SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Conceito e classificação do crédito trabalhista; 3. As características e garantias de proteção salarial; 3.1. As garantias constitucionais; 3.2. O caráter forfetário do salário; 3.3. O caráter alimentar do salário; 4. A força atrativa do salário e o caráter alimentar das retribuições trabalhistas de origens indenizatória e remuneratória; 5. O direito de preferência do crédito trabalhista; 6. Conclusão.
RESUMO: O presente trabalho tece considerações acerca da contraprestação laboral enquanto crédito preferencial em sede de execução. A irredutibilidade, obrigatoriedade, bem como a força atrativa do salário decorrem de sua natureza alimentar, ou seja, finalidade de sustento e garantia de uma vida digna ao trabalhador e sua família. A tutela dispensada ao salário, portanto, advém da necessidade de inibir qualquer comportamento abusivo do empregador ou possibilidade de insolvência. Protege-se o salário na vigência da relação material do emprego e do contrato e, também, provendo os meios jurídicos e processuais eficazes de satisfação do crédito inadimplido. Neste contexto, resta estatuído o direito de preferência do crédito trabalhista. Em caso de insolvência civil ou falência, busca-se promover, na execução concursal, a quitação dos débitos atendendo a todos os credores, levando em conta as necessidades peculiares de cada um, dispensando-se prioridade aos créditos trabalhistas.
PALAVRAS-CHAVE: PROTEÇÃO SALARIAL; CARÁTER ALIMENTAR DO SALÁRIO; CRÉDITO TRABALHISTA; EXECUÇÃO TRABALHISTA; DIREITO DE PREFERÊNCIA DO CRÉDITO; EXECUÇÃO CONCURSAL; Tutela Jurisdicional Efetiva;
1 INTRODUÇÃO
O crédito trabalhista, de natureza fundamentalmente salarial, reveste-se de fulcral importância na medida em que se vincula diretamente ao sustento do trabalhador e de sua família. É contraprestação pelo serviço prestado, caracterizada pela finalidade alimentar e proveniente de contrato oneroso.
Dada sua relevância, não apenas no contrato de trabalho, mas na estrutura social, cumpre dispensar máxima proteção ao instituto, razão pela qual a contraprestação trabalhista é alvo de tutela constitucional, sendo direito essencial do trabalhador e obrigação absoluta do empregador.
A negativa de satisfação do débito trabalhista implica em um enriquecimento ilícito do contratante à custa da supressão de um direito fundamental do contratado, que tem no salário seu único ou principal meio de vida, configurando, deste modo violação a norma expressa do ordenamento jurídico, bem como induzindo, fatalmente, o trabalhador ao estado de miserabilidade.
A prestação jurisdicional é a única possibilidade de ver satisfeita a contraprestação trabalhista quando não quitada voluntariamente, pois o Estado centraliza a responsabilidade de tutelar o direito violado, impelindo qualquer iniciativa de autotutela.
Destarte, impende conceder maior efetividade a prestação jurisdicional a fim de proporcionar a máxima proteção ao trabalhador e sua família, garantindo a subsistência condigna destes.
O crédito trabalhista é o direito adquirido em decorrência de uma relação de trabalho. Diversos acontecimentos, previsíveis ou não, podem gerar um direito creditício em benefício do empregado.
Não há uniformidade doutrinária acerca da classificação e conceito das parcelas que integram o crédito. Considera-se, contudo, que este é composto basicamente por parcelas de natureza salarial, indenizatória e as fornecidas deliberadamente pelo empregador ou terceiro a título, por exemplo, de recompensa.
O contrato individual de trabalho é a origem remota das contraprestações devidas ao empregado, a começar pela onerosidade da relação, que impõe a necessidade da retribuição.
A onerosidade do contrato advém da não gratuidade do serviço prestado ou até mesmo da simples disponibilização da energia do trabalhador. A contraprestação monetária é inerente à relação empregatícia e se consolida como o aspecto de maior relevância da relação. Ressalte-se que, ainda em hipóteses de interrupção do contrato de trabalho, é obrigatório o pagamento do valor contratualmente avençado.
