RESUMO: O presente artigo tem por fim o estudo acerca da responsabilidade do advogado público, em especial, o Advogado da União, em exercício na atividade consultiva, o qual, em algumas ocasiões tem sido penalizado pela opinião exarada em um parecer jurídico. Para tanto, serão analisadas as características do parecer, tal como conceito, natureza jurídica e espécies. Na sequência, será verificado o entendimento da jurisprudência pátria, bem como da doutrina, acerca do tema da responsabilização pessoal do advogado parecerista. Assim, tendo-se como respaldo o atual cenário jurídico, será apresentada uma conclusão abarcando os diversos entendimentos existentes, bem como apontando aquele que parece ser o mais adequado.
PALAVRAS-CHAVE: Advogado. Consultivo. Parecer. Responsabilidade. Jurisprudência. Doutrina.
INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 131, dispõe ser a Advocacia Geral da União a instituição que representa a União, judicial e extrajudicialmente, exercendo as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo Federal.
A Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 2013, que institui a Lei Orgânica da Advocacia Geral da União, por sua vez, estabelece, ao longo dos seus artigos, as diversas atribuições daqueles que integram a referida carreira. No que tange às Consultorias Jurídicas, dispõe, em seu art. 11, que compete aos referidos órgãos prestar assessoria jurídica aos Ministros de Estados, ao Secretário Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, aos quais estiverem subordinados.
É no exercício dessa tarefa de assessoramento, que, em regra, os advogados públicos emitem a sua opinião jurídica por meio de pareceres. A depender do caso, conforme restará demonstrado, a realização da consulta jurídica pode ser facultativa ou obrigatória, assim como o posicionamento exarado pelo parecerista pode assumir caráter vinculante ou meramente opinativo.
Nessa esteira, muito se discute acerca da responsabilidade que recaí sobre aquele que externa a sua opinião jurídica por meio de um parecer. Questiona-se se deveria o advogado público responder de forma pessoal pelas consequências advindas do ato administrativo praticado com respaldo no seu parecer jurídico. Indaga-se, ainda, se o parecer integraria o ato administrativo praticado posteriormente pelo gestor público que se acudiu da opinião jurídica exarada.
Os tribunais pátrios já possuem manifestações acerca desses questionamentos, tendo, inclusive, o Supremo Tribunal Federal já apreciado a questão. Todavia, diante da complexidade do tema e da vivência diária do embate por aqueles que atuam na função de assessoramento jurídico, é que o presente estudo se caracteriza como de maior relevância.
I – PARECER. CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E ESPÉCIES.
De acordo com o Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa, o parecer, na qualidade de substantivo masculino, define-se como a “opinião de um especialista em resposta a uma consulta”. No contexto em análise, o especialista é operador do direito, e a consulta se refere ao questionamento formulado pelo órgão assessorado a fim de buscar respaldo para prática de um determinado ato.
No âmbito do direito administrativo, o parecer, ato administrativo que é, encontra-se classificado dentre aqueles denominados de “atos enunciativos”. Nesse sentido, cumpre transcrever os ensinamentos de Hely Lopes Meirelles quanto ao conceito do ato administrativo, bem como dos atos enunciativos e, em especial, do parecer. Vejamos:
Ato administrativo é toda manifestação unilateral da administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria.
Atos administrativos enunciativos são todos aqueles em que a Administração se limita a certificar ou atestar um fato, ou emitir uma opinião sobre determinado assunto, sem se vincular ao seu enunciado. Dentre os atos mais comuns desta espécie merecem menção as certidões, os atestados, e os pareceres administrativos.
Pareceres administrativos são manifestações de órgãos técnicos sobre assuntos submetidos à sua consideração[1]
Assim, uma vez definido que o parecer é um ato administrativo enunciativo através do qual um órgão técnico emite a sua opinião sobre uma determinada consulta que lhe foi formulada, cumpre, então, tecer comentários sobre a facultatividade/obrigatoriedade da realização da consulta jurídica, bem como sobre os efeitos vinculantes, ou não, do parecer exarado.
