Orientadora: Professora Ana Frazão
RESUMO: Este trabalho propõe-se a examinar a responsabilidade social nas empresas brasileiras e seu alicerce histórico-jurídico, partindo das causas do surgimento dessa questão e das teorias que a impulsionaram. Ciente da importância que tal tema vem adquirindo tanto nacional quanto internacionalmente, busca-se explaná-lo à luz do art. 154 parágrafo 4° da lei 6.404/76.
Palavras-chave: Responsabilidade Social, Institucionalismo, Contratualismo, Lei das S/As, Função Social.
I. Introdução
O princípio da função social, juntamente com influência da teoria institucionalista, sedimentou na legislação, doutrina e jurisprudência brasileiras a noção de que a empresa e seu patrimônio não devem servir para atender aos interesses exclusivamente dos acionistas, mas também aos de toda a sociedade, em razão de sua importância e seu reflexo nesta. O novo entendimento não exclui a proteção do interesse dos acionistas, o que é essencial para a sobrevivência da companhia, fazendo parte também da função social da empresa seu escopo econômico de gerar lucros, subsistindo, assim, traços da teoria contratualista.
Neste contexto de tensão entre interesses, e de sua harmonização pela função social, surge o fato da cada vez maior disseminação da responsabilidade social voluntária nas empresas nacionais. Tal prática é amparada pelo art. 154, parágrafo 4°, da lei 6.404/76, fazendo parte da política de quase 70% das empresas brasileiras, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)[1].
Assim, no contexto da atual legislação brasileira referente ao direito societário, e das correntes teóricas que impulsionam o tema, algumas questões impõem-se e serão trabalhadas nesta pesquisa. Os assuntos evocados referem-se às causas do crescimento da prática da responsabilidade social voluntária nas empresas brasileiras; à capacidade de tal prática de contribuir para o interesse social, promover e manter a empresa; à compatibilização com o pressuposto empresarial de geração de lucro; e aos limites à responsabilidade social para que a empresa não se publicize.
II. A Expansão da Empresa
É certo que o embrião das sociedades empresárias tais como há atualmente encontra-se nas sociedades mercantis que ganharam peso na Idade Média. Nesta época, mesmo que não houvesse uma personalidade jurídica da empresa, nem uma separação patrimonial absoluta, já estava se originando o entendimento de uma autonomia da sociedade frente a seus sócios, que se refletia na aceitação da capacidade da sociedade de ser titular de direitos. Contudo, esse modelo medieval ainda era marcado pela responsabilidade ilimitada e solidária dos sócios.
Somente com as companhias coloniais da Idade Moderna que começou a aparecer a estrutura basilar das sociedades anônimas, com a responsabilidade limitada dos sócios, o capital social dividido em ações e a personalidade jurídica da empresa. Com a introdução da responsabilidade limitada, desencadeou-se a socialização tanto do investimento, quanto do risco. Note-se que as sociedades mercantis e companhias coloniais estavam situadas num contexto de capitalismo comercial, que estava mais adstrito à circulação de mercadorias.
Mas, foi com o Código Comercial francês de 1807, já inscrito em um contexto pós-Revolução Industrial, muito influenciado pelo liberalismo econômico, que se reconheceu e positivou de vez as companhias, com a regulação das sociedades anônimas firmadas na responsabilidade limitada de todos os acionistas, clareando o entendimento de que as sociedades eram distinguidas pela reunião de capitais e não de pessoas.
Porém, inclusive no Código Comercial brasileiro, que seguiu a legislação francesa, exigia-se autorização estatal para a instituição de uma sociedade anônima, o que gerou grandes barreiras à disseminação desse tipo de sociedade comercial em todo o mundo. Foi só no século XIX que se introduziu o regime da livre criação, superando progressivamente o regime da autorização. Houve, assim, grande proliferação dessa forma de empresa econômica, que foi adotada por muitos países em seus movimentos de industrialização.
A liberalização, então, tornou as sociedades anônimas “instrumento, por excelência, do capitalismo e da macroempresa, possibilitando a realização de grandes empreendimentos por meio da socialização do investimento e do risco”.[2] Como tal, elas transformaram-se em meio condutor desse sistema capitalista industrial que passou a preponderar a partir da Revolução Industrial do século XVIII.
III. Impactos da Empresa na Sociedade
A Revolução Industrial instaurou de modo definitivo o modo de produção capitalista. Os empreendimentos gerados por ela vêm impactando de forma cada vez mais rápida e mais abrangente a vida dos indivíduos. A partir dela, vê-se o crescente estímulo ao desenvolvimento de técnicas e instrumentos inovadores. Além disso, foi desencadeada a busca por fontes de energia cada vez mais potentes e eficientes, passando pelo carvão, ferro, vapor, eletricidade, petróleo, sempre visando à intensificação e diversificação do desenvolvimento tecnológico e ao aumento da produtividade.
Com a sofisticação das máquinas, impulsionou-se a produção e geração de capitais, os quais foram reaplicados em novas máquinas, expandindo cada vez mais esse sistema capitalista. A mecanização começou na indústria têxtil, passando para a metalúrgica e levando à modernização, dos transportes, das telecomunicações e da indústria química. Hoje, a dinâmica tecnológica encontra sua maior expressão nos avanços ultrarrápidos e na obsolescência periódica conduzidos pela microeletrônica, robótica industrial, computadorização dos serviços, química fina e biotecnologia.
Em nome da produtividade impôs-se a especialização do trabalho e fabricação de artigos em série, condizentes com a racionalização da produção em massa. Esse movimento deu origem a grandes indústrias e à enorme concentração econômica.
A expansão da produção instigou a procura por novos mercados, o que atingiu seu ápice com o desenvolvimento das empresas multinacionais. Assim, é notável um desenvolvimento econômico cada vez mais globalizado.