Maurício Godinho entende que “As expressões remuneração e salário corresponderiam, assim, ao conjunto de parcelas contraprestativas recebidas pelo empregado, no contexto da relação de emprego, denunciadoras do caráter oneroso do contrato de trabalho pactuado. (DELGADO, 2009, p. 636).
Para Orlando Gomes, remuneração é tudo o que o empregado recebe no exercício da atividade laboral, independente da fonte – se do empregador ou de terceiro –, já salário se restringe aos valores pagos unicamente pelo empregador. Neste caso a remuneração é o gênero do qual o salário é espécie (GOMES, 1996, p.23).
Para Amauri Mascaro Nascimento o salário e a remuneração, no conceito legal, se distinguem tão somente pelo sujeito ativo, sendo o primeiro a parcela paga diretamente pelo empregador e a segunda parcela paga por terceiros, notadamente as gorjetas. No conceito doutrinário a distinção é mais ampla, sendo remuneração, gênero e salário, espécie:
“No plano legal, é da qualidade do sujeito ativo que efetua o pagamento, que resulta, basicamente, a distinção entre as duas figuras; quando se tratar de terceira pessoa estranha à relação de emprego, a retribuição denomina-se remuneração e terá a forma de gorjeta e quando se tratar do próprio empregador, a retribuição será salário, em espécie, utilidades, ou ainda, através de formas complementares.
No plano doutrinário, no entanto, a dimensão dessa diferença de conceitos é mais ampla, pois a remuneração é tida como gênero de que o salário é uma das espécies.” (NASCIMENTO, 1996, p. 27).
José Augusto Rodrigues Pinto prefere como gênero o termo retribuição do trabalho, “que abrange em sua generalidade os vários e distintos modos de retorno ao empregado do valor da energia despendida em favor da empresa, retorno esse que, muitas vezes, procede de terceiro estranho ao contrato individual” (PINTO, 2007, p. 328).
Para o autor, a retribuição laboral traduz-se por todo e qualquer valor recebido pelo empregado em razão da relação de trabalho. Existem origens diversas que diferenciam esses valores. Com fulcro nestas distinções, subdivide a retribuição em salário, remuneração e retribuição indenizada. A classificação merece destaque por ser didática e de fácil compreensão, adequando-se à composição basilar do crédito trabalhista.
O salário consolida-se pelos valores pagos diretamente pelo empregador como contraprestação do serviço prestado. Possui caráter obrigacional, oriundo do contrato individual, destacando sua bilateralidade. A mera disponibilização da energia do trabalhador implica na exigibilidade da obrigação. É núcleo de um conjunto de parcelas remuneratórias ao qual podem ser acrescidas outras verbas de origem diversa em razão da força atrativa que exerce.
A remuneração, de outro modo, abarca valores providos deliberadamente pelo empregador ou por terceiros, os quais não necessitam ser contratualmente avençados, mas que, por vezes, podem ser englobados pelo salário. Como exemplo destacam-se as gorjetas e as gratificações. Percebe-se que, embora identificada uma diferenciação entre remuneração e salário, estes frequentemente se fundem de modo que a primeira se torna também obrigatória.
A retribuição do trabalho pode ainda ser indenizatória, sendo, neste caso uma compensação por uma situação de risco ou dano a que se expõe o empregado. É classe específica denominada por José Augusto Rodrigues de indenização retributiva ou retribuição indenizada.
Sua instituição decorre de lei, convenção coletiva ou, ainda, do contrato de trabalho, sendo valor adicional, acrescido por percentuais ao salário ou à remuneração.
Possui como fonte geradora uma situação de risco – quando o trabalhador é exposto a um ambiente de contínuo perigo, não pela atividade em si, mas pelo risco concreto de sua ocorrência – ou de dano – quando há o prejuízo inevitável oriundo da atividade que se executa, podendo ser este psíquico, físico ou social.
Exemplos de situação de risco seriam hipóteses de insalubridade e periculosidade. Já o dano configura-se por trabalho em hora extra, noturno, transferência de localidade dentre outros.
