, incidentalmente, a inconstitucionalidade parcial do § 3º do artigo 20 da Lei nº 8.742/93, que prevê o critério objetivo da renda per capita abaixo de ¼ do salário mínimo para aferição da miserabilidade.
A Corte Suprema pátria, entretanto, declarou a inconstitucionalidade parcial do referido dispositivo legal sem a pronúncia de sua nulidade, o que significa que os efeitos dessa decisão são ex nunc, ou seja, não retroagirão.
Desse modo, cabe ainda ao Supremo Tribunal Federal a modulação dos efeitos do decisum em apreço, sendo certo que, se a norma não foi declarada nula, há que se determinar a partir de quando não estará mais vigorando.
Tentou-se conferir o prazo de até 31/12/2015 para que o Congresso Nacional aprovasse nova regra. Sucede que o quórum de 2/3 para essa modulação não foi alcançado.
Nessa senda, indaga-se: como fica a análise do requisito objetivo da hipossuficiência econômica, nas esferas administrativa e judicial, até que o Supremo Tribunal Federal proceda à modulação dos efeitos da reiteradamente citada decisão?
3. Conclusão
O Supremo Tribunal Federal afastou o critério legalmente previsto, sem indicar outro a ser usado. Tal vazio jurídico compromete a segurança jurídica e a isonomia nas decisões, tanto nas concessões deferidas pela Autarquia Previdenciária quanto até mesmo pelo Poder Judiciário, uma vez que tal mensuração fica a depender do entendimento do órgão concessor.
Ante a ausência de um novo critério para aferição da miserabilidade, entende-se que deve prevalecer a corrente segundo a qual, mesmo após o julgado no Recurso Extraordinário 567.985/MT, até que ocorra a modulação de seus efeitos, deve ser considerada lícita a exigência de observação do requisito objetivo da renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo.
Inclusive, esta é a solução que vem sendo adotada pela Corte Suprema em casos análogos, a exemplo das ADI’s 4.357 e 4.425, que tratou sobre o sistema de precatórios. Ou seja, em situações tais em que há declaração de inconstitucionalidade de dispositivo legal, mas sem a devida modulação dos seus efeitos, tendo em vista a futura modulação temporal do julgamento, não há aplicação imediata do novel posicionamento.
AMADO, Frederico. Direito e Processo Previdenciário Sistematizado. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2012.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232/DF, Relator Min. Ilmar Galvão, Relator para o acórdão Min. Nelson Jobim. Brasília, DF, 27 de agosto de 1998. Disponível em: <http://www.stf.jus.br> Acesso em: 07 out. 2014.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 567.985/MT, Relator Min. Marco Aurélio, Relator para o acórdão Min. Gilmar Mendes. Brasília, DF, 18 de abril de 2013. Disponível em: <http://www.stf.jus.br> Acesso em: 07 out. 2014.
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 19. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014.
TAVARES, Marcelo Leonardo. Direito Previdenciário: regime geral de previdência social e regras constitucionais dos regimes próprios de previdência social. 15. ed. rev. e atual. Niterói: Impetus. 2014.
[1] Conquanto o benefício de prestação continuada seja o benefício assistencial por excelência, existem ainda na lei os benefícios eventuais, quais sejam, auxílios funeral e natalidade, que já foram benefícios previdenciários, mas agora encontram-se vinculados à assistência social.
[2] Ibidem, p. 26
[3] Ibidem, p. 21
[4] IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 19. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014. p. 14
[5] AMADO, Frederico. ob. cit. p. 62
[6] Nos termos do parágrafo único do artigo 28 da Lei nº 9.868/99: Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
[7] Neste sentido, decisão prolatada pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do RESP nº 397.943/SP, Rel. Min. Felix Fischer, DJ do dia 18/03/2002, p. 300
[8] Rcl 4.422/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 30.6.2006
[9] Rcl 4.133/RS, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 30.6.2006
[10]Rcl 4.366/PE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 1.6.2006
[11]Rcl 4.280/RS, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 30.6.2006
[12]Rcl 4.164/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 29.05.2006
Procuradora Federal desde 2009, atualmente em exercício na Procuradoria Federal da Paraíba. Atuou na Procuradoria Federal Especializada do IBAMA (2009-2011) do INSS (2012 - 2014), ambas em Santarém-PA .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ANDRADE, Juliana Lopes de Sousa. O benefício de prestação continuada e as consequências da declaração de inconstitucionalidade pelo STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 dez 2014, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42729/o-beneficio-de-prestacao-continuada-e-as-consequencias-da-declaracao-de-inconstitucionalidade-pelo-stf. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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