Portanto, não teria como o movimento empresarial, em grande parte na forma de sociedades industriais, passar despercebido pelos indivíduos e comunidades. Em alguma medida, ele mudou e permanece mudando as relações sociais, o meio ambiente e o modo de viver. Transparece, assim, o inegável papel de agente transformador que as corporações assumiram desde a sua origem até os dias atuais.
A empresa, de forma inconteste, está inserida na comunidade em que atua, gerando empregos para a população, atraindo esta a seu redor, fabricando produtos ou oferecendo serviços úteis à comunidade e a outras possíveis demandantes. Além disso, na construção do empreendimento, muitas vezes são criadas estruturas sociais que vão alterar determinantemente a o dia a dia de muitos habitantes do local circunvizinho.
Apesar de a vida humana estar agora muito relacionada com os serviços prestados pelas corporações, por meio dos produtos, riqueza, recursos para tributação, tecnologia e empregos criados por elas, os quais colaboram para facilitar e melhorar a vida comunitária, por outro lado, estão cada vez mais nítidos os malefícios que elas podem gerar.
Devido a sua trajetória ascendente de busca pela eficiência e lucro, algumas empresas, em suas atividades, deixam rastros de poluição, deterioração do meio ambiente, aumentos injustificáveis e gananciosos de preços, condições deploráveis de trabalho e mau funcionamento do sistema econômico. Além de certas empresas reunirem tanto poder em torno de si que são capazes de influenciar políticas públicas, exercendo, além do econômico, um papel político, que, muitas vezes, é visto pelo viés do ilícito.
Não há, destarte, uma maneira de separar nitidamente as implicações, tanto boas quanto ruins, que envolvem apenas a sociedade, e as que estão adstritas exclusivamente à empresa. O organismo sociedade e o organismo empresa estão, em maior ou menor escala, interligados, e suas transações afetam-lhes mutuamente.
Nesse contínuo, as pessoas comuns e os estudiosos vêm se atentando para todos os efeitos gerados pela atividade empresarial, decorrentes de sua influência, dinamismo e poder de transformação. Tal conscientização deve-se, em grande parte, a uma maior democratização da informação. Assim, de maneiras variadas, os indivíduos estão fazendo uma cobrança sobre a empresa para que esta explicite sua preocupação e atitude em relação às questões sociais. Esta, por sua vez, está começando a responder, de forma positiva e proativa, à cobrança, dentre outras maneiras, por meio da responsabilidade social.
IV. Interesses da Sociedade Empresária
IV.1 Institucionalismo x Contratualismo
Em meio a toda essa complexidade das relações econômicas resultante da atividade das empresas, e do grande destaque que estas têm ganhado ao longo dos anos, relevantes fazem-se os debates que têm o intuito de demarcar o interesse pelo qual deve se pautar a sociedade empresarial. Isso constituirá em arcabouço teórico da questão da responsabilidade social.
O chamado interesse social costuma ser relacionado com a finalidade última da atividade empresarial, sendo o objeto social um meio para atingi-la. A importância da definição desse interesse, além de estar em uma melhor compreensão da esfera de ação dos organismos econômicos, encontra-se, no âmbito jurídico, no parâmetro que ela pode dar para o julgamento da licitude dos atos da administração da empresa. Assim, duas concepções principais a respeito do interesse social podem ser explanadas aqui, quais sejam, o contratualismo e o institucionalismo.
O contratualismo surgiu no século XIX, época em que era ausente uma firme e conclusiva discussão acerca do conceito de empresa, cujo aspecto econômico tinha visibilidade consideravelmente maior frente ao jurídico. A empresa era comumente vista como a sucessão de atos de comércio, os quais constituíam a noção de direito comercial, fato que ou retirava qualquer identidade da empresa, ou a fazia ser descrita por meio dos institutos civis. Isso destituía a sociedade anônima de um claro interesse social.
Tal contexto facilitou a penetração do pensamento contratualista, que pregava ser o interesse social o interesse dos próprios acionistas, com o direito inglês definindo como trustees dos acionistas os administradores, cujo dever era cuidar do melhor interesse daqueles. Dessa forma, o patrimônio social, os direitos e a liberdade de iniciativa teriam que ser direcionados exclusivamente para o benefício dos acionistas. Segundo preceitua Calixto Salomão, esse período foi marcado por grande individualismo, sendo a sociedade considerada “coisa dos sócios”, e a assembleia possuindo pleno poder para delimitar o interesse social e a organização societária[3].
Havia, porém, uma tentativa por parte da doutrina de diferenciar a causa mediata dos acionistas, que seria o lucro, da causa imediata, que seria o esforço conjunto dos acionistas para realizar o objeto social. Só que a estrutura da sociedade anônima, a qual reúne acionistas por causa do capital e não de uma affectio societatis, ensejava a confusão entre as causas mediata e imediata da sociedade, condicionando-as para a busca das finalidades econômicas em sua maior intensidade.
O institucionalismo, por sua vez, teve ascensão no século XX, trazendo uma visão mais aprofundada sobre o aspecto teleológico da empresa, que deveria apontar para um “fim coletivo socialmente relevante, e a manifestação de uma vontade coletiva distinta da vontade individual de seus componentes”[4]. Por isso, essa posição constituiu-se em notável embate ao contratualismo, lançando uma abordagem do interesse social pelo interesse da empresa, e não simplesmente dos acionistas.
O institucionalismo não inaugurou a crítica ao contratualismo, pois desde o século XIX já se atentava à diversidade de interesses dos acionistas. Além disso, o desenvolvimento do conceito de empresa também causou contraste com a visão contratualista de que o interesse social correspondia apenas aos interesses individuais dos sócios. Mas foi aquela doutrina que instaurou um firme debate que se espalhou para vários países.
