Alexandre Alberto Gonçalves da Silva*
Pedro Luis Próspero Sanchez·
Palavras-chaves:perícia, perito, common law, gatekeepers,direito romanista, direito comparado
Introdução
Este artigo tem por objetivo comprar as formas de utilização pelo judiciário brasileiro e americano das perícias técnicas, em especial as perícias de engenharia.
Inicialmente será feita uma análise dos sistemas jurídicos adotados pelos dois países. A diferença existente entre estes dois modelos é determinante quanto a forma de escolha dos peritos e da forma de atuação nostribunais são diferentes nos dois sistemas.
Essas diferenças já se destacam no momento da escolha dos peritos pelos juízes.No caso brasileiro, esta escolha é feita pelo juiz, e o escolhido deverá ter o conhecimento técnico-científico suficiente para exercer a tarefa que lhe foi designada, utilizando-se de métodos adequados. Já no sistema da chamada Common Law, sistema adotado pelos Estados Unidos, o perito é escolhido pelos litigantes.
Não obstante as diferenças dos sistemas jurídicos dos dois países, um ponto em comum é a questão da qualidade técnica que o profissional escolhido deverá ter para realizar a perícia.
Recentemente um relatório solicitado pelo congresso americano à National Academy of Sciences (NAS), apontou que parte da chamada Ciência Forense não está fundamentada em bases sólidas de procedimentos científicos já estabelecidos. Este relatório identificou que muitas áreas como a microscopia, comparação de marcas de mordida, análise de impressões digitais, testes de armas de fogo e análise de marcas de ferramentas e objetos, foram desenvolvidos apenas para solucionar casos criminais e, desta forma, utilizados apenas dentro de um contexto de casos individuais e que possuem relevantes variações tanto na pesquisa como na expertise.
Ainda segundo o relatório, estas técnicas não foram submetidas a um rigoroso escrutínio experimental, assim como não existem parâmetros confiáveis tanto nos Estados Unidos, como em qualquer lugar do mundo, que possam validar de maneira consistente qualquer um destes métodos (NEUFELD, SCHECK, 2010).
A Constituição da República Federativa do Brasil é formada pela indissolúvel união entre os estados, municípios e o Distrito Federal. O governo é composto pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, tendo sido adotado o sistema da Civil Law, cuja origem são as leis romanas (por isso também é chamado sistema romanista) e foi introduzido pelos colonizadores portugueses. O sistema é baseado em códigos e leis promulgados pelo legislativo federal e também pelos estados e municípios (BRASIL, 1988).
Assim, o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que é composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal.
O Poder Executivo, por sua vez, no sistema de governo presidencialista adotado pelo Brasil, é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado.
Finalmente o Poder Judiciário, que tem por função aplicar alei nos casos concretos, é fundamentado na hierarquia dos órgãos que o compõem, formando então as chamadas instâncias. À primeira instância cabe analisar e julgar determinada ação apresentada incialmente ao Poder Judiciário. As outras instâncias apreciam as decisões da instância inferior em órgãos colegiados, ou seja por grupos de juízes que analisam o pleito.
Justiça Federal, que é composta por juízes e tribunais federais, é responsável pelo julgamento de ações onde se tem a União, autarquias ou empresas públicas federais como parte interessada, assim como as Justiças do Trabalho, Eleitoral e Militar.
A Justiça Estadual julga as ações que não estão contidas na competência da Federal.
O Poder Judiciário é composto pelo Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário e que tem por competência principal a guarda da Constituição Federal, o Superior Tribunal de Justiça, que é responsável pela guarda do direito nacional infraconstitucional e pela harmonização das decisões oriundas dos tribunais de segunda instância, analisando também recursos extraordinários cabíveis por desobediência à Constituição Federal.
Os Tribunais Regionais Federais também são órgãos do poder Judiciário e julgam ações provenientes dos estados e são divididos por regiões. Os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal apreciam as causas em grau recursal ou por competência originária de matérias que não se enquadram nas justiças federais especializadas.