No que tange aos “pareceres facultativos” (o que é facultativo é a consulta em si, e não a emissão do parecer), cabe ao administrador, com base na sua discricionariedade, decidir por submeter ou não a prática de um determinado ato à análise da assessoria jurídica, já que não há lei que fixe essa obrigação. Nesse caso, mesmo em sendo formulada a consulta, o administrador não ficará vinculado à opinião técnica exarada no parecer, podendo vir a praticar o ato mesmo quando o parecerista opinar pela não aprovação do ato. Nesse caso, entretanto, conforme defendido pela doutrina, deve o administrador motivar a superação do parecer.
Ademais, em sendo a consulta facultativa, pode o gestor, posteriormente à emissão do parecer, decidir por praticar o ato de forma distinta daquela submetida à análise jurídica, já que desde o início a prática do ato prescindia de parecer prévio. Ou seja, não fica o administrador sequer vinculado a praticar o ato nos termos como exposto na consulta.
De outro lado, a depender do caso, pode o administrador estar obrigado a realizar uma consulta prévia acerca da legalidade da pratica de um determinado ato. Nesses casos, em que a doutrina denomina de “parecer obrigatório”, há uma previsão legal expressa no sentindo de que a prática do ato está subordinada à emissão de um parecer jurídico, de modo que acaso o gestor pratique o mencionado ato sem buscar a necessária opinião jurídica, ter-se-á um ato eivado, uma vez que “Se inobservada a obrigação, considerar-se-á que o ato decisório tem vício de legalidade quanto à forma, eis que faltante solenidade essencial a sua validade”.[2]
Nessa esteira, cumpre esclarecer que no caso do “parecer obrigatório” (não se está falando do “parecer vinculante”, o qual será analisado adiante), a lei exige tão somente que a prática do ato seja submetida à análise jurídica, ou seja, não há a exigência de que a opinião constante do parecer seja pela aprovação do ato. Isto é, mesmo que o parecer reprove a prática do ato pretendido, não está o administrador impedido de – mediante necessária fundamentação – ultrapassar o parecer e consumar o ato.
O fato de o parecer ser obrigatório, contudo, vincula o gestor a praticar o ato nos termos como exposto na consulta. Ou seja, exemplificado: o gestor formula uma consulta à sua assessoria jurídica acerca da legalidade de a administração celebrar um contrato cedendo em comodato dez computadores; após a emissão do parecer aprovando a referida pretensão, pretende o administrador, agora, celebrar o aludido contrato com uma modificação: ao invés de comodato, decidiu por celebrar um contrato de locação. Ora, se nesse caso específico houvesse a exigência de parecer prévio para a celebração de contratos de comodato e de aluguel, não poderia o administrador celebrar o contrato de aluguel com respaldo no parecer que aprovou o contrato de comodato. Trata-se de questão distinta que deveria ser submetida a uma nova consulta jurídica.
Nos casos em que a lei prevê os chamados “pareceres obrigatórios”, em regra, a opinião jurídica nele exarada não tem natureza vinculante, de modo que o administrador não fica obrigado a praticar o ato tal como decidido pelo parecerista. Nesses casos, têm-se, então, os pareceres obrigatórios de opinião não vinculante.
Há hipóteses, entretanto, em que a lei prevê de forma expressa o efeito vinculante do parecer. Tal se dá quando a lei estabelece que a prática do ato “x” está condicionada à prévia aprovação jurídica por meio de parecer. Todavia, trata-se de exceção em que deve haver expressa previsão legal, já que, ordinariamente, o parecer, ato enunciativo que é, apenas expõe uma opinião. Nesse sentido, José dos Santos Carvalho Filho:
A característica marcante dos pareceres repousa na circunstância de que não são decisórios, vale dizer, sendo atos de opinamento, necessitam da aprovação de seu conteúdo por meio de outro ato administrativo, praticado pela autoridade que, de acordo com as regras de competência, tem o poder de decidir sobre a matéria.
(...)