Alice Monteiro de Barros define uma terceira hipótese de indenização, sendo uma “importância devida na relação de emprego quando há perda ou lesão de um direito provocada de forma dolosa ou culposa pelo empregador ou seus prepostos ou, ainda, pelo fato de desenvolver ele atividade de risco, à luz do art. 927, parag. Único, do Código Civil de 2002.” (BARROS, 2010, p. 751).
Enquadrar-se-ia na explicação da autora, por exemplo, a verba proveniente de acidente de trabalho, de dano moral e demais prejuízos causados no ambiente laboral de maneira dolosa ou culposa.
A indenização, portanto, define-se como a compensação por uma perda, podendo ser esta inerente à atividade realizada ou acidental, pontual, mas que teve como causa o fato de o indivíduo desempenhar atividade laboral.
Malgrado originária da relação de trabalho, possui a peculiaridade de, em regra, não ter o caráter alimentar. Um valor percebido esporadicamente em razão de uma compensação não faz parte do orçamento destinado ao sustento próprio e da família do trabalhador, não adquirindo, com isso, a relevância de salário, parcela habitual que decorre do serviço prestado e do contrato firmado.
Contudo, será abordado adiante que o salário possui força atrativa. Assim sendo, toda parcela periodicamente fornecida ao trabalhador adquire a natureza de salário, passando a ser de caráter alimentar, englobando toda a proteção que lhe é própria.
O salário, principal contraprestação da relação laboral, que tem por base o próprio contrato individual, em razão de seu caráter não apenas jurídico e obrigacional, mas também social, é alvo de ampla proteção, conforme impõe a Lei Maior, pilar para as demais normas do ordenamento.
O caráter social advém da finalidade de sustento daquele que o percebe e, ainda, de ser o trabalho parte fundamental de toda produção e crescimento de bens e serviços, imprescindíveis para a estrutura socioeconômica. José Augusto Rodrigues Pinto enfatiza o fenômeno da socialização do salário, que transfere ao empregador encargos derivados da relação de emprego, tais como os ônus decorrentes de acidente de trabalho e da previdência social e também compensações sociais que excedem as necessidades vitais do trabalhador. O salário é então revestido de uma relevância que excede os limites contratuais, acentuando ainda mais sua substancialidade:
É impossível, porém, deixar de ter em vista a tendência do Direito material do Trabalho para não limitar a noção do salário ao aspecto puramente obrigacional, e sim ajustá-la também a uma eminente função social, revelada pela transferência crescente do mister de fixar-lhe o valor para fontes imperativas e, portanto, estranhas ao contrato individual e à vontade dos contratantes. Além disso, a considerar-se para seu cálculo cada vez mais do que as simples necessidade vitais do trabalhador, as compensações sociais devidas a ele e à sua família. (PINTO, 2007, p.339).
A tutela dispensada ao salário, portanto, decorre da necessidade de inibir qualquer comportamento abusivo do empregador ou possibilidade de insolvência. Protege-se o salário na vigência da relação material do emprego e do contrato e, também, provendo os meios jurídicos e processuais eficazes de satisfação do crédito inadimplido.
3.1. As Garantias Constitucionais
A irredutibilidade, expressa pela Constituição[1] em seu Art. 7º, VI, é direito fundamental do trabalhador. O princípio proíbe a redução do salário salvaguardando sua função alimentar e munindo de segurança o contrato firmado entre as partes.
É direito do empregado a manutenção do status quo, a estabilidade e a segurança econômica. São requisitos necessários à vida digna. Planejamentos e orçamentos são lastreados no valor estipulado a título de retribuição trabalhista, daí a necessidade de mantença da estabilidade salarial.
A norma flexibiliza o princípio ao permitir a redução do salário mediante negociação coletiva. A diminuição de valor da remuneração que não atende a este requisito é nula. A relativização se justifica, por exemplo, na hipótese em que, comprovado o interesse do trabalhador, seja imperativa sua redução, por uma dificuldade financeira do empregador, com o intuito de vergastar a possibilidade de dispensa em massa.