Na Alemanha, no final da Primeira Guerra e em um cenário de autoritarismo, o institucionalismo ganhou contornos mais radicais. Sua doutrina da “empresa em si”, inseria o interesse social em um nível transcendente aos sócios, intrinsecamente ligado às idéias de função social e de coletividade nacional. Para ela, a empresa era instrumento essencial à reconstrução econômica do país, devendo ser protegida pelo Estado. O extremismo que chegou a uma publicização da sociedade anônima ocorreu na positivação dessa teoria alemã em 1937, quando se ditou que a empresa deveria agir para o bem dos empregados, do interesse comum do povo e do Reich. Essa visão “quase mística” da sociedade, segundo muitos teóricos, desprezava o lucro, motor da empresa.
Não é à toa que as empresas germanas aderiram à forma mais forte de codeterminação, que se encontra dentro de um modelo de governança que Kraakman chama de labor-oriented[5]. Entre 1952 e 1976, sua lei autorizava os empregados a eleger metade dos diretores da camada superior do quadro, enquanto, outros países europeus que adotaram essa participação davam-lhes apenas uma representação minoritária.
Já nos Estados Unidos, em uma percepção mais abrandada e dentro de seu contexto liberal, o institucionalismo privilegiou um alargamento do interesse social, mas sem chegar a um posicionamento publicista. Houve uma tentativa de afastar a noção dos administradores como trustees dos acionistas, guardiões apenas das causas destes. Fábio Comparato propugna que, nos Tribunais americanos, foi-se estabelecendo a concepção de que os administradores não deveriam ser tidos como representantes da maioria dos acionistas, nem estar sob seu controle[6].
Foi esse viés mais moderado do institucionalismo que foi disseminado por muitos países, inclusive pelo Brasil. A Itália passou a defender um melhor equilíbrio entre a assembléia geral e a administração, o que também foi amplamente adotado no exterior. A incorporação do institucionalismo na legislação brasileira encontra-se visível no art. 116, parágrafo único e no art. 154, ambos da Lei n° 6.404/76, in verbis:
“Art.116 (...)
Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.”
“Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”
Nas cláusulas gerais transcritas acima, percebe-se o cuidado do legislador brasileiro em evidenciar que a empresa não se reduz ao interesse dos sócios, sendo bem detalhista quanto à abrangência das responsabilidades do acionista controlador no art. 116, e usando o termo “interesse da companhia” no art. 154, que denota escopo bem mais amplo também.
Destarte, com o institucionalismo, “a missão dos administradores passou a ser, sobretudo, a de equilibrar, mediar e coordenar todos os interesses envolvidos na empresa”[7]. Por isso, outro resultado desta teoria, ao contrário da contratualista, foi aumentar os poderes delegados à administração frente à assembléia geral.
IV.2 Shareholder value model versus Stakeholder value model
O embate entre contratualismo e institucionalismo renasceu mais recentemente sobre uma abordagem semelhante, correspondendo, respectivamente, às teorias do shareholder value e stakeholder value. O debate de Berle e Dodd, ocorrido na década de 30, é comumente remontado como a origem dessa disputa. Berle, prenunciando o shareholder model, propagava que os beneficiários únicos dos deveres corporativos seriam os acionistas. Em suas palavras:
“all powers granted to a corporation or to the management of a corporation, or to any group within the corporation... are necessarily and all times exercisable only for the ratable benefit of all the shareholders as their interest appears”.[8]
Por sua vez, Dodd, tido como o propagador do stakeholder model, propugnava que as organizações teriam deveres em relação a um alvo bem maior, que abrangeria não só os interesses dos acionistas, como também os empregados corporativos e outros amplos objetos sociais. Seu pensamento é bem exemplificado por este excerto:
“[the managers] are guardians of all the interests which the corporation affects and not merely servants of its absentee owners”
Kraakman e Hansmann, defensores do primeiro modelo, afirmam que a lei e a governança corporativa teriam chegado a uma padronização em quase todo o mundo, pautada pelo entendimento de que deveria seguir exclusivamente os interesses econômicos dos acionistas, incluindo os minoritários ou não controladores, os quais deveriam ser protegidos do abuso dos acionistas controladores[9].
Para eles, as práticas de governança corporativa estão convergindo a um “standard shareholder oriented model”, e uma de suas características seria considerar o valor de mercado das ações a principal medida dos interesses dos acionistas. O resultado disso seria um solapamento dos outros modelos que se tentou colocar em prática no século XX, como o manager-oriented, o labor-oriented, o state-oriented, e o stakeholder-oriented, que seria uma variação do primeiro e do segundo listados[10].
O controle final sobre a empresa deveria estar centrado nos acionistas, e a eles que os administradores deveriam prestar contas. Essa seria a melhor forma de gerar um bem estar social agregado. Por outro lado, mecanismos legais coerentes para proteger os interesses dos não acionistas estariam fora da lei corporativa, dentro da lei do trabalho, lei da aposentadoria, lei de segurança e saúde, lei antitruste, lei de regulação da segurança do produto, lei ambiental, dentre outras.
As razões que mostrariam a maior eficiência desse sistema seriam a maximização do valor da empresa gerada por ele, a proteção aos interesses dos investidores, os quais normalmente não estão firmemente amparados apenas pelo contrato, e o complemento ao interesse dos não acionistas, os quais já teriam o resguardo do contrato e da lei.
Por sua vez, o stakeholder value model, seguindo a leitura de Dodd, argumenta que os administradores devem visar sobre os interesses imediatos dos acionistas e agir em prol de objetivos mais amplos, como dos stakeholders. Este termo denota todos os grupos de interesse envolvidos nas ações da empresa, direta ou indiretamente, tais como os acionistas, os empregados, os fornecedores, os credores, os consumidores, a comunidade e o meio ambiente.
Leonard I. Rotman, como signatário do stakeholder model, tenta defendê-lo e combater a idéia de que haveria uma unificação mundial entorno do shareholder value model. Ele sustenta sua crítica ao modelo que privilegia os acionistas referindo-se a decisões judiciais comuns atualmente que revelariam o mau uso e o abuso dos poderes administrativos, com grande “ineptitude in apprecianting and appraising the social importance and significance of many of their activities.”[11]
Rotman relembra, dentre outros, o caso “Dodge versus Ford”, em que a administração da última, envolta em um contexto de acirrada competição no mercado automotivo, decidiu tomar medidas que iam além da satisfação imediata dos acionistas. A Ford Motor Co. (“FMC”) resolveu não redistribuir entre os acionistas os dividendos especiais angariados em novembro de 1916, aplicando-os, por sua vez, na própria melhoria e expansão da indústria. Somado a tais atitudes, a diretoria da empresa determinou que manteria sua política de reduzir o custo, com o preço do veículo saindo de $440 para $360.
Devido a isso, os irmãos Dodge, detentores de 10% das ações da FMC, iniciaram uma disputa judicial contra esta, pleiteando uma adequada distribuição de seus ganhos. Quando o caso chegou à Suprema Corte de Michigan, foi decidido que a Ford deveria pagar uma considerável quantia de dividendos aos acionistas. Entretanto, a Corte também autorizou o prosseguimento dos intentos da diretoria de construir inovações na maquinaria e na área de fundição, além da diminuição dos preços da unidade do automóvel. Para embasar sua decisão, a Suprema Corte estatuiu que:
“[i]t is recognized that plans must often be made for a long future, for expected competition, for continuing as well as immediately profitable venture”[12].
Em decorrência disso, a Ford restabeleceu sua posição competitiva, e os benefícios dados por ela a outros stakeholders voltaram a seu favor também. Sem contar que os lucros abaixados por veículo foram compensados pela lucratividade a longo prazo aferida pela alta das vendas. Por isso, Rotman coloca esse caso como uma das evidências de que o shareholder model não impera no mundo, como o afirmado por Kraakman e Hansmann.
V. Função Social da empresa
Um dos mais importantes reflexos dos preceitos institucionalistas e contratualistas sobre o direito brasileiro encontra-se no princípio da função social da empresa. Este, advindo do contexto do Estado Democrático de Direito, está lastreado na Constituição e nas legislações infraconstitucionais. No art. 170 do texto constitucional, a função social mostra-se expressa da seguinte forma:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
A função social da empresa tem relação com todos os princípios listados acima, evidenciando que a escopo da empresa deve beneficiar todos os envolvidos com as ações daquela, além da coletividade. Desta forma, tanto a propriedade privada e a livre iniciativa, quanto a função social e a justiça social precisam ser compatibilizados, a luz do que prescreve a Carta Maior.
Conforme diz Ana Frazão, o princípio da função social foi uma maneira de a Constituição levar a atividade empresarial à realização justiça social sem estabelecer ditames rígidos, abrindo espaço para uma acomodação às circunstâncias fáticas e ao processo democrático[13]. Isso se reveste de enorme importância considerando a realidade da população brasileira, marcada por tanta injustiça e desigualdade social.
Ana Frazão ainda aduz que a finalidade de tal princípio é comprometer a propriedade e a empresa com a dignidade, determinando deveres para o proprietário e o empresário. Portanto, a função social cumpre a missão de inserir um quê de institucionalismo no direito, outrora tão dominado apenas pela lógica contratualista. Mas ela não elimina este, na medida em que pleitea um equilíbrio de interesses e de princípios, e não a publicização da empresa.
Por meio do mencionado princípio, requer-se a emprego de “padrões mínimos de distribuição de riqueza e dos benefícios da atividade econômica”.[14] Apesar da difícil definição do que seria a consubstanciação disso, muitos julgados já reforçam sua aplicabilidade, como o ADI 1950 sobre as meias entrada e o ADI 2649 sobre o passe livre. Assim, a função social constitui-se em norma cogente, que deve pautar a atividade corporativa, sob o risco de seu descumprimento ser contestado em sede judicial.
Esse debate é exemplo claro da realidade do direito brasileiro atual, em que se presencia um processo de interpretação do direito privado orientada pela Constituição. Assim, as normas deontológicas contidas nesta, tais como o princípio da função social da propriedade, não poderiam deixar de ser reafirmadas na legislação infraconstitucional. Prova disso são os art. 116, parágrafo único, e art. 154, ambos da Lei n° 6.404/76, já transcritos acima. Neles está claramente citada a função social como norteadora das ações das sociedades anônimas.
VI. Responsabilidade Social da Empresa
VI.1 Surgimento e Conceito
O advento da ótica institucionalista, sobretudo anglo-saxã, levou, como demonstrado, a um alargamento dos deveres fiduciários dos administradores. Sob essa nova interpretação, uma das formas vislumbradas para legitimar e estimular a concretização da mudança de abrangência do interesse social foi por meio da responsabilidade social.
A partir da década de 50, começou a germinar uma conscientização de que as corporações poderiam e deveriam adotar um papel maior na sociedade. Isso, no contexto interno à empresa se traduziria em uma cidadania organizacional, com uma preocupação em relação a condições de trabalho, qualidade de emprego, remunerações, higiene, saúde e educação dos funcionários. Já âmbito no externo, corresponderia a uma realização de direitos sociais, voltando sua atenção para a comunidade, clientes, fornecedores e entidades públicas.
O conceito de tal responsabilidade teve origem na Europa e foi disseminado em muitas nações. Ela estaria inserida em um contexto de voluntarismo corporativo e filantropia, e não ligada a deveres positivados. O direito atuaria, assim, no sentido de apenas legitimar ou estimular essas atitudes. Por isso, Teubner a julga como uma “responsabilidade livre e moralmente motivada de homens de negócios e administradores”[15]. Nisso ela se diferencia da função social. Esta, como dito, se traduz em uma norma compulsória, que estatui deveres, ainda que não especificados pelo direito, a serem seguidos pelas empresas sob pena de coação e repressão judicial.
De uma forma mais clara, a responsabilidade social seria o compromisso de uma corporação perante a sociedade, o que a levaria a atuar positivamente e de modo amplo em relação a esta, ou de modo mais focado em direção a certa comunidade. Fazendo isso, a empresa estaria cumprindo sua prestação de contas com a coletividade em correspondência com seu papel nela. Assim, a firma adotaria obrigações morais que transpassariam as dispostas na lei, ainda que não intrinsecamente ligadas a suas atividades, mas que favorecessem o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida dos povos.