Pareceres vinculantes são atos de opinião em que o órgão incumbido da prática do ato principal não somente tem a obrigação de solicitá-los preliminarmente, como também deve endossar seu conteúdo. Exatamente porque fogem um pouco de sua característica mais marcante, sua existência encerra regime de exceção e só devem ser assim considerados quando a lei ou o regulamento dispuserem expressamente em tal sentido.[3]
Portanto, nesses casos em que a lei prescreve a obrigatoriedade de o administrador praticar o ato tal como “aconselhado” pelo parecerista, haverá ausência de discricionariedade do gestor, que ficará impedido de descumprir o parecer e praticar o ato administrativo de forma diversa. Acaso assim proceda, haverá patente ilegalidade em sua conduta.
Nessa esteira, há quem defenda que o “parecer vinculante”, em realidade, teria natureza decisória, e não meramente opinativa, como ocorre no caso dos “pareceres não vinculantes”. Nesse sentido, José dos Santos Carvalho Filho:
Costuma a doutrina fazer referência aos pareceres vinculantes, assim conceituados aqueles que impedem a autoridade decisória de adotar outra conclusão que, não seja a do ato opinativo, ressalvando-se, contudo, que se trata de regime de exceção e, por isso mesmo, só sendo admitido se a lei o exigir expressamente. Em nosso entender, porém, há um desvio de qualificação jurídica nesses atos: pareceres são atos opinativos, de modo que, se o opinamento do parecerista vincula outra autoridade, o conteúdo do ato é tipicamente decisório, e não meramente opinativo, como é de sua natureza. Em suma: o parecerista acaba tendo a vestimenta de autoridade decisória, cabendo ao agente vinculado papel meramente secundário e subserviente à conclusão do parecerista. Cuida-se, pois, de exdrúxula inversão de status jurídico.[4]
Assim, uma vez que a conduta do administrador deve se pautar nos termos do parecer, parcela da doutrina defende que nesses casos, o parecer vinculante integraria o próprio ato administrativo praticado a posteriori, já que houve uma partilha do poder decisório para tanto. Contudo, cumpre esclarecer que referido entendimento não se estende aos pareceres “não vinculantes”, que são meramente opinativos, conforme já estudado. Nessa esteira, é o seguinte excerto do voto do Ministro Joaquim Barbosa no julgamento do MS 24.631/DF, cujo Acórdão foi publicado no dia 01/02/2008.
Assim, via de regra, se a lei (i) não exige expressamente parecer favorável como requisito de determinado ato administrativo, ou (ii) exige apenas o exame prévio por parte do órgão de assessoria jurídica, o parecer técnico- jurídico em nada vincula o ato administrativo a ser praticado, e dele não faz parte. Nesses casos, se o administrador acolhe as razões do parecer jurídico, incorpora, sim, ao seu ato administrativo, os fundamentos técnicos; mas isso não quer dizer que, com a incorporação dos seus fundamentos técnicos ao ato administrativo, o parecer perca sua autonomia de ato meramente opinativo que nem ato administrativo propriamente dito é, como bem define Hely Lopes MEIRELLES: “o que subsiste como ato administrativo não é o parecer, mas, sim, o ato de sua aprovação, que poderá revestir a modalidade normativa, ordinatória, negocial ou punitiva” (Direito Administrativo Brasileiro, 28ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 198)
(...)
A doutrina brasileira, embora tradicionalmente influenciada pela doutrina francesa nesta matéria, não desce a essa sofisticação de detalhes, preferindo manter-se fiel à noção de que o parecer jurídico tem sempre caráter opinativo. O que é relevante nessa classificação é que, no caso do parecer vinculante, há efetiva partilha do poder decisório. É nessa linha de entendimento que o professor CHAPUS sustenta haver maculação, por vício de competência, do ato administrativo expedido sem a observância do “avis conforme” nos casos em que a lei o exige.
Isto porque nesses casos em que o parecer favorável de órgão consultivo é, por força de lei, pressuposto de perfeição do ato, há efetiva “partilha do poder de decisão” entre a autoridade executiva e o órgão consultivo.