No mesmo art. 7º, X, resta prevista a “proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa;”. Denota que, não se trata da mera inadimplência, mas do não pagamento proposital, com o ânimo de não fornecer o valor devido ao empregado. A Constituição, a fim de afastar o não pagamento doloso do salário, impõe que o ato seja tratado como crime, recorrendo ao direito penal, para que tal prática seja repelida por meio de sua penalização.
Adiante, institui também o salário mínimo legal, reconhecendo como finalidade deste o amparo das necessidades básicas e vitais do trabalhador e sua família:
Art. 7º, IV / CF - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; VII - garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável;[2]
O salário mínimo legal denuncia a função principal da retribuição trabalhista, qual seja a de fornecer a subsistência do trabalhador e da sua família. O Estado então determina um valor mínimo do salário para impedir que o empregador, por qualquer razão, defina quantia insuficiente como retribuição, incapaz de cumprir com todas as demandas vitais do empregado.
Ainda, o mesmo inciso reconhece a necessidade de reajustes salariais que preservem o poder aquisitivo. A manutenção do status quo do indivíduo e de sua parentela é, mais uma vez, protegida, haja vista que a diminuição da condição social causa enorme transtorno ao frustrar expectativas, planejamentos e costumes, violentando a dignidade.
3.2. O Caráter Forfetario do Salário
O caráter forfetario se traduz pela obrigatoriedade de o empregador efetivamente adimplir o salário devido ao trabalhador. O dever independe da situação econômica, pois, ainda que em dificuldades financeiras, ao gestor cabe a assunção dos riscos do negócio, não podendo este ser, de modo algum, transferido aos empregados. É o que se extrai do Art. 2º, caput da CLT: “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço” (grifo nosso).
O princípio se coaduna com a saliente necessidade de o trabalhador perceber a retribuição da prestação de seu serviço, pactuada mediante contrato individual, com o propósito de sustentar a si mesmo e a sua família.
A rentabilidade da empresa não atinge o direito do trabalhador, o qual não responde pelos prejuízos eventualmente sofridos. Maurício Godinho Delgado afirma ser absoluta a obrigatoriedade da parcela:
Caráter Forfetario da parcela traduz a circunstância de o salário qualificar-se como obrigação absoluta do empregador, independentemente da sorte de seu empreendimento. O neologismo criado pela doutrina (oriundo da expressão francesa à forfait) acentua, pois, a característica salarial derivada da alteridade, que distingue o empregador no contexto da relação de emprego (isto é, o fato de assumir, necessariamente, os riscos do empreendimento e do próprio trabalho prestado – art. 2, caput, da CLT). (DELGADO, 2009, p. 659).
Neste diapasão, é conferido ao empregado imunidade absoluta frente às intempéries ocasionalmente sofridas pelo empregador. Infere-se, ademais, que, à luz da finalidade alimentar da verba salarial, tampouco deve o trabalhador ser penalizado por outras necessidades, ainda que pessoais, do seu contratante.
Decerto que se deve buscar a máxima aplicabilidade de princípios que, porventura, se choquem. Importante, portanto preservar o direito do patrimônio mínimo no que se refere à responsabilidade patrimonial do devedor. Contudo, o privilégio demasiado de um princípio pode sufocar a eficácia de outro. Logo, uma vez que se reconhece a inafastável necessidade de o trabalhador obter seu sustento, não havendo meio de assegurar o pagamento pelo empregador sem causar dano ao próprio negócio ou pessoal, este, ainda assim, não pode eximir-se do adimplemento.
Se assim não fosse, a própria efetividade da tutela jurisdicional executiva estaria comprometida.
3.3. O Caráter Alimentar do Salário
O salário integraliza o meio de vida do trabalhador e da sua família. Numa sociedade capitalista, onde todos os bens são adquiridos por meio da compra, a remuneração é, na grande maioria das vezes, o motivo que leva o indivíduo a firmar o vínculo de emprego.
“Alimentos”, in casu, deve ser compreendido em seu sentido mais amplo, sendo tudo aquilo que é essencial ao sustento familiar. Constitui, portanto, não somente o que se come, mas o vestuário, a moradia, o lazer, o transporte, medicamentos e todas as outras necessidades básicas para uma vida digna.
A Lei Maior, em seu art. 100, § 1º, ao estatuir a preferência do débito de natureza alimentar sobre os demais, reconhece o caráter alimentar do salário:
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
§ 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo. (grifo nosso). (BRASIL, 1988).
O referido artigo determina que os pagamentos devidos pela Fazenda deverão obedecer a ordem cronológica de apresentação dos precatórios. O parágrafo primeiro, todavia, estabelece uma exceção ao conceder prioridade a determinados créditos por serem de natureza alimentar, dentre os quais se encontra o salário.
Vê-se, portanto, que a própria Constituição reconhece o caráter alimentar do salário, dispensando ao instituto, prioridade, em razão da urgência e necessidade de quem o recebe.
Orlando Gomes, ao tratar acerca da proibição de descontos no salário, afirma categoricamente a função alimentar da verba:
O salário deve ser integralmente pago. Esse é o princípio. Proíbe a lei que sejam efetuados descontos, mediante os quais se reduziria efetivamente o montante da remuneração ajustada. As conseqüências de tal redução seriam desastrosas para o trabalhador. Como se sabe, o salário é o meio único de sua subsistência, tendo, por conseguinte, indiscutível caráter alimentar. A possibilidade de ser diminuído, por descontos, retenção ou compensação, constituiria grave ameaça ao equilíbrio do orçamento doméstico do empregado.[...]. (grifo nosso). (GOMES, 1996, p. 103).
Nessa esteira, infere-se que em razão da alimentariedade da verba, esta se reveste de proteções, sendo legalmente vedado, por exemplo, os descontos arbitrários no salário. Outras garantias são asseguradas pela legislação em razão de sua natureza alimentar que reduzem a possibilidade de o empregador ou terceiro especulem ou se utilizem da hipossuficiência do empregado, dependente da remuneração, para a prática de atos abusivos.
Destarte, cabe ao Estado dispensar a máxima proteção à remuneração, impedindo a instabilidade do indivíduo e da família. Em uma análise mais profunda, trata-se da tutela da própria vida e da vida digna, pois o salário viabiliza todo o necessário à subsistência – moradia, alimentação, educação, transporte, lazer etc. Negligenciar a proteção ao salário, deste modo, se consubstancia na negligência de todos estes direito básicos e constitucionalmente reconhecidos.
Ademais, reduzido ao estado de pobreza, na dependência da remuneração que provê o sustento próprio e familiar, o trabalhador se submete a uma progressiva condição de degradação moral, psíquica e física, que o torna vulnerável a qualquer tipo de exposição a situações de risco, abuso ou exploração em troca de um mínimo de vida, ainda que precária.
O salário é a contraprestação de maior relevância no contrato trabalhista. Conforme já referido, no âmbito das contribuições laborais, se equipara a um núcleo, de modo que as demais parcelas remuneratórias e indenizatórias se posicionam ao seu redor, podendo sofrer a força atrativa salarial.
Essa atração se dá principalmente pela finalidade alimentar da retribuição. Após integrada ao salário, a verba adquire as características dele, tais como a obrigatoriedade, irredutibilidade, gerando, ainda, todos os efeitos legais, sendo base de cálculo para férias, décimo terceiro, FGTS e outros direitos trabalhistas.
O critério determinante para a atração salarial é a habitualidade, haja vista que uma parcela indenizatória ou remuneratória paga periodicamente passa, naturalmente, a integrar o orçamento do empregado, servindo para seu sustento pessoal e familiar.
Já foi possível inferir um conceito de habitualidade pelo Enunciado 76 do TST – cancelado em 2003 –, como sendo prestação paga continuadamente por mais de dois anos, ou durante todo o contrato, quando de duração inferior.
No entanto, habitualidade é um conceito aberto, cabendo ao aplicador da lei examinar no caso concreto sua incidência.
Conforme afirma José Augusto Rodrigues Pinto, somente o núcleo de caráter salarial reveste-se de caráter alimentar, razão pela qual é irredutível. Mas, por sua força atrativa conjugada com a habitualidade de parcelas de outra natureza, estas também podem passar a compor o salário, adquirindo a destinação também de alimentos. (PINTO, 2007, p. 335).
Destarte, conclui-se que a gratificação, a gorjeta ou indenizações, apresentando a habitualidade podem ser parte do salário, de caráter alimentar, de modo a serem dotadas de irredutibilidade, impenhorabilidade e obrigatoriedade, alcançando proteção do ordenamento pátrio.
Importa trazer à baila a flexibilização do princípio da força atrativa do salário, que, por meio de previsões legais, vem afastando a possibilidade de espécies de contraprestações adquirirem natureza salarial. Como exemplo, o art. 458, §2º da CLT:
§ 2o Para os efeitos previstos neste artigo, não serão consideradas como salário as seguintes utilidades concedidas pelo empregador:
I – vestuários, equipamentos e outros acessórios fornecidos aos empregados e utilizados no local de trabalho, para a prestação do serviço;
II – educação, em estabelecimento de ensino próprio ou de terceiros, compreendendo os valores relativos a matrícula, mensalidade, anuidade, livros e material didático;
III – transporte destinado ao deslocamento para o trabalho e retorno, em percurso servido ou não por transporte público;
IV – assistência médica, hospitalar e odontológica, prestada diretamente ou mediante seguro-saúde;
V – seguros de vida e de acidentes pessoais;
VI – previdência privada; (BRASIL, 1943)
O preceito de lei supratranscrito trata de benefícios concedidos pelo empregador que não tem o condão de serem atraídos pelo núcleo salarial. Tal flexibilização, todavia, é favorável ao empregado por se tratar de um estímulo legal para o fornecimento pelo empregador de benefícios que elevam a qualificação, condição social e psicológica do trabalhador, bem como atenuam os riscos e danos sociais.
O legislador, ao diminuir os encargos trabalhistas, viabiliza a concessão de benesses que, se elevassem o custo do contrato, certamente não seriam disponibilizadas.
A responsabilidade do estado no fornecimento de transporte, saúde, educação e segurança no que concerne às incapacidades pessoais para o trabalho não anulam a possibilidade de cooperação por parte da sociedade, desde que os empregadores não se utilizem dos benefícios para atrair trabalhadores pactuando, em contrapartida, um valor reduzido a título de salário.
Pelo princípio da responsabilidade patrimonial, os bens do devedor constituem a garantia do credor. O inadimplente, antigamente, poderia ser vendido ou escravizado com o intuito de saldar a dívida. Hoje, contudo, a tutela da dívida restringe-se ao âmbito patrimonial, resguardado, ainda, o mínimo de bens materiais necessários à subsistência honrosa do devedor.
Pode ocorrer, contudo, a insolvência e a falência, quando a soma do valor devido excede o total de bens passíveis de penhora.
Nesta hipótese, instaura-se a execução concursal que visa a promover a quitação dos débitos atendendo a todos os credores, levando em conta as necessidades peculiares de cada um, bem como concedendo igual chance aos de mesma categoria, minimizando os prejuízos, ainda que inevitável.
A execução concursal distingue os devedores em função da necessidade ou da garantia contratada. A garantia é conceituada como reforço de cunho pessoal ou real que aumentam as chances de quitação do débito. Por exemplo, a hipoteca, a fiança etc.
Na insolvência, requisito para a execução concursal, todas as dívidas serão consideradas vencidas, evitando que o prejuízo recaia sobre determinado débito em decorrência de seu vencimento posterior. Então a integralidade do passivo será analisada em conjunto com todo o patrimônio do devedor.
Destaca-se que a execução concursal se processa de modo distinto quando o devedor se trata de pessoa jurídica ou física, dando ensejo à falência na primeira hipótese e à insolvência civil (art. 748 a 786-A, CPC) na segunda.
Impende conceituar privilégio e preferência. Privilégio, nas palavras de Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona “envolve a ideia de um benefício especial ou prerrogativa concedida a alguém (ou a alguma relação jurídica), como uma exceção em relação às demais pessoas (ou relações jurídicas)”. (GAGLIANO, PAMPLONA, 2012, p. 400)
É uma vantagem que concede ao crédito direito de preferência, ou seja, concede ao credor o direito de reaver o quantum devido em primeiro lugar. Pode ser real, em caso de garantia real, que a coisa fica vinculada ao cumprimento da obrigação pelo direito de sequela. E, em caso de crédito de natureza pessoal, pode ser especial (art. 964 do CC/02), quando somente diz respeito a determinados bens dentre o total responsável pelo debitumou geral (art. 965 do CC/02), quando todo o patrimônio do devedor responde, tendo preferência somente em relação aos créditos comuns.
Preferência, por seu turno, também no entendimento dos mencionados autores, “traz consigo, a convicção de que algo deve ser feito ou considerado antes de outro”. (Idem, p. 400). No caso da preferência creditória, impõe uma sequência a ser seguida na qual é concedido o direito de prioridade na satisfação de determinados créditos em detrimento de outros a depender de privilégios ou de categorias estabelecidas por meio de lei ou contrato.
Uma vez reunido todo o passivo em situação de insolvência em conjunto com o patrimônio do devedor, os créditos comuns terão igual possibilidade de adimplemento, proporcionalmente aos seus valores. Pode a lei, entretanto, distinguir certos débitos em decorrência de sua causa ou natureza, conferindo a estes privilégios, de modo que sejam preferenciais na execução. Uma vez preferenciais, serão satisfeitos antes da quitação dos débitos quirografários (ou comuns).
Em princípio, conforme determina o art. 961 do CC/02 tem-se a ordem de preferências priorizando o crédito real, depois o crédito pessoal privilegiado especial, depois o crédito pessoal privilegiado geral e, por fim, o crédito quirografário.
Há, todavia, previsões em outras leis do ordenamento que devem ser observadas na sequência integral das preferências.
Os créditos trabalhistas, por seu caráter alimentar, são dotados de privilégio pelo ordenamento. Em caso de insolvência, iniciada a execução concursal, são preferenciais, antecedendo às garantias reais, aos créditos tributários e aos quirografários.
Em verdade a preferência decorre do privilégio concedido aos créditos alimentares, que se consubstanciam nos salários, créditos trabalhistas, créditos alimentares e outros. Tais créditos têm prioridade sobre quaisquer outros créditos.
A súmula 144 do STJ dispõe que “Os créditos de natureza alimentícia gozam de preferência, desvinculados os precatórios da ordem cronológica dos créditos de natureza diversa”.
Ademais, o art. 449 da Consolidação das Leis do Trabalho ratifica a preferência do crédito trabalhista:
Art. 449 - Os direitos oriundos da existência do contrato de trabalho subsistirão em caso de falência, concordata ou dissolução da empresa.
§ 1º - Na falência constituirão créditos privilegiados a totalidade dos salários devidos ao empregado e a totalidade das indenizações a que tiver direito.
§ 2º - Havendo concordata na falência, será facultado aos contratantes tornar sem efeito a rescisão do contrato de trabalho e conseqüente indenização, desde que o empregador pague, no mínimo, a metade dos salários que seriam devidos ao empregado durante o interregno. (BRASIL, 1943).
Em seguida são preferenciais os créditos tributários[3], quais sejam, os impostos ou taxas devidos pelo insolvente, quando, então, em sobrando ativo, quitam-se os débitos com garantias reais e as seguintes categorias já anteriormente elencadas.
A lei de falências e Recuperação de Empresas (Lei n. 11.101, de 9.2.2005) anuncia também uma ordem preferencial estabelecendo os créditos de garantia real como prioritários em relação aos créditos fiscais. Tal diferenciação se aplica em caso de insolvência de pessoa jurídica.