Finalmente os Juízos de primeira instância, onde se iniciam normalmente as ações judiciais estaduais e federais, e que compreende os juízes estaduais e federais comuns e da justiça especializada.
Diferentemente dos Estados Unidos, o Brasil não segue a doutrina dastare decisis, ou dos precedentes, onde as decisões são tomadas com base nas decisões precedentes. Somente após a Emenda Constitucional 45, de 2004, é que o Supremo Tribunal Federal passou a adotar a súmula vinculante, que é um mecanismo que obriga juízes de todos os tribunais a seguirem o entendimento adotado pelo Supremo sobre determinado assunto que tenha jurisprudência consolidada.
Já nos Estados Unidos, que adotou o sistema da Common Law, tem como fonte do direito os casos julgados anteriormente. Este princípio dos precedentes diz que uma vez que um tribunal respondeu a um questionamento em um determinado caso, a mesma pergunta em outros casos devem suscitar a mesma resposta daquele tribunal ou dos tribunais inferiores naquela jurisdição. Em contrapartida, o sistema da Civil Law encontra suas fontes nas leis, códigos e doutrina.
As decisões judiciais estão fundadas no livre convencimento do juiz e tem seus limites impostos pelas leis.
Existem dois tipos de peritos no Brasil: os peritos criminais e os não-criminais. Os primeiros são servidores públicos, na maior parte dos casos, e os outros são contratados pelas partes envolvidas em questões judiciais dos mais variados tipos. Obviamente existem exceções nos dois casos, mas não trataremos destas no presente trabalho.
Existem peritos criminais somente nas esferas federal e estadual, não havendo aqui a figura do perito distrital ou municipal. No Brasil não existe a jurisdição distrital ou municipal. As questões municipais são resolvidas no âmbito estadual.
Os peritos criminais então, para serem contratados pelos estados, devem passar por um concurso público onde serão avaliados seus conhecimentos.
Em casos não-criminais os juízes escolhem os peritos entre os profissionais cadastrados em uma lista previamente organizada pelos tribunais federais e estaduais em cada região ou estado.
Os chamados de assistentes técnicos que têm por objetivo auxiliar as partes nas demandas e são contratados por elas somente pelos seus conhecimentos, não havendo uma maneira eficaz, ou mecanismo legal, para auferir o grau destes conhecimentos.
Também não existe nenhuma agência governamental específica que regule as questões pertinentes às ciências forenses em ambas as esferas, criminais e não-criminais, tampouco algum tipo de análise da qualidade dos laudos emitidos por estes peritos.
A perícia criminal é regulada pelo Código de Processo Penal e as perícias não-criminais, de maneira geral, pelo Código de Processo Civil.
Está previsto no artigo 158 do Código de Processo Penal, que quando o crime deixar vestígios será indispensável exame de corpo de delito, direto ou indireto, não sendo suprido este pela confissão do acusado. O exame do corpo de delito será conduzido pelo perito oficial que deverá ser portador de diploma universitário (BRASIL, 1941).
Como mencionado, peritos nas questões cíveis são escolhidos dentre os peritos que se inscreveram naquela determinada jurisdição, tendo as partes cinco dias para apresentarem os quesitos aos peritos. O artigo 436 do Código de Processo Civil estabelece que o juiz não está vinculado ao laudo pericial e que a sua convicção se dará com o conjunto probatório carreado no processo (BRASIL, 1973).
Conforme Carper (2000) o engenheiro forense é o profissional da engenharia que trata de problemas de engenharia em questões legais. As atividades relacionadas à engenharia forense incluem a determinação das questões físicas ou técnicas de acidentes ou falhas, preparação de relatórios e apresentação de pareceres que auxiliem na solução da demanda. Também pode opinar sobre as responsabilidades por determinado acidente ou falha.