Diante do que até aqui exposto, é de se concluir que, para parte da doutrina, o “parecer vinculante” integraria o próprio ato administrativo praticado pelo gestor, uma vez que o parecerista participou de forma efetiva da tomada de decisão que culminou com a prática do ato. Por outro lado, no caso dos “pareceres não vinculantes”, não haveria que se falar em um único ato administrativo, haja vista que o ato praticado a posteriori não guardaria qualquer relação de vinculação com o quanto exposto no parecer.
Cumpre esclarecer, por oportuno, que ao se afirmar que o “parecer vinculante” integra o ato administrativo praticado posteriormente, ter-se-á, então, um ato administrativo composto. O ato administrativo composto, nos ensinamentos de Maria Sylvia Zanella di Pietro:
Ato composto é o que resulta da manifestação de dois ou mais órgãos, em que a vontade de um é instrumental em relação a de outro, que edita o ato principal. Enquanto no ato complexo fundem-se vontade para praticar um ato só, no ato composto, praticam-se dois atos, um principal e um acessório; esse ultimo pode ser pressuposto ou complementar daquele.
(...)
Os atos, em geral, que dependem de autorização, aprovação, proposta, parecer, laudo técnico, homologação, visto etc., são atos compostos.[5]
Nesse passo, uma vez estabelecida a distinção entre os casos de consultas obrigatórias e facultativas, entre “pareceres vinculantes e não vinculantes”, bem como o fato de que, conforme jurisprudência pátria, apenas o “parecer vinculante” integra o ato administrativo, cumpre adentrar no exame da responsabilidade pessoal do advogado parecerista.
II – RESPONSABILIDADE PESSOAL DO ADVOGADO PARECERISTA
Conforme já devidamente explicitado, o ordenamento jurídico reconhece a existência de “pareceres vinculantes” e “não vinculantes”. Na análise que agora se inicia, essa distinção é de suma importância.
É sabido que o “parecer não vinculante” não integra o ato administrativo praticado após a formulação da consulta, assim como que o gestor administrativo, nesse caso, pode praticar o ato administrativo ao seu livre arbítrio.
Já o “parecer vinculante”, exatamente por vincular a conduta do agente administrativo, integraria o ato administrativo praticado com seu respaldo.
Deste modo, em um primeiro momento, poder-se-ia afirmar que se em algum desses casos houvesse a incidência de responsabilidade pessoal do parecerista, o seria nos “pareceres vinculantes”, já que o advogado público estaria partilhando do poder decisório.
Todavia, a conclusão dessa análise não é tão simples como parece, pois enquanto parte da doutrina defende que a responsabilidade do parecerista nunca pode ser a regra, outra corrente defende que mesmo no caso dos “pareceres não vinculantes” o advogado parecerista deve responder pela opinião exarada, uma vez que o gestor estará praticando o ato na confiança de que há um respaldo jurídico para tanto.
Ademais, sustenta-se que a irresponsabilidade do advogado ocasionaria uma situação de impunidade, pois o administrador justificaria a prática do ato no parecer, e o parecerista justificaria a inviolabilidade de sua opinião.
Instado a se manifestar sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Segurança nº 24.631/DF, se posicionou no sentido de reconhecer, em regra, a responsabilidade pessoal do advogado que emite opinião através de “parecer vinculante”, e, excepcionalmente, daquele que elabora “parecer não vinculante”. Eis a ementa do referido julgado:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONTROLE EXTERNO. AUDITORIA PELO TCU. RESPONSABILIDADE DE PROCURADOR DE AUTARQUIA POR EMISSÃO DE PARECER TÉCNICO-JURÍDICO DE NATUREZA OPINATIVA. SEGURANÇA DEFERIDA. I. Repercussões da natureza jurídico-administrativa do parecer jurídico: (i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo; (ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer; (iii) quando a lei estabelece a obrigação de decidir à luz de parecer vinculante, essa manifestação de teor jurídica deixa de ser meramente opinativa e o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir. II. No caso de que cuidam os autos, o parecer emitido pelo impetrante não tinha caráter vinculante. Sua aprovação pelo superior hierárquico não desvirtua sua natureza opinativa, nem o torna parte de ato administrativo posterior do qual possa eventualmente decorrer dano ao erário, mas apenas incorpora sua fundamentação ao ato. III. Controle externo: É lícito concluir que é abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa. Mandado de segurança deferido.