Pela clareza e didática, vale transcrever os artigos 83 e 34 da referida Lei:
Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:
I – os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinqüenta) salários-mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho;
II - créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado;
III – créditos tributários, independentemente da sua natureza e tempo de constituição, excetuadas as multas tributárias;
IV – créditos com privilégio especial, a saber:
a) os previstos no art. 964 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002;
b) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei;
c) aqueles a cujos titulares a lei confira o direito de retenção sobre a coisa dada em garantia;
V – créditos com privilégio geral, a saber:
a) os previstos no art. 965 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002;
b) os previstos no parágrafo único do art. 67 desta Lei;
c) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei;
VI – créditos quirografários, a saber:
a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo;
b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento;
c) os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo;
VII – as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, inclusive as multas tributárias;
VIII – créditos subordinados, a saber:
a) os assim previstos em lei ou em contrato;
b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício.
§ 1o Para os fins do inciso II do caput deste artigo, será considerado como valor do bem objeto de garantia real a importância efetivamente arrecadada com sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado.
§ 2o Não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócio ao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade.
§ 3o As cláusulas penais dos contratos unilaterais não serão atendidas se as obrigações neles estipuladas se vencerem em virtude da falência.
§ 4o Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários.
Art. 84. Serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta Lei, na ordem a seguir, os relativos a:
I – remunerações devidas ao administrador judicial e seus auxiliares, e créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho relativos a serviços prestados após a decretação da falência;
II – quantias fornecidas à massa pelos credores;
III – despesas com arrecadação, administração, realização do ativo e distribuição do seu produto, bem como custas do processo de falência;
IV – custas judiciais relativas às ações e execuções em que a massa falida tenha sido vencida;
V – obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67 desta Lei, ou após a decretação da falência, e tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da falência, respeitada a ordem estabelecida no art. 83 desta Lei. (grifo nosso). (BRASIL, 2005).
Importante destacar que da lei infere-se uma relativização à proteção do salário, pois limita sua preferência até a quantia de 150 salários mínimos por credor.
O ponto mais relevante, contudo, é o privilégio dispensado ao crédito trabalhista, o qual se torna prioritário em relação a todos os demais créditos por seu caráter alimentar, configurando-se como verba de elevada importância, merecedora de acurada proteção legal.
6 CONCLUSÃO
A função principal da retribuição trabalhista é a de fornecer a subsistência digna do trabalhador e da sua família. Cabe ao Direito, de maneira integrada, através dos meios materiais e processuais, afastar e minimizar ao máximo qualquer possibilidade de violação a esse direito constitucionalmente assegurado. Por esta razão a remuneração laboral é dotada de garantias como irredutibilidade e obrigatoriedade e passa a ser alvo de maior importância no âmbito da execução, sendo abarcada pelo direito de preferência.
A prestação jurisdicional é a única possibilidade de ver satisfeita a contraprestação trabalhista quando não quitada voluntariamente, pois o Estado centraliza a responsabilidade de tutelar o direito violado, impelindo qualquer iniciativa de autotutela.
Destarte, impende conceder maior efetividade à prestação jurisdicional a fim de proporcionar a máxima proteção ao trabalhador e sua família, garantindo a subsistência condigna destes.
REFERÊNCIAS
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[1] Art. 7º, VI/CF: “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”.
[2] BRASIL, 1988. No Art. 7º, VII/CF o legislador reforça o direito ao salário não inferior ao mínimo legal para aqueles que percebem remuneração variável através da seguinte redação: “garantia de salário nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável”.
[3] Art. 186, CTN. “O crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for a natureza ou o tempo da constituição deste, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho.”
Graduação em Direito Universidade Federal da Bahia, UFBA, Bahia, Brasil. Curso de Especialização em Direito Comunitário e União Europeia na Universidade de Cantabria, Santander Espanha. Bacharelado em Comunicação Social com Relações Públicas (incompleto) Universidade do Estado da Bahia, UNEB, Bahia, Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Mírian dos Reis Ferraz de. Aspectos do crédito trabalhista na execução Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2015, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44019/aspectos-do-credito-trabalhista-na-execucao. Acesso em: 22 nov 2024.
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