O engenheiro forense também aplica o estado da arte da ciência da engenharia no Judiciário, o que inclui a investigação das causas físicas de acidentes e outros tipos de reclamações e litígios, elabora relatórios de engenharia, atua como perito em audiências e julgamentos em processos administrativos e judiciais, e ainda interpreta pareceres para auxiliar na resolução de litígios que versem sobre a vida ou a propriedade.
A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) por sua Norma Brasileira (NBR) 14.653-1 define a Engenharia Legal como “Parte da engenharia que atua na interface técnico-legal envolvendo avaliações e toda espécie de perícias relativas a procedimentos judiciais” (ABNT, 2001).
Para que o profissional da engenharia possa atuar como perito, a primeira habilidade necessária é possuir a competência em sua especialidade dentro da disciplina de engenharia. Esta competência deve ser adquirida tanto pela educação como pela experiência, o que indica que um profissional que possui uma grande experiência profissional pode atuar melhor do que um outro engenheiro que não possua tanta experiência, mas que possua o mesmo nível de educação.
Outra habilidade importante e necessária para engenheiro atuar como perito é o conhecimento dos procedimentos legais e do vocabulário jurídico, ou seja, da linguagem utilizada nos tribunais para que não cause problemas ou mal-entendidos durante o processo.
A regulamentação profissional e técnica no Brasil dos peritos que atuam na área de engenharia é feita pela Confederação Brasileira de Engenharia e Agronomia (CONFEA), que é uma autarquia pública federal, tendo adotado esta denominação em 11 de dezembro de 1933, pelo Decreto Federal nº 23.569 (BRASIL, 1933). Em seu modelo atual, é regido pela lei 5.194 de 1966, representando também os geógrafos, geólogos, meteorologistas, tecnólogos, técnicos industriais e agrícolas e especializações, em um total de centenas de títulos profissionais.
O sistema CONFEA possui mais de um milhão de profissionais cadastrados, respondendo a aproximadamente 70% do PIB brasileiro. O conselho é o nível mais alto da regulamentação profissional nesta área de conhecimento, encarregando-se de interesses humanos e sociais de toda a sociedade, regulando e fiscalizando o exercício profissional em todas as áreas sob sua tutela. Também é da competência do Conselho Federal a expedição de autorização para atuação como perito do profissional de engenharia, mas esta é apenas no âmbito administrativo(CONFEA, 2014).
Os princípios que norteiam as perícias de engenharia são o estado da arte e as boas práticas adotadas em cada especialidade, e eventualmente em que for aplicável, as regulamentações expedidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), entidade privada sem fins lucrativos que tem por objetivo promover o desenvolvimento da técnica e o estabelecimento de padrões de normalização na investigação científica, técnica, industrial, comercial, agrícola e outros, de forma a contribuir para o desenvolvimento científico e tecnológico, proteção do meio ambiente e defesa do consumidor (ABNT, 2014).
A ABNT também representa oficialmente o país em entidades internacionais como a International Organization for Standardization (ISO), Comissão Panamericana de Normas Técnica (COPANT) e a Associação Mercosul de Normalização (AMN).
Um problema recorrente é a falta de um mecanismo oficial de controle do corpo de peritos, que muitas vezes, apesar de possuir a habilitação para o exercício profissional, não possuem conhecimento técnico suficiente para realizarem trabalhos periciais que exigem um conhecimento profundo naquela área ou ainda uma metodologia adequada para a realização do trabalho.
Existem normativos que preveem casos em que o perito não tem conhecimento técnico ou científico para realizar o encargo pericial, como o artigo 424 do Código de Processo Civil, que prevê a substituição do profissional que se declarar inapto para a realização do encargo. Já a Decisão Normativa 69 do CONFEA trata o caso como infração ética. Também o Código de Processo Penal prevê em seus artigos 343 e 344 punições que variam de três a quatro anos e multa para a falsa perícia, devendo haver dolo do agente (BRASIL, 1941).
Quando se trata da questão da atribuição profissional, se faz necessária a distinção entre a capacidade acadêmica, os requisitos legais e da qualificação profissional, já que, apesar de serem distintos, existe uma relação de dependência entre eles, sendo cada um decorrente do outro(YEE, 2009).
Uma vez obtido o diploma de graduação, adquire-se a capacidade acadêmica, porém ainda não é possível o exercício da profissão, o que acontece com o registro no respectivo conselho profissional, que é a autorização legal para exercício da profissão, e assim a qualificação profissional será adquirida pela experiência e com aperfeiçoamento profissional.
Existe uma diferença, para os profissionais de engenharia, entre atribuições profissionais e conhecimentos técnicos, pois estes não estão necessariamente associados. As atribuições profissionais são conferidas conforme resoluções expedidas pelo CONFEA, sendo diferenciada para cada tipo profissional do sistema, enquanto os conhecimentos técnicos são adquiridos pela experiência.
Assim, não é suficiente o mero registro do perito pelo respectivo órgão de classe profissional, sendo essencial o profundo conhecimento técnico e científico.
Este conhecimento técnico e científico será construído pelo conhecimento acumulado com a graduação e outros cursos específicos, sendo um exemplo clássico aquele em que o engenheiro recém-formado se registra em seu órgão de classe, recebe sua autorização para a realização de atividades periciais, porém não possui a experiência profissional e tampouco os conhecimentos dos aspectos legais relacionados à atividade pericial.
A falta de conhecimento dos aspectos legais é também essencial para o exercício da atividade pericial, e estes não estão incluídos nos currículos de graduação da maior parte dos cursos. Este é um problema que poderia ser suprido pela adequação do Código de Processo Civil e também pela inclusão de disciplinas relacionadas à perícia nos currículos de graduação.
Outro problema é que raramente os profissionais que não cumprem corretamente com seu ofício são punidos, sendo que as denúncias sequer chegam aos Conselhos Profissionais, pois tanto as partes como os juízes acabam por não oferecer estas denúncias, ficando como pena para estes maus profissionais apenas a não solicitação de seus serviços em outros casos.
Outro aspecto é que o juiz é leigo e muitas vezes não possui conhecimento suficiente para avaliar a qualidade científica da técnica utilizada pelo perito, ou seja, se este se utilizou de uma técnica cientificamente aceita, ou a técnica correta que pudesse inferir resultados confiáveis, o que também dificulta a punição dos maus peritos, não existindo também qualquer procedimento ou instrumento legal que possa fazer este controle da qualidade técnica.
A Constituição americana estabelece um sistema federativo de governo, dando poderes específicos para o governo federal ficando para os estados tudo aquilo que não for competência deste primeiro. Os cinquenta estados do país têm sua própria constituição, estrutura de governo, códigos e sistema judicial próprio.
O sistema jurídico adotado é o da Common Law, baseado no estudo dos precedentes judiciais, cuja origem é anglo-saxônica. O Poder Judiciário federal tem sua competência estabelecida na Constituição. Os tribunais federais têm jurisdição exclusiva somente em casos envolvendo leis federais, disputas entre estados e questões que envolvam governos estrangeiros.
Na grande maioria dos casos, os tribunais estaduais têm jurisdição exclusiva, salvo em hipóteses em que os tribunais estaduais e federais compartilhem a jurisdição, como por exemplo, em casos de partes que residam em diferentes estados.
Em todos os casos criminais é utilizado o julgamento pelo júri, assim como na maioria dos casos cíveis. O júri é composto por doze cidadãos que ouvem a apresentação das provas e aplicam a lei conforme determinado pelo juiz com base nas provas que foram apresentadas durante o julgamento (FEDERAL JUDICIAL CENTER, 2014).
Para garantir a confiabilidade da opinião dos peritos, algumas medidas são tomadas antes da apresentação das provas periciais no julgamento pelo júri em um tribunal federal, havendo etapas preliminares:inicialmente o perito é selecionado e pago pela parte interessada; são então avaliados os materiais que serão utilizados; é emitido um relatório e o perito então presta seu testemunho. A admissibilidade desta prova pericial passa pelo juiz de primeira instância, chamado de trial judge (JURS, 2012).
Para apresentar um parecer, o perito escolhido deve ter qualificação e ser capaz de satisfazer os requisitos de admissibilidade estabelecidos pela Suprema Corte na década de 1990, nos casos Daubert, Joiner e Kumho, basicamente. A decisão mais recente, a do caso Kuhmo, confirmou e esclareceu mais uma vez que os juízes de primeira instância devem agir como guardiões, ou gatekeepers, para determinar a admissibilidade da prova pericial, para garantir a certeza de que a prova pericial é relevante e confiável (SULLIVAN, AGARDY, TRAUB, 2001).
Antes destas decisões, o que pautava a aceitação da prova pericial era o chamado “Teste Frye de aceitação geral”, decisão dada no caso Frye v. United States, em que há mais de 80 anos foi analisada a aceitabilidade da utilização do chamado detector de mentiras como prova válida no processo, e gerou muita polêmica quanto aos padrões gerais que deviam ser aceitos pelos tribunais quanto as provas periciais.
No caso Frye, o réu foi submetido a um teste científico concebido para determinar a inocência ou culpa baseado na variação da pressão arterial do acusado quando questionado sobre fatos relacionados com o crime pelo qual estava sendo acusado, o que é chamado popularmente de “detector de mentiras”. O réu contestou a metodologia e os resultados, baseado na novidade técnica do aparato.
O Tribunal então, ao julgar o caso, argumentou que é difícil saber quando um princípio científico ou descoberta cruza a linha entre as fases experimentais e finais. A força probatória daquele princípio deve ser reconhecida em algum momento pela comunidade científica, mas até que isso ocorra, a dedução deve ser suficientemente estabelecida para ter aceitação geral no domínio específico de conhecimento a que pertence.
Assim, à luz da nova regra, o Tribunal declarou que o teste de pressão arterial em questão ainda não tinha atingido tal posição, e não tinha o reconhecimento científico para que fosse aceito no Tribunal, assim como o testemunho daquele perito em primeira mão. O Frye test of general acceptance, como passou a ser chamado, foi utilizado pelos tribunais federais por mais de cinquenta anos,sendo aplicado exclusivamente para o testemunho de peritos baseados em novas técnicas científicas. Este teste também foi adotado e aplicado em por muitos tribunais estaduais, sendo que muitos deles o aplicam até os dias de hoje.
Desta forma, até 1975, o Frye test era a regra, quando então o congresso americano promulgou as Federal Rules of Evidence (FRE), ou normas federais de evidência, que aparentemente criavam um novo padrão para os tribunais apreciarem a admissibilidade da prova pericial. Este normativo consistia em diversas regras que determinavam padrões de aceitação para as provas periciais. A FRE 104 delegou à corte distrital o poder de determinar a qualificação da testemunha. Questões preliminares relativas à qualificação de uma pessoa para atuar como testemunha, como ser privilegiada, ou a sua admissibilidade, passaram a ser responsabilidade do tribunal.
A FRE 702 trazia novos parâmetros, além do Frye test, para os tribunais apreciarem a admissibilidade da prova pericial. Esta regra prevê que o cientista, o técnico ou o assistente, deverá ajudar o juiz da causa a entender a prova, ou determinar o fato em questão.Uma testemunha qualificada como perito, será determinada por conhecimento, habilidade, experiência, formação ou qualificação podendo testemunhar sob a forma de laudo ou outra forma possível.
A coexistência das duas regras criou uma grande confusão e diferentes vertentes surgiram dentre os tribunais que aplicavam as regras.
Esta incerteza foi superada pela decisão da Suprema Corte americana no caso Daubert v. Merrel Dow Pharmaceuticals. Neste caso os autores estavam tentando introduzir o testemunho de especialistas que afirmavam que os defeitos de nascimento ocorridos em crianças estavam ligados à utilização de tratamento com a droga denominada Bendectin pelas mães.
O tribunal considerou que a FRE 702 superava o Frye test, não sendo este pré-condição de admissibilidade da prova científica, e considerou o tribunal de primeira instância como guardião para determinar a admissibilidade da prova pericial, garantindo seu fundamento em uma base confiável e também que esta prova deveria ser relevante para a questão em análise.
Em Daubert, o juiz deve considerar duas questões: a relevância e a base científica. Assim, para determinar a relevância, o juiz deve assegurar que o perito vai ajudar o juiz a entender ou determinar o fato em questão. Também deve considerar a confiança na base científica, ou seja, a metodologia pode e deve ser testada, e também constatar se esta metodologia passou por uma revisão pelos pares (peer review) ou se foi publicada em revistas científicas, se as taxas de erros são conhecidas, se existem padrões de controle e de operação e ainda se a teoria obteve aceitação geral na comunidade científica.
O Tribunal considerou que esta lista de questionamentos não é definitiva, reconhecendo ainda que a revisão por pares ou publicação não é sempre uma questão determinante, já que nem sempre se correlacionam com a confiabilidade, com algumas proposições muito particulares, muito recentes ou de escopo muito limitado para ser publicado.
Os fatos de cada caso devem ser considerados para se obter uma convicção de admissibilidade. Mesmo indícios fracos são admitidos em primeira instância, já que o tribunal e as partes têm outros meios para alcançar a verdade.
No caso General Electric Company v. Joiner a Suprema Corte esclareceu mais alguns pontos, quando julgou o caso em que o autor alegava que a exposição em seu local de trabalho aos bifenilos policlorados (PCB) e seus derivados geraram pequenas células cancerígenas em seus pulmões. O autor admitiu ser fumante.
O tribunal distrital concedeu julgamento sumário para a empresa ré, baseando-se no fato de que não havia nexo de causalidade entre a exposição aos PCBs e a doença do autor. O tribunal descobriu que o testemunho do perito do autor utilizou-se de argumentos subjetivos e especulações não fundamentadas.
Em grau recursal, o Décimo Primeiro Tribunal de Apelações reverteu a decisão afirmando que as Federal Rules of Proof relacionadas aos peritos, ajudam na admissibilidade e, portanto, os tribunais recursais devem adotar um padrão rigoroso de avaliação para a exclusão da prova pericial pelo juiz.
A Suprema Corte reverteu a decisão do Tribunal de Apelação, alegando que os tribunais de apelação devem ser mais criteriosos para admitir ou excluir o testemunho de peritos. Analisando-se a admissibilidade da prova pericial em questão, pôde-se perceber que os estudos apresentados foram diferentes do caso apresentado pelo autor e, portanto, não forneceu base adequada para as alegações. O Tribunal declarou ainda que, embora em Daubert havesse a exigência dos tribunais focarem apenas em princípios e metodologias, e não sobre as conclusões geradas, não se obriga a admitir uma prova onde há uma grande omissão nos dados apresentados e no parecer oferecido.
Permanecia ainda o problema da prova pericial não-científica, o que não foi resolvido por Daubert, já que este tratou apenas das provas científicas por peritos, ficando a dúvida se os tribunais de primeira instância deveriam também atuar como gatekeepers nesses casos.
Em Kumho Tire Company v. Carmichael, o Tribunal considerou que Daubert deve ser aplicado a todos os tipos de provas.
O caso tratou sobre um acidente automobilístico causado por um pneu furado que matou uma pessoa e causou ferimentos a outras pessoas. A alegação foi de que o pneu tinha um defeito de fabricação, com base em estudos realizados por engenheiros.
Foi confirmado que na avaliação técnica das provas o juiz de primeira instância pode considerar os fatores Daubert na medida de sua relevância, e que a aplicação destes fatores deve depender da natureza da questão, a área de especialização do perito e o assunto sob discussão. Os fatores Daubert devem ser utilizados para serem úteis, e não imutáveis, sendo responsabilidade do gatekeeper avaliar cada caso, exceto quando o juiz de primeira instância for além dos fatores Daubert para avaliar a relevância e confiabilidade, garantindo que as técnicas utilizadas foram rigorosas.
Uma pesquisa realizada entre juízes americanos que julgam as provas periciais em uma era pós-Daubert é clara a crença de que a intenção destas regras são conter a chamada junk science, ou seja, da pseudociência ou a ciência sem fundamentos realmente científicos (GATOWSKI, et al., 2003).
Constatou-se também que os juízes têm dificuldades em operacionalizar os critérios Daubert e aplicá-los, especialmente no que diz respeito à falseabilidade e taxa de erro. Os juízes têm também dificuldade de entender o significado científico destes critérios. Outro ponto é que a validade e a confiabilidade de abordagens e procedimentos para a análise forense devem ser testadas, havendo um esforço da comunidade para que esse objetivo seja atingido (MORRISON, 2014).
Os programas de certificação para os indivíduos e a acreditação dos cursos e programas educacionais e laboratórios criminais são voluntários e não são supervisionados pela American Academy of Forensic Science (AAFS), que possui um conselho para examinar os organismos de certificação existentes (GEWIN, 2009).
Randall K. Noon define engenharia forense como a aplicação de princípios de engenharia e metodologias para responder a questões de fato. Estas questões de fato são normalmente associadas com acidentes, crimes, eventos catastróficos, a degradação da propriedade, e vários tipos de falhas (NOON, 2001).
Como no Brasil, nos Estados Unidos os peritos em engenharia forense se utilizam das disciplinas da engenharia para auxiliar na resolução de questões jurídicas. Eles atuam em todas as áreas da engenharia, sendo necessário pelo menos o grau de bacharel em engenharia, sendo a maioria dos profissionais licenciados como engenheiros. Esta licença pode ser necessária para algumas práticas. Alguns engenheiros forenses têm mestrado e doutorado também.
A maioria dos peritos em período integral nos Estados Unidos ou possuem pequenas empresas privadas ou estão na área privada. Também existem acadêmicos que eventualmente realizam consultorias. Existem muitos engenheiros forenses envolvidos na reconstrução de acidentes de trânsito (carros, trens, aviões, etc.), assim como em falhas de construção, de materiais, colapsos estruturais, dentre outros (GAENSSLEN, 2003).
Os deveres dos engenheiros surgem pelos seguintes instrumentos: contratos de serviços de engenharia; legislações que regem as licenças para os engenheiros; recomendações de boas práticas e códigos de ética promulgados por sociedades profissionais e ainda na jurisprudência, que é a lei baseada em decisões judiciais anteriores.
A jurisprudência estabeleceu que os engenheiros têm o dever de prestar os seus serviços consistentes com o padrão de atendimento de suas profissões. Os padrões do júri exigem que o profissional da engenharia, ao prestar um serviço para um cliente, têm o dever de ter o grau de conhecimento e a habilidade necessárias para o exercício do encargo, baseados nos mesmos conhecimentos e habilidades de outros profissionais respeitados que exercem suas atividades na mesma localidade e em circunstâncias semelhantes.
É também sua obrigação o uso de suas habilidades da mesma forma que outros profissionais renomados o fazem na mesma localidade e em circunstâncias semelhantes. Deve se utilizar de razoável diligência e de seu melhor julgamento no uso de sua competência profissional, aplicando seu conhecimento e se esforçando para cumprir a finalidade pela qual foi contratado. O não cumprimento de qualquer um dos deveres é considerado como negligência.
Assim sendo, são quatro as principais obrigações apresentadas para instrução no júri: ter conhecimento e habilidade; utilizar cautela e habilidade; fazer uso de diligência razoável e de seu melhor julgamento; e esforçar-se para atingir o objetivo para o qual foi contratado (KARDON, 2005).
No sistema jurídico americano, pode-se dizer que a qualidade dos serviços dos profissionais de engenharia é determinada pelo gatekeepers no momento da admissibilidade das provas, ao contrário do perito no sistema brasileiro, que é escolhido pelo juiz.
Apesar das falhas que o sistema pode fornecer, existem normas que, embora não sejam decisivas, servem para orientar o tribunal quanto à admissibilidade de uma prova específica, ficando o sistema sempre sujeito a melhorias por uma nova decisão, já que o sistema é baseado no histórico das decisões anteriores.
No Brasil, o foco é o perito e seus conhecimentos técnicos, ou seja, das qualidades da pessoa, enquanto que nos Estados Unidos, o foco está no resultado do trabalho do perito: se o trabalho é útil e se tem credibilidade, caso contrário, se foi utilizada a chamada junk science, o profissional não tem qualidade.
O maior problema do sistema brasileiro de escolha do perito é que esta fica a cargo do juiz, não tendo este, como nos Estados Unidos, padrões para a admissibilidade da prova pericial, ficando a cargo dos assistentes técnicos fazerem o papel de gatekeepers, o que nem sempre acontece.
Muitas vezes, peritos com pouco conhecimento ou experiência, ou ainda que não se utilizam das técnicas adequadas acabam por influenciar a decisão do magistrado, pois este acredita em seu auxiliar e também não possui parâmetros eficazes para avaliar a qualidade do trabalho daquele profissional.
Não existe uma lista de peritos disponível para o juiz que possa garantir a qualidade dos profissionais ali inscritos, já que estes não são avaliados objetivamente, assim como o método científico não é avaliado, o que acaba por expor o juiz a tomar decisões baseadas em informações não confiáveis.
O trabalho dos assistentes técnicos poderia ser valorizado, o que já vem de certa forma acontecendo ultimamente, contribuindo para que possam colocar contraponto no desempenho do perito do juízo, sendo seus críticos, quase como nos Estados Unidos quando se utiliza o método do cross-examination no testemunho do perito.
Apesar dos sistemas judiciais serem diferentes, a ideia do controle dos profissionais que atuam como peritos e também dos resultados das suas investigações, ou seja, se os laudos periciais estão embasados cientificamente, está presente nos dois sistemas.
Para que o sistema atualmente em vigor no Brasil possa atingir este objetivo, é necessário realizar mudanças na legislação em vigor, o que somente acontecerá se houver uma mobilização dos profissionais da perícia e também dos juízes.
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* Alexandre Alberto Gonçalves da Silva é mestre e doutorando em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. É advogado, auditor da Universidade Federal do ABC e responsável pelos assuntos jurídicos da Agência de Inovação da Universidade Federal do ABC.
· Pedro Luís Próspero Sanchez é engenheiro eletricista, doutor e livre-docente em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. É bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É professorlivre-docente do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos daEscola Politécnica da Universidade de São Paulo, onde é coordenador do Grupo de Engenharia Legal, Ciência e Tecnologia Forense daUniversidade de São Paulo.
Doutorando em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. É advogado, auditor da Universidade Federal do ABC e responsável pelos assuntos jurídicos da Agência de Inovação da Universidade Federal do ABC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Alexandre Alberto Gonçalves da. Considerações sobre as perícias de engenharia no Brasil e nos Estados Unidos: os gatekeepers e a admissibilidade das provas científicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jan 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42821/consideracoes-sobre-as-pericias-de-engenharia-no-brasil-e-nos-estados-unidos-os-gatekeepers-e-a-admissibilidade-das-provas-cientificas. Acesso em: 22 nov 2024.
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