(MS 24631, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 09/08/2007, DJe-018 DIVULG 31-01-2008 PUBLIC 01-02-2008 EMENT VOL-02305-02 PP-00276 RTJ VOL-00204-01 PP-00250)
Assim, verifica-se que, após analisar as diferentes espécies de pareceres, o Egrégio STF concluiu que não se pode, deliberadamente, atribuir responsabilidade pessoal ao advogado público pela opinião exarada em um parecer.
No caso dos “pareceres vinculantes”, da interpretação da ementa acima transcrita, conclui-se que a regra é a responsabilidade pessoal do parecerista, vez que o advogado partilhou do poder decisório para a prática do ato administrativo.
Já em se tratando de “pareceres não vinculantes”, a regra é a não responsabilização pessoal, uma vez que a participação do advogado tem caráter meramente opinativo. Contudo, mesmo nesses casos, se comprovado que o parecerista, ao emitir sua opinião, incorreu em culpa ou erro grosseiro, estar-se-á diante de uma exceção na qual o advogado poderá ser penalizado pessoalmente.
Todavia, em que pese se tratar do entendimento da Máxima Corte Brasileira, fato é que abalizada doutrina interpreta o mencionado entendimento com restrições. Para essa parcela, o advogado parecerista só poderia responder pessoalmente nos casos em ficasse comprovada a culpa ou o erro grosseiro, independentemente de ser o parecer “vinculante” ou “não vinculante”.
Como sustentáculo para a defesa desta tese, pode-se citar o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil que dispõe ser o advogado, público ou privado, inviolável no exercício do seu ofício, respondendo apenas quando agir com dolo ou culpa. Nesse sentido:
Art. 2º O advogado é indispensável à administração da justiça.
(...)
§ 3º No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei.
Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional.
Art. 32. O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa. (grifos do autor)
De fato, a razão parece estar com essa corrente doutrinária, uma vez que não pode ser transferida para o advogado público a responsabilidade pela prática de um ato. Ainda que o parecer proferido assuma caráter vinculante, em última instância, o poder de decisão pela prática do ato cabe à autoridade administrativa. Isto é, o fato de o advogado proferir o parecer pela aprovação do procedimento não obriga o gestor público a praticar o ato, uma vez que pode o gestor, ainda assim, decidir por não praticá-lo.
Ademais, acaso a responsabilidade do advogado parecerista venha a se tornar uma regra, ainda que só nos “pareceres vinculantes”, estará esse profissional acuado no exercício das suas funções, pois sempre haverá o temor de expor sua opinião, ainda que fundamentada, vez que será passível de punição pessoal. Deste modo, por vezes, o consultor optará por negar a prática do ato apenas pelo receio da responsabilização, ainda que entenda que o melhor, diante do interesse público, seria a prática do referido ato.
Adepto dessa corrente, Rafael Carvalho Rezende Oliveira expõe:
Entendemos, todavia, que a responsabilidade pela emissão do parecer somente é possível quando comprovado erro grosseiro ou o dolo do parecerista.
Em primeiro lugar, o dever de administrar cabe à autoridade administrativa, e não ao consultor jurídico, sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes. A decisão final sempre será da autoridade que pode, inclusive, decidir por não continuar com o processo de licitação/contratação, apesar da existência do parecer jurídico. É a autoridade administrativa (e não o advogado público) a responsável pela administração pública ou gestão da coisa pública, sendo, a nosso ver, incoerente a classificação do parecer como “vinculante” quando, em verdade, o ato representa apenas a opinião jurídica do advogado.
