RESUMO: Este artigo discute a necessidade de interpretação conforme a Constituição do art. 41-B do Estatuto do Torcedor, por haver antecipação injustificada da tutela penal e excessiva abertura do tipo penal.
Palavras-chave: Estatuto do Torcedor. Esporte. Estádio.
INTRODUÇÃO
No contexto da Copa do Mundo no Brasil, evento privado que transformou o governo federal em um dos maiores defensores da prevalência do interesse privado sobre o interesse público, foi criado pela Lei 12.299/2010 o crime do art. 41-B, § 1º, inciso II, do Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003):
Art. 41-B. Promover tumulto, praticar ou incitar a violência, ou invadir local restrito aos competidores em eventos esportivos: (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010). Pena - reclusão de 1 (um) a 2 (dois) anos e multa. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).
§ 1o Incorrerá nas mesmas penas o torcedor que: (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).
II - portar, deter ou transportar, no interior do estádio, em suas imediações ou no seu trajeto, em dia de realização de evento esportivo, quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência. (Incluído pela Lei nº 12.299, de 2010).
Trata-se de um tipo penal aberto, cujo conteúdo depende de uma complementação pelo aplicador da norma, sobretudo porque o tipo penal fala em “quaisquer instrumentos que possam servir para a prática de violência”.
Além disso, é um crime de perigo abstrato, que antecipa a tutela penal para o simples porte de instrumentos que “possam servir para a prática de violência”, dispensando formalmente a prática de violência e dispensando textualmente o simples intuito de praticar violência com tais instrumentos.
Malgrado se trate de opção legislativa, a necessária conformidade das normas legais com a Constituição impõe a análise da compatibilidade constitucional tanto dessa antecipação da tutela penal como daquela abertura do tipo penal, o que se pretende neste artigo.
A INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO DO ART. 41-B, § 1º, INCISO II, DO ESTATUTO DO TORCEDOR
Sem delongas, constata-se que antecipação da tutela penal e a excessiva abertura do tipo penal do art. 41-B, § 1º, II, do Estatuto do Torcedor são inconstitucionais, por violação sobretudo dos princípios da legalidade, da taxatividade, da subsidiariedade, da fragmentariedade (art. 5º, II e XXXIX, CRFB) e, em especial, da ofensividade (art. 98, I, CRFB, e art. 13, CP).
Ora, qualquer objeto serve para a prática de violência: de cintos a bandeiras, de sapatos a garrafas de bebida, do espetinho de gato vendido defronte ao estádio aos artefatos pirotécnicos comumente levados por torcedores.
Porém, lecionam a doutrina e a jurisprudência pátrias que as normas inconstitucionais não devem ser extirpadas do ordenamento jurídico, mas interpretadas conforme a Constituição, quando isso for possível. À vista disso, é imperioso realizar uma depuração do tipo penal, evitando a violação dos princípios mencionados, decorrentes do art. 5º, II e XXXIX, da Constituição Federal.
Deve-se entender o dispositivo do art. 41-B, § 1º, II, do Estatuto do Torcedor, no contexto constitucional e sistêmico em que ele se insere. Ou seja, deve-se fazer a referida interpretação conforme a Constituição do dispositivo. Caso contrário, admitindo-se a previsão típica excessivamente ampla como legítima, justifica-se a antecipação injustificada da tutela penal, mediante incriminação de perigo abstrato, bem como a punição de atos presumidamente preparatórios que não consistem na criação de perigo proibido.
Como é sabido, a tutela penal deve ocorrer de forma subsidiária e para a exclusiva proteção de bens jurídicos. Desse modo, inexiste intervenção penal legítima (inexiste nexo de imputação objetiva, na lição de Roxin) quando não houver a criação de um risco proibido. Pode-se afirmar que existe a criação de um risco proibido quando o agente porta instrumento que possa servir para a prática de violência com o dolo específico de praticar violência.
Portanto, o simples porte de instrumento que possa servir para a prática de violência não é incriminável, por violação dos já mencionados princípios da legalidade, da taxatividade, da subsidiariedade, da fragmentariedade e da ofensividade (art. 5º, II e XXXIX, CRFB). Essa incriminação só é legítima quando o agente porta o objeto com o dolo específico de praticar violência utilizando-se dele. Além dessa hipótese, também poderá se admitir como legítima a incriminação se existe outra norma prevendo expressamente como ilícito o porte em si do objeto. Pois nesses casos, a criação de um risco proibido é evidente.
Em todo caso, a interpretação conforme a Constituição, nesse casos, ocorre com a interpretação do perigo abstrato estampado na norma como um perigo concreto, exigindo-se que a incidência da norma dependa da proximidade entre o risco abstrato presumido e um resultado empiricamente verificável não ocorrido, mas que muito provavelmente ocorreria num curso causal hipotético.
CONCLUSÃO
Como é sabido, o legislador identifica, em determinados casos, uma necessidade de antecipação da tutela penal, para incriminar a criação de perigo – concreto ou abstrato. Entretanto, a opção legislativa não suprime do intérprete a possibilidade de verificar, tanto em abstrato como no caso concreto, a compatibilidade da previsão legislativa com o texto constitucional. Existe uma necessidade, inerente ao sistema escalonado, de constante verificação da compatibilidade das normas inferiores com aquelas superiores.
Como visto, verifica-se, mesmo abstratamente, uma vagueza excessiva no tipo penal do art. 41-B do Estatuto do Torcedor, a exigir sua interpretação conforme a Constituição, exigindo materialidade suficiente do perigo criado para a tipicidade delitiva, isto é, para a incidência da norma sobre a hipótese fática.
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