Uma definição filosófica coloca o termo responsabilidade como “a possibilidade de prever os efeitos do próprio comportamento e de corrigir o mesmo comportamento com base em tal previsão”[16]. Nesse sentido, a responsabilidade social mostra-se como um reconhecimento do já explanado no inicio deste trabalho, qual seja, do impacto das atividades exercidas pelas corporações na sociedade e de seu dever, ao menos ético, de ter uma postura positiva e preventiva, a fim de prestar contas com os afetados.
Sob um ângulo mais administrativo, defende-se que essa busca por implementar soluções aos problemas sociais estaria expressa pela prática de valores, os quais poderiam estar firmados em um código de ética, e que subscreveriam uma cultura interna na qual se pautariam todas as transações dos gestores. Nessa perspectiva, a empresa estaria firmada “em seu posicionamento estratégico em termos de seus valores/princípios (critérios inegociáveis de conduta), missão (razão de ser da empresa) e visão a longo prazo (qual é a imagem para o futuro dessa empresa), os quais irão embasar as decisões e operações de seus negócios, expressas na conduta das pessoas que trabalham para essa empresa.”[17]
O debate sobre a responsabilidade social é marcado por uma descentralização do aspecto econômico, amplificando o foco corporativo para as complexas redes de relacionamento entre stakeholders. Isso reclama um equilíbrio entre as responsabilidades econômicas, sociais e ambientais e insere conceitos de confiança e ética na discussão.
De um ângulo mais extremo, caracterizaria uma empresa socialmente responsável o seu cuidado com as expectativas não só dos seus stakeholders atuais, como dos futuros também. Isso parte da visão de que os impactos gerados pela corporação se repercutem no tempo e no espaço, o que fica mais evidente na preocupação com as gerações futuras expressa na proteção do meio ambiente. Este também virou alvo das ações de social consciouness, que não se limita ao âmbito dos aspectos técnicos de produção, mas está ligada ainda a toda estrutura organizacional da empresa.
VI.2 Crítica
A crítica ao modelo de responsabilidade social com a abrangência apresentada acima tem Milton Friedman como seu mais reconhecido expoente. Este autor, em um artigo do New York Times Magazine, norteia seu pensamento ao dizer que os empreendimentos devem ver a responsabilidade social apenas como a maximização dos lucros e a obediência às leis. A esses dois quesitos que os administradores deveriam visar em suas deliberações, pois eles controlariam a empresa por delegação dos acionistas e proprietários com a missão de zelar pelos interesses destes[18].
O teórico liberal descreve o negócio como a autoprocura do lucro, devendo ser desconsideradas quaisquer outras considerações sociais, as quais seriam responsabilidade da sociedade e não da empresa. Havendo choque entre a busca por eficiência econômica e os amplos interesses da comunidade, o Estado deveria intervir aplicando as sanções e as medidas necessárias.
Friedman reprova severamente as ações e decisões dos administradores para a contribuição social que vão de encontro com os interesses econômicos. Para ele, tais atos representariam uma violação à função dos negócios. Isso porque o dispêndio gerado com projetos sociais resultaria em redução dos salários e dos dividendos dos acionistas e aumento do preço ao consumidor. Dessa forma, os executivos se tornariam funcionários públicos, usando critérios políticos e sociais para atender aos interesses coletivos.
O pensamento de Friedman não ficou imune a réplicas defensoras da responsabilidade social. A começar pelo fato de que sua visão seria simplista ao considerar a atuação da empresa como autônoma, desconectada com as esferas política e social de decisão. Nesse sentido, Grant advoga que caracterizar o empreendimento “como o envolvimento da busca do lucro sem compromisso constitui um retrato inadequado das operações dos negócios”[19]. Assim, vê-se a negligência do liberal quanto ao papel da empresa na sociedade.
Além disso, ele não levaria em conta que as decisões empresariais têm de almejar o valor futuro de seus investimentos, num contexto em que os custos e receitas são incertos e distribuídos ao longo do tempo. Destarte, uma variável relevante nessas decisões seria o valor de mercado da empresa, e não só a maximização dos lucros no curto prazo. Ciente disso, o principal enfoque da administração seria assegurar a viabilidade da organização, antes de primar por tal maximização. Isso também serviria aos interesses dos acionistas na medida em que, ao longo prazo, sua rentabilidade também estaria protegida.
Keith Davis contesta Friedman ao dizer que seria obrigação das empresas aferir as conseqüências de suas decisões no sistema social externo com o intuito de agregar benefícios sociais a suas ações além dos ganhos econômicos buscados. E essa reflexão transposta para a prática indicaria o início da responsabilidade social, após cumpridos os requisitos mínimos legais, estando, assim, para além da lei[20].
VI.3 Responsabilidade Social na lei das S/As e na Realidade Brasileira
A par dessas discussões, e firme no arcabouço constitucional construído pela função social da empresa, a lei complementar brasileira de n° 6.404/76, que rege as sociedades anônimas, legitima expressamente a responsabilidade social voluntária. Em seu artigo 154, § 4°, proclama o seguinte:
Art. 154, § 4º O conselho de administração ou a diretoria podem autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais.
Esta redação coaduna com o preceituado pelos teóricos estrangeiros, para quem a responsabilidade social é uma ação voluntária, ficando a critério dos gestores adotarem ou não essas medidas. Elas são amparadas tanto pelo texto constitucional quanto infraconstitucional, mas não vêm na forma de uma imposição legal, não podendo ser pleiteadas judicialmente. Entretanto, vê-se uma ascensão no cenário nacional do emprego dessas atitudes socialmente responsáveis pelas empresas, as quais estão praticando atos autônomos ou em parceria com ONGs e instâncias governamentais.
Segundo o último estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), intitulado Pesquisa Ação Social das Empresas (PASE), 69% das empresas privadas brasileiras realizam ações sociais em benefício da comunidade. Feito em 2006, ele já demonstra um aumento sensível quanto ao índice aferido em 2003, que era de 60%, e indica que essa porcentagem está subindo. Os dados mais recentes revelam que aproximadamente 600 mil empresas estão a desenvolver trabalhos voluntários e que, em 2004, elas despenderam nesse propósito R$ 4,7 bilhões, o que correspondia a 0,27% do PIB brasileiro daquele ano.
Apesar de um número expressivo de empresas estar desenvolvendo ações sociais, como estas não partem de normas cogentes, nem sempre são sistemáticas e profissionalizadas. Nota-se, porém que, em muitos casos, a responsabilidade social apresenta-se com uma política institucional firme, ética dinâmica e empreendedora, que mobiliza toda a estrutura as partes da organização a cumprir metas claras. Um ângulo mais administrativo vai nomear empresas socialmente responsáveis apenas aquelas que adotam medidas incorporadas a sua cultura e com projetos de qualidade constantes em suas agendas.
Mesmo com as definições descritas em tópico anterior, em termos concretos, vê-se que a responsabilidade social é algo historicizado. O aspecto cultural da nação é fator relevante nessa seara, a qual deve estar compatibilizada com a realidade circundante. Nesse sentido, as organizações brasileiras estão, de várias maneiras, cumprindo funções as quais fugiriam do escopo empresarial numa visão puramente contratualista.
De um modo geral, a nova postura que as empresas vêm adquirindo traduz-se na investida em confiabilidade, filantropia, serviço de pós-venda, produtos ambientalmente corretos, melhoria nas condições de trabalho dos empregados e benefícios a eles, relacionamento ético com o consumidor, fornecedor e varejista.
O estudo Perfil da empresa que investe em projetos sociais na comunidade, realizado pelo Serviço Nacional de Comércio (SENAC) de São Paulo, constatou que esse tipo de investimento em sua maior parte, é feito por doações de produtos, seguido por doações de equipamentos e, por fim, com uma porcentagem também considerável encontra-se o repasse de recursos diretamente à comunidade a partir de projetos criados pela própria empresa.
Na área ambiental, as ações têm se voltado não só para os aspectos técnicos da produção, mas a todas as dimensões estratégicas de organização. Elas se mostram em muitos processos empresariais, envolvendo as atividades de rotina, a discussão de alternativas e a criação de políticas, metas e planos de ação definidos. O que seria ideal segundo Ashley, e que já está sendo muito desenvolvido:
“Um sistema de gestão ambiental eficiente deve articular diferentes áreas da organização, como marketing, produção, recursos humanos, jurídica e financeira e pesquisa e desenvolvimento (P & D). Caberia à área de Marketing definir e propagar a imagem e a filosofia de posicionamento comercial praticadas pela organização, estruturando planos de comunicação interna e externa e coerentes com valores ambientais da empresa.”[21]
Esse esforço maior em relação a práticas ecologicamente sustentáveis que transpassem os limites legais requer certos investimentos, como a mensuração técnica de riscos internos e externos para traçar um planejamento sobre a cadeia produtiva e estrutural da corporação. Além de pesquisas visando inovações tecnológicas que garantam eficiência com dispêndio menor de recursos naturais e com uso de matérias mais benéficas ao meio ambiente. Sem contar que todo esse aprendizado deve ser repassado aos funcionários para que estes o apliquem no exercício de todas as suas atividades.
Para exemplificar aqui como estão se desenvolvendo esses trabalhos, cabe citar a tese de doutorado da estudiosa brasileira Fernanda Gabriela Borger. A fim de aferir como se dão faticamente as práticas socialmente responsáveis, Fernanda fez uma pesquisa mais aprofundada com três sociedades anônimas brasileiras das quais mencionam-se aqui a De Nadai e a DaimlerChrysler do Brasil Ltda.
Segundo seus dados, a empresa De Nadai incorporou a responsabilidade social a sua estratégia geral devido às certificações que adotou. Tal empresa mostrou um foco na melhoria das condições de trabalho internas disponibilizando benefícios extralegais aos trabalhadores, tais como ginástica laboral, massagem no trabalho, participação nos lucros, salários e aumentos acima da média no setor, equipe de nutricionistas para empregados e familiares, dentre outros.
Após começar a seguir os ditames do Sistema de Responsabilidade Social (SA 8000), tornou-se referência na região em que atua. Ela conta com um representante da Administração para a Responsabilidade social, cujo dever é garantir a efetivação dos padrões estabelecidos no referido sistema. Seus empregados elegem um Representante, o qual se torna “ouvidor” deles, com livre acesso à direção. A De Nadai tem despesas com segurança e medicina no trabalho, educação, auxílio creche, capacitação e desenvolvimento profissional. Ela possui um programa de ensino de 2° a 9° ano para funcionários, e outro de apoio financeiro com disponibilização de linhas de crédito a empregados que estão passando por situações extremas.
Seus projetos relativos ao meio ambiente estão ligados com processos técnico-produtivos, visando aumentar a eficiência operacional e ambiental destes. Como resultado de todas essas medidas, os funcionários se sentem orgulhosos de trabalhar na De Nadai, e esta exerce uma atração e retenção de talentos. As eficiências ambientais traduziram-se em eficiências econômicas, gerando redução de custos.
A empresa DaimlerChrysler do Brasil Ltda., por sua vez, também integrou a sua gestão preceitos de responsabilidade social e ambiental. Ela promove iniciativas em conjunção com a Prefeitura, entidades e associações, preferencialmente, nas comunidades locais, tendo também alguns projetos de âmbito nacional. Constam como seus projetos ambientais o Pobreza e Meio Ambiente na Amazônia, o trio Elétrico Ecológico em parceria com a fundação Ondazul e a doação de material reciclável e coleta seletiva para o Centro de Triagem da Vila Pauliceia.
Além disso, ela desenvolve pesquisas para utilização de produtos de origem vegetal e com boas propriedades de reciclagem, a fim de minimizar o impacto ambiental. Dentre estes, destacam-se o motor a gás, os encostos com fibras de côco e as pinturas hidrossolúveis. Seu desempenho ambiental melhorou, fruto da redução de consumo de energia, matérias primas, controle de efluentes e adoção de tecnologias limpas. Sem contar que ela fixou normas a serem seguidas por seus fornecedores e concessionários relativas a questões ambientais e proibitivas de trabalho infantil.
A firma também proporciona salários competitivos acima da média do ramo e sustenta relações com os sindicatos de trabalhadores de diversas linhas políticas. Ela ainda oferece programas, cursos, palestras, reuniões, campanhas e eventos educacionais tanto ao corpo funcional, quanto a seus familiares e comunidade local. Por fim, com o projeto Mão na Massa, a empresa dissemina o voluntariado.
VI.4 Razões para se Incorporar a Responsabilidade Social na Gestão da Empresa
Do ponto de vista da concorrência e complexidade em que se encontra o mercado, percebe-se que não adianta mais apenas oferecer produtos e serviços de qualidade. A competição demanda qualidade, tecnologia, custos, velocidade de reação e visão de longo prazo. Pede-se também uma resposta aos problemas sociais e ambientais, uma postura de valorização e respeito quanto público da empresa, este compreendido de forma mais ampla.
Desde o século passado, houve grande incremento da concorrência, fruto da disseminação de empresas estrangeiras pelo mundo e do aumento da produtividade decorrente da evolução tecnológica. Com isso, as corporações estão constantemente à procura de diferenciais competitivos. Estes estão sendo encontrados, dentre outros, por um desenvolvimento sustentável que abarque aspectos econômicos, sociais e ambientais.
Assim, a responsabilidade social pode ser vista como uma estratégia para aumentar o lucro e o desenvolvimento corporativo. Isso porque os consumidores e os parceiros comerciais estão tendo despertada em si a conscientização e busca por produtos e serviços menos nocivos à natureza e à comunidade.
Essa nova valorização de práticas éticas relacionadas à idéia de cidadania em muito se deve pela facilidade com que a mídia, com seus “olhos e ouvidos” espalhados por muitos lugares, distribuem informações a todos os indivíduos. Nesse sentido, os meios de comunicação vêm desempenhando um papel tanto de denúncias de más condutas quanto de promoção de boas. Os consumidores, parceiros comerciais, e principalmente, grupos de pressão estão atentos a isso, e exercem certa cobrança por um remodelo da gestão empresarial. Estes últimos estão muito bem representados pelos grupos de defesa do meio ambiente, dos direitos humanos e da bioética, muito atuantes hoje.
Destarte, as organizações também estão se conscientizando sobre o crescente poder de mobilização da sociedade civil para cobrar delas atitudes éticas e responsáveis, afetando-a de forma negativa quando não adquirem uma boa postura. Segundo pesquisa do IPEA, a maior causa para a implantação de práticas sociais nas empresas é o entendimento de que isso melhora sua imagem institucional. Além de ser importante frente àqueles que fazem transações com as corporações, a variável imagem aduz ao que se chama de valor de mercado da empresa.
Em alguns casos, ser socialmente responsável faz parte de uma filosofia da empresa que pretende gerar forte identificação com o cliente, sendo um dos maiores fatores de aproximação deste.
Em relação às mudanças visando à questão ambiental, variáveis internas também impulsionam seu desenvolvimento, como as economias de custo pela redução de desperdício ou reciclagem, menor consumo de energia e substituição de insumos. É certo que alguns investimentos devem ser feitos para se agir favoravelmente ao meio ambiente, mas, a longo prazo, isso pode ser recompensado.
Além disso, algumas pesquisas tendem a demonstrar que medidas socialmente responsáveis estão correlacionadas com a produtividade, ao motivar mais os funcionários e estimular sua participação. Sem contar que isso está ligado ao orgulho em trabalhar em uma empresa socialmente atuante, o que atrai muitos candidatos a empregados.
Incentivam também as várias premiações que já surgiram no país com essa temática. O reconhecimento por iniciativas empresariais no âmbito social está inscrito no Selo Empresa Cidadã (Câmara Municipal de São Paulo), no Top Social ADVB (Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil), no Prêmio Eco (AMCHAM – Câmara Americana de Comércio, no Selo Empresa Amiga da Criança (Fundação Abrinq), Indicadores Ethos de Responsabilidade Social (Instituto Ethos), no Prêmio PNBE de Cidadania ( Instituto PNBE – ONG Pensamento Nacional de Bases Empresariais), dentre muitos outros.
A essas avaliações nacionais unem-se normas internacionais estabelecidas, normalmente, por órgãos ou instituições como ONGs e organismos multilaterais, a fim de padronizar aspectos éticos e de responsabilidade social nas empresas. Ao seguir esses parâmetros, as organizações recebem certificações, tais quais as ISO 9000, ISSO 14000, BS 8800 e AS 8000.
VI.5 Limites à Responsabilidade Social
O que intriga certos críticos e corporações em relação à adoção de medidas de responsabilidade social é o desvio de dinheiro para atendê-las, que, para eles, deveria ser destinado ao patrimônio da empresa e dos acionistas. Fala-se também em um excesso de discricionariedade centrado nas mãos dos administradores para cuidar dos interesses de outros stakeholders que não os detentores de ações.
À solução dessa questão, a lei das sociedades anônimas já dá indícios quando, em seu artigo 154, § 4°, proclama que os atos gratuitos permitidos devem ser “razoáveis”. Assim, mesmo considerando lícitas e condizentes com o interesse social as doações e atividades altruísticas, a lei preceitua seu exercício moderado. Como se observa, a visão contratualista, apesar de parcialmente mudada, não se perdeu no direito e na prática brasileira. O lucro, certamente, é pré-requisito à existência das organizações e à realização de medidas éticas voluntárias, e o seu principal fim. Desta forma, não se defende aqui, e nem na legislação, uma publicização da empresa, sendo esta vista como uma instituição de caridade ou uma substituta da função estatal. A responsabilidade social deve ser usada de forma proporcional e equacionada com os outros objetivos corporativos.
Nesse sentido, como já esboçado neste trabalho e propugnado por muitos estudiosos, a responsabilidade social está mostrando-se um fator de manutenção e sobrevivência da empresa, razoavelmente utilizada, é claro. Nesse contexto, as organizações vêm sendo convidadas a equilibrar não só as responsabilidades econômicas, mas também as sociais e ambientais, como forma de se sustentar no mercado, a longo prazo, tendo em vista as incertezas, mudanças aceleradas, e cobrança da sociedade.
Destarte, as despesas e os custos envolvidos em ações para a comunidade e empregados podem ser contrabalanceados por outros ganhos, muitas vezes de médio ou longo prazo. Ao atrair públicos alvo, melhorar sua imagem, reputação, e relação com a sociedade, a empresa pode estar recebendo em lucro marginal. Se este for bem calculado, servindo à operacionalização da responsabilidade social, e ao oferecimento de produtos de custo razoável e de qualidade, a sociedade só tem a comemorar e incentivar.
VII. Conclusão
Como se tentou demonstrar neste trabalho, as empresas, em seu processo de expansão, têm se revelado entidades concretas em constante intercâmbio com a sociedade. Nesse trajeto, suas ações estão deixando muitas conseqüências que afetam diretamente não só os envolvidos em suas atividades e transações, mas também a comunidade como um todo.
A discussão sobre o interesse social da corporação serviu para iluminar esses efeitos decorrentes da ação empresarial, na medida em que mostrou que a empresa é mais do que simples atos de comércio, envolvendo muito mais agentes, devendo observar o interesse destes também. Como reflexo desse novo entendimento, surgiu o conceito de responsabilidade social, que denota atitudes voluntárias feitas pela empresa em favor de seus empregados, da comunidade e do meio ambiente, cumprindo o interesse social além do que a lei obriga.
Em seu artigo 154, a lei das sociedades anônimas brasileira acolheu e legitimou a responsabilidade social de modo claro, com a seguinte redação:
Art. 154, § 4º O conselho de administração ou a diretoria podem autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais.
Firmados nessa norma “permissiva”, no princípio da função social da empresa, nos preceitos do institucionalismo e do stakeholder value model e em todo o contexto atual que os propulsiona, os negócios brasileiros estão repensando suas atividades e as adequando aos preceitos socialmente responsáveis. Por isso, estes não são meras construções teóricas, mas estão sendo de fato operacionalizados na prática empresarial. Essa realidade coaduna com a razoabilidade indicada pela lei n° 6.404/76, a qual permite a perpetuação das medidas sociais, e responde aos seus críticos mostrando que é possível ser socialmente atuante sem ir de encontro com o necessário fim do lucro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FRAZÃO, Ana. “Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As”. Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2011.
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[1]http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2315:catid=28&Itemid=23
[2] FRAZÃO, Ana. “Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As”. Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2011. (P. 71)
[3] SALOMÃO FILHO, Calixto. “Sociedade anônima: interesse público e privado.” Interesse Público. Ano 5, n° 20, julho/agosto 2003. (p. 75)
[4] FRAZÃO, Ana. “Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As”. Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2011. (p. 120)
[5] HANSMANN, Henry e KRAAKMAN, Reinier. “The end of history for corporate law”. Discussion paper n° 280, 2000. (p. 5)
[6] COMPARATO, Fábio Konder. “Aspectos jurídicos da macro-empresa”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970. (p. 49)
[7] FRAZÃO, Ana. “Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As”. Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2011. (P. 128)
[8] Berle. “Corporate powers as powers in trust”. Supra note 6, at 1049.
[9] HANSMANN, Henry e KRAAKMAN, Reinier. “The end of history for corporate law”. Discussion paper n° 280, 2000. (pp. 6, 9-10)
[10] HANSMANN, Henry e KRAAKMAN, Reinier. “The end of history for corporate law”. Discussion paper n° 280, 2000. (p. 3)
[11] William O. Douglas, Directors Who Do Not Direct, 47 Harv. L. Rev. 1305, 1306 (1934).
[12] Dodge, 170 N.W. (p.684)
[13] FRAZÃO, Ana. “Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As”. Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2011. (p. 199)
[14] FRAZÃO, Ana. “Função social da empresa: repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As”. Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2011. (p. 200)
[15] TEUBNER, Gunther. “Corporate Fiduciary Duties...” (p. 158)
[16] SARDINHA, Geraldo. Sustentabilidade nas Organizações. In: FELIX, Joana B.; Borda, Gilson Z. (orgs) Gestão da Comunicação e Responsabilidade Socioambiental. São Paulo: Atlas, 2009. (P. 43)
[17] ASHLEY, Patrícia Almeida (coordenação). “Ética e Responsabilidade Social nos Negócios”. Ed. Saraiva. São Paulo, 2004. (Pps. 40-41)
[18] FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. 2ª ed. São Paulo. Editora Nova Cultural, 1985. (p. 23)
[19] GRANT, Colin. “Friedman Fallacies”. Journal of Business Ethics, Dordretch, Vol. 10. (Pp. 910)
[20] CARROL, Archie B. “Corporate Social Responsibility”. Business and Society, Chicago, Volume 38, set. 1999. (p.275)
[21] ASHLEY, Patrícia Almeida (coordenação). “Ética e Responsabilidade Social nos Negócios”. Ed. Saraiva. São Paulo, 2004. (Pp. 67)
Graduada pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENDES, Tâmara Cordeiro Polo. Responsabilidade social na prática e no direito societário brasileiro: Origem, razões e limites Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 mar 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/43469/responsabilidade-social-na-pratica-e-no-direito-societario-brasileiro-origem-razoes-e-limites. Acesso em: 21 nov 2024.
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