Em segundo lugar, existem diversas interpretações jurídicas que podem ser razoavelmente apresentadas em cada situação concreta, não sendo possível responsabilizar o advogado público que apresentou interpretação razoável. Não se pode desconsiderar o fato de que o advogado público tem que manifestar a sua opinião no momento em que o fato se apresenta, sem a real noção, muitas vezes, das inúmeras consequências (boas ou ruins) que poderão ser produzidas.[6]
Perfilhando do mesmo entendimento, Maria Sylvia:
Na realidade, o parecer contém a motivação do ato a ser praticado pela autoridade que o solicitou. Por isso mesmo, se acolhido, passa a fazer parte integrante da decisão. Essa a razão pela qual o Tribunal de Contas tem procurado responsabilizar os advogados públicos que, com seu parecer, deram margem a decisão considerada ilegal. No entanto, essa responsabilização não pode ocorrer a não ser nos casos em que haja erro grosseiro, culpa grave, má-fé por parte do consultor; ela não se justifica se o parecer estiver adequadamente fundamentado; a simples diferença de opinião – muito comum na área jurídica – não pode justitifcar a responsabilização do consultor. Não é por outra razão que o parecer isoladamente não produz qualquer efeito jurídico; em regra, ele é meramente opinativo.[7] (grifo do autor)
O Poder Legislativo do Estado do Rio de Janeiro, em iniciativa digna de nota, ao editar a Lei Estadual nº 5.427/09, que estabelece as regras sobre atos e processos administrativos, fez consignar, no art. 38, §3º, que:
Art. 38. Quando deva ser obrigatoriamente ouvido um órgão consultivo, o parecer deverá ser emitido no prazo máximo de trinta dias, salvo norma especial ou comprovada necessidade de prorrogação.
§1º Se um parecer obrigatório e vinculante deixar de ser emitido no prazo fixado, o processo não terá seguimento até a respectiva apresentação, responsabilizando-se quem der causa ao atraso.
§2º Se um parecer obrigatório e não vinculante deixar de ser emitido no prazo fixado, o processo poderá ter prosseguimento e ser decidido com sua dispensa, sem prejuízo da responsabilidade de quem se omitiu no atendimento.
§3º A divergência de opiniões na atividade consultiva não acarretará a responsabilidade pessoal do agente, ressalvada a hipótese de erro grosseiro ou má-fé. (grifo do autor)
Portanto, com ressalvas ao entendimento da Egrégia Corte, a responsabilidade pessoal do advogado parecerista não poder ser regra – deve ser exceção, analisada de caso a caso – só sendo reconhecida quando restar comprovado que o consultor agiu com culpa ou praticou erro grosseiro. Nesse sentido:
Por todos esses aspectos é que não pode, em linha de princípio, responsabilizar o agente parecerista pelas opiniões que expressa no parecer. É verdade que, em alguns casos, tem havido certa tendência a essa responsabilização. Mas o correto é não generalizar e analisar a hipótese de forma pontual.
(...)
Para que a administração ou o interessado possam atribuir responsabilidade ao agente parecerista, caber-lhes-á a demonstração de que houve erro injustificável ou dolo de sua parte. Sem essa demonstração não se presumem semelhantes as situações.
É por essa razão que a escolha dos agentes pareceristas deve obedecer a critério de mérito, devendo basear-se em sua qualidade, verificada por seu conhecimento e pela dedicação à pesquisa e aos estudos em geral. Se a escolha tiver por móvel o favorecimento do agente, o risco de errôneos opinamentos será evidentemente maior.[8]
Suplantado esse ponto, tem-se ainda como questão controversa o que pode vir a ser considerado como culpa ou erro grosseiro para fins de ensejar a responsabilidade do parecerista. Bastaria, para tanto, um erro na análise dos fatos ou a aplicação de uma corrente jurídica minoritária? Parece que não.
Por se tratar de exceção, a interpretação do quem vem a ser culpa ou erro grosseiro deve ser restrita, sob pena de se transformar em regra a responsabilidade pessoal do parecerista.
Deste modo, tem-se que o simples fato de o parecerista embasar a sua opinião em uma determinada corrente jurídica, que, na opinião do órgão julgador não seja a que melhor se aplica ao caso, não pode ensejar a responsabilidade pessoal.
O que aqui se procura esclarecer é que não pode o órgão julgador adentrar no mérito jurídico do parecer para analisar se naquele caso o advogado se manifestou da melhor forma ou não. Não é cabível uma valoração do mérito jurídico. O advogado público, em face de sua independência funcional, não pode ser punido por meio de um juízo de valoração acerca de sua opinão técnica.
O Tribunal Regional Federal da 1º Região, analisando o tema, deixou clara a interpretação restrita que deve ser dada para a culpa e para o erro grosseiro:
ADMINISTRATIVO - IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - AGRAVO DE INSTRUMENTO - EMISSÃO DE PARECER - NATUREZA OPINATIVA - INEXISTÊNCIA DE CULPA GRAVE OU DOLO - PARECER DO PROCURADOR-GERAL DO MUNICÍPIO - AUSÊNCIA DE RESPONSABILIZAÇÃO DO PARECERISTA - AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. 1. O agravante, na qualidade de Coordenador Jurídico da Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA), emitiu parecer favorável à contratação, sem licitação, de especialista jurídico privado para subsidiar decisão administrativa, da dirigente da entidade, em sentido contrário à instauração de processo administrativo disciplinar, que apuraria irregularidades funcionais perpetradas pelo agravante e outros Procuradores Federais atuantes na SUFRAMA. 2. Conquanto os julgados do TCU não vinculem o Judiciário, observa-se que, in casu, que o Acórdão 801/2012 - Plenário foi proferido após detida análise de todos os elementos dos autos. 3. A prática de ato administrativo por agente público que tenha causado dano ao erário, ainda que fundamentado em parecer jurídico de consultoria jurídica, não gera como consequência necessária a responsabilidade do profissional da advocacia pública que subscreveu a peça jurídica. É imprescindível a existência de dolo (conluio com os agentes políticos) ou de culpa grave, revelando que o profissional agiu de má-fé ou foi grosseiramente equivocado ou desinteressado pelo estudo da causa ou do direito, a ponto de não conseguir se escusar do ato ilícito. 4. A função do Advogado Público (ou assessor jurídico) quando atua em órgão jurídico de consultoria da Administração é de, quando consultado, emitir uma peça (parecer) técnico-jurídica proporcional à realidade dos fatos, respaldada por embasamento legal, não podendo ser alçado à condição de administrador público, quando emana um pensamento jurídico razoável, construído em fatos reais e com o devido e necessário embasamento legal. 5. Agravo de instrumento a que se dá provimento.
(AG 0003263-55.2012.4.01.0000 / AM, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL MONICA SIFUENTES, TERCEIRA TURMA, e-DJF1 p.577 de 08/03/2013) (grifo do autor)
Assim, tem-se que para a responsabilização pessoal do parecerista, deve-se comprovar que esse agiu com má-fé, que estava em conluio com a parte que se beneficiou do ato, em prejuízo da administração. Ou, ainda, que, no exercício do seu mister, agiu com imperícia e deixou de aplicar norma cogente ou agiu em manifesta contrariedade com dispositivo legal. Não importa, para tanto, se a opinião jurídica foi externada em um parecer “vinculante” ou “não vinculante”.
III – CONCLUSÃO
Diante do exposto, verifica-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que, em regra, o advogado parecerista responde de forma pessoal pelas decorrências de um ato administrativo praticado com fulcro em um “parecer vinculante”. Também responderá, excepcionalmente, quando proferir “parecer não vinculante”, se ativer agido com culpa ou erro grosseiro.
Todavia, a melhor doutrina entende que essa jurisprudência deve ser interpretada com restrições, de modo que a responsabilidade só poderá ser imputada ao advogado nos casos em que esse, ao emitir o parecer, “vinculante” ou “não vinculante”, atue com culpa ou incorra em erro grosseiro. Tal entendimento se dá em virtude da inviolabilidade funcional do advogado público, bem como da sua independência intelectual. Isto porque, conforme exposto, acaso a responsabilização se torne uma regra, o advogado público estará acuado no exercício do seu mister.
Ademais, para essa corrente doutrinária, o conceito de culpa e erro grosseiro também deve ser interpretado com restrições, a fim de se proteger o parecerista para que esse não tenha o mérito de sua opinião avaliado, e venha a responder por que o órgão julgador entendeu que aquela não era a “melhor” solução jurídica aplicável ao caso.
Diante do exposto, pode-se concluir que a razão parece estar com essa corrente doutrinária, que interpreta a responