RESUMO: O presente trabalho visa demonstrar, à luz das normas de regência, da doutrina e da jurisprudência pátrias, que determinadas atividades ligadas ao poder de polícia podem ser terceirizadas pela Administração Pública.
PALAVRAS-CHAVE: Poder de polícia. Administração pública. Terceirização. Possibilidade.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Do poder de polícia. 2 Da terceirização na administração pública. 3 Da terceirização de parte do procedimento de polícia; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
Com o nascimento do chamado Estado de Direito, foi garantida aos cidadãos uma série de liberdades, cujo uso desmedido pode levar a uma série de conflitos, inclusive com o que pode ser considerado interesse público.
Por isso mesmo, tais direitos possuem limitações, cabendo ao Estado a tarefa de garantir a observância a elas. Para tanto, é-lhe concedido o poder polícia.
Por outro lado, não se pode ignorar que a terceirização é hoje, sem dúvida, uma das formas mais efetivas de se alcançar a eficiência produtiva necessária para suprir as demandas de uma sociedade cada vez mais complexa.
No direito brasileiro, contudo, o instituto da terceirização na Administração Pública sempre suscitou debates acerca dos limites de sua aplicabilidade, ante a existência de uma intricada legislação trabalhista e uma complexa estrutura administrativa pública.
De fato, a legislação trabalhista não esclarece quais os limites da terceirização. As normas administrativas, embora um tanto mais precisas, também não o fazem, especialmente no que se refere a atividades ligada ao poder polícia, considerado monopólio estatal.
Tal cenário é extremamente propício para o surgimento de dissensos sobre o assunto que ora se pretende abordar: a possibilidade de terceirização de atividades ligadas ao poder de polícia.
Para se chegar a uma conclusão cientificamente válida sobre o tema, analisar-se-á os principais dispositivos legais aplicáveis, a doutrina e a jurisprudência pertinentes.
1 DO PODER DE POLÍCIA
Como se sabe, o Estado de Direito deve atuar guiado pelo princípio do interesse público, curvando interesses particulares que se lhe opõem. Para isso, o Estado deve possuir mecanismos que permitam esse controle. Entre eles está justamente o poder de polícia.
Para Carvalho Filho (2008), a expressão poder polícia pode comportar dois sentidos, sendo um amplo e outro restrito. No primeiro, significa toda e qualquer atividade estatal que restringe direitos individuais. Nesse contexto, estaria incluída até a atividade legiferante. Já no segundo sentido, estariam incluídas tão-somente atividades administrativas, subjacentes à lei. É nesse último sentido que se focará o presente trabalho.
No Brasil, existe uma definição legal do vem a ser poder polícia, é aquela feita no art. 78 do Código Tributário Nacional, in verbis:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
A doutrina pátria vai no mesmo norte, ensinar que o sentido de poder de polícia relacionar-se-ia
[C]om as intervenções, quer gerais e abstratas, como regulamentos, quer concretas e específicas (tais as autorizações, as licenças, as injunções), do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais (MELLO, 2010, p. 822).
Justen Filho (2012) lembra ainda que, na atualidade, o conceito tradicional de poder polícia passou por duas grandes modificações. A primeira delas diz respeito à ideia de que a manutenção da ordem pública, objetivo maior do exercício do poder de polícia, não é um fim em si mesma, busca, ante de tudo, o respeito à dignidade da pessoa humana. A segunda consiste na possibilidade de impor não apenas deveres de abstenção (não fazer), como também dever de fazer.
Justen Filho (2012) também recorda que a atividade de poder de polícia se dá basicamente por três formas: a regulamentação (edição de normas infralegais gerais); a emissão de decisões; e a coerção fática propriamente dita.
A doutrina em geral (MELLO, 2010; JUSTEN FILHO, 2012) também admite a delegação de algumas atividades inerentes ao poder de polícia. Uma das formas seria justamente a terceirização, tema cujos contornos básicos serão esclarecidos no capítulo seguinte.
2 DA TERCEIRIZAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Em outra oportunidade já tecemos considerações acerca da terceirização na Administração Pública (RAMALHO, 2014). Reiteramos aqui tais palavras, por serem de total pertinência à matéria em estudo.
A terceirização (ou outsourcing) é uma prática que teve origem na ciência da administração, sendo posteriormente estudada pela economia e, considerando, as vastas implicações jurídicas envolvidas, pelo direito (SEKIDO, 2010).
A melhor definição de terceirização é a de Silva (1997, p. 30), para quem ela seria
[A] transferência de atividades para fornecedores especializados, detentores de tecnologia própria e moderna, que tenham esta atividade terceirizada como atividade-fim, liberando a tomadora para concentrar seus esforços gerenciais em seu negócio principal, preservando e evoluindo em qualidade e produtividade, reduzindo custos e gerando competitividade.
No que se refere à terceirização na Administração Pública brasileira, Neiva (2012) lembra que tal instituto surgiu por meio do Decreto-Lei n. 200/1967 e da Lei n. 5.645/1970. Em seguida, com a promulgação da Lei n. 6.019/1974, surgiu a terceirização temporária. Já 1983, entrou em vigor a Lei n. 7.012/1983, dispondo sobre a terceirização de atividades de segurança privada.
Nota-se, pois, que se trata de legislação anterior à atual ordem constitucional do Brasil, embora estreitamente ligada ao princípio da eficiência, expressamente previsto na Constituição Federal desde a EC n. 19/1998. Não se ignora que a terceirização traz vantagens e desvantagens para o serviço executado dessa forma, porém, entrar nesse mérito extrapolaria a proposta do presente trabalho.
Os principais diplomas normativos acerca da terceirização na Administração Pública continuam sendo o Decreto-Lei n. 200/1967 e o Decreto n. 2.271/1997. O primeiro, recepcionado como lei pela Constituição Federal de 1988 no que lhe é compatível, determina em seu art. 10, § 7º:
Art. 10 [...] § 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.
Já o Decreto n. 2.271/1997, que regulamentou o dispositivo supra transcrito, enuncia logo em seu art. 1º que
Art. 1º No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade.
§ 1º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta.
§ 2º Não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.
Como se vê, para evitar o inchaço desmedido da máquina administrativa, quaisquer atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares à competência do órgão ou entidade podem ser terceirizada. No que tange especificamente as atividades conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações, devem elas preferencialmente ser executadas por meio de terceirização.
Perceba-se que o Decreto-Lei n. 200/1967 prevê que a Administração deve recorrer sempre que possível à terceirização para realização material de tarefas executivas. No entanto, para adaptar tal imposição ao princípio do concurso público previsto no art. 37, inciso II, da Constituição Federal de 1988, o Decreto n. 2.271/1997 pronuncia a impossibilidade de terceirização quanto a atividades inseridas nas atribuições de cargos públicos existentes na entidade pública tomadora dos serviços terceirizados.
Ora, se Administração precisa executar atividade que está no rol das atribuições de determinado cargo público existente na entidade pública, despicienda será a terceirização. Basta nomear algum cidadão para ocupar esse cargo, respeitada a exigência constitucional de concurso público se for o caso.
Entretanto, sendo impossível essa nomeação por se tratar de cargo que nunca existiu, que não mais existe ou que está em extinção, abre-se a via da terceirização, não havendo que se falar em burla ao princípio constitucional do concurso público.
Ocorre que nem sempre é fácil identificar com precisão as atribuições dos diversos cargos públicos constantes na estrutura administrativa de uma entidade pública. O mesmo se pode dizer quanto aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade. No mais das vezes, tais atribuições e assuntos são dispostos de forma genérica, de modo que não há como definir que atividades podem ou não ser terceirizadas.
Por isso, exsurgem diversas ações judiciais na Justiça do Trabalho aventando a ilegalidade da terceirização realizada por diversos órgãos públicos, notadamente no que se refere ao exercício do poder polícia, tema abordado no capítulo seguinte.
3 DA TERCEIRIZAÇÃO DE PARTE DO PROCEDIMENTO DE POLÍCIA
Como já ficou dito, a doutrina admite a delegação de parte do poder polícia. É que, o chamado poder polícia deve ser entendido como um “procedimento de polícia”, que envolve a realização de atividades diversas, sendo que não há uma relação de todas elas e o exercício da coação. Nas palavras de Rafael Wallbach Schwind (2014, p. 140), baseadas na lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto,
Nem todas as atividades que integram o procedimento de polícia são intrinsecamente estatais. Algumas delas podem ser exercidas por particulares sem que se viole o monopólio da violência pelo Estado ou o princípio da isonomia entre os administrados.
Não há nenhum óbice, por exemplo, a que o Estado acometa a um particular o encargo de colocar à disposição do Poder Público os recursos materiais e técnicos necessários ao exercício da autoridade. O que não se admite é que a Administração abdique genericamente do poder que a sociedade lhe atribuiu de exercer a imperatividade e a capacidade de coação [...].
Uma coisa é decidir o conteúdo jurídico e político relacionado com o poder de polícia. Outra, bem diferente, é a promoção daquilo que foi deliberado pela autoridade pública competente. O procedimento de polícia envolve atividades decisórias e executivas. As primeiras não podem ser exercidas por particulares; as segundas podem.
No mesmo sentido, Justen Filho (2012) enuncia que é inadmissível transfira o poder de polícia para terceiros, mas isso não significa vedação a que certas atividades materiais acessórias ou conexas a tal poder sejam prestadas por particulares, o que não é permitido é que atividades de cunho coercitivo seja exercida por pessoas estranhas aos quadros funcionais do Estado.
Diferente não é o entendimento de Mello (2010, p. 839-40), para quem
A restrição à atribuição de atos de polícia a particulares funda-se no corretíssimo entendimento de que não se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o exercício de misteres tipicamente públicos quando em causa liberdade e propriedade, porque ofenderiam o equilíbrio entre os particulares em geral, ensejando que uns oficialmente exercessem supremacia sobre outros.
Daí não se segue, entretanto, que certos atos materiais que precedem atos jurídicos de polícia não possam ser praticados por particulares, mediante delegação, propriamente dita, ou em decorrência de simples contrato de prestação.
O renomado jusadministrativista, ilustrando seu ensinamento com o exemplo da fiscalização de trânsito, em que a velocidade dos veículos automotores é aferida por equipamentos fotossensores, arremata:
Para a execução desta atividade material, objetiva, precisa por excelência, e desde que retentora de dados para controle governamental e dos interessados, nada importa que os equipamentos pertençam ou sejam geridos pelo Poder Público ou que pertençam e sejam geridos por particulares, aos quais tenha sido delegada ou com os quais tenha sido meramente contratada. É que as constatações efetuadas por tal meio caracterizam-se pela impessoalidade (daí por que não interfere o tema do sujeito, da pessoa) e asseguram, além de exatidão, uma igualdade completa no tratamento dos administrados, o que não seria possível obter com o concurso da intervenção humana.
De resto não há nisto atribuição alguma de poder que invista os contratados em qualquer supremacia engendradora de desequilíbrio entre os administrados, pois não está aí envolvida expedição de sanção administrativa e nem mesmo a decisão sobre se houve ou não violação de norma de trânsito, mas mera constatação objetiva de um fato.
A esse respeito, o Superior Tribunal de Justiça, no emblemático REsp 817.534/MG (Segunda Turma, rel. Min. Mauro Campbell, julgado em 10.11.2009), considerou que as atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupos, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção, sendo que somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público, constituindo monopólio inarredável do Estado.
Observe-se que, por força do disposto no art. 2º, inciso X, da Lei n. 9.784/1999, só será possível aplicar qualquer sanção administrativa após oportunizada ampla defesa ao suposto infrator. Havendo qualquer irregularidade na atividade coercitiva, é de se alegar no competente processo administrativo instaurado após a constatação de eventual infração.
Vê-se, pois, que extensa parte da doutrina se alia à jurisprudência do STJ na orientação de que é possível a delegação de atividades relativas ao poder de polícia, desde que não digam respeito a atos coativos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por tudo que foi exposto acima, conclui-se que, o poder polícia é instrumento essencial de que dispõe o Estado para manter ordem pública, na qual está incluída necessariamente a ideia de dignidade da pessoa humana.
A terceirização na Administração Pública tem bases legais já antigas no Brasil, que permitem a execução indireta de atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade, excluídas apenas as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade.
Segundo a doutrina e a jurisprudência do STJ, é possível a terceirização do poder de polícia, desde que se limite a atividades materiais acessórias, objetivas, e não-coativas, preservando, assim, a isonomia entre o particular que atua junto à Administração e o administrado.
REFERÊNCIAS
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______. Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional). Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm>. Acesso em: 17 out. 2014.
______. Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9784.htm>. Acesso em: 17 out. 2014.
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JUSTEN FILHO, M. Curso de direito administrativo. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
LEITE, C. H. B. Curso de direito processual do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2009.
MELLO, C. A. B. de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
NEIVA, R. Direito e processo do trabalho aplicados à Administração Pública e Fazenda Pública. São Paulo: Editora Método, 2012.
RAMALHO, P. R. A. M. Incompetência da justiça do trabalho para julgar a legalidade de terceirização realizada por pessoa jurídica de direito público. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4154, 15 nov. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/33781>. Acesso em: 8 dez. 2014.
SEKIDO, A. M. Y. Terceirização na administração pública: a gestão e a fiscalização dos contratos. 61 f. Monografia (Especialização em Auditoria Governamental) – Universidade Gama Filho, Brasília, 2010.
SCHWIND, Rafael Wallbach. Particulares em colaboração com o exercício do poder de polícia: o procedimento de polícia. In: MEDUAR, O.; SCHIRATO, V. R. (coord.). Poder de polícia na atualidade. Belo Horizonte: Fórum, 2014.
SILVA, C. P. da. A terceirização responsável: modernidade e modismo. São Paulo: LTr, 1997.
Procurador Federal, lotado na Procuradoria Regional Federal da 1ª Região; especialista em direito tributário pela Unama; e mestrando em direito ambiental e políticas públicas pela Universidade Federal do Amapá.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMALHO, Paulo Roberto Azevedo Mayer. Poder de polícia e terceirização na Administração Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jan 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/42940/poder-de-policia-e-terceirizacao-na-administracao-publica. Acesso em: 22 nov 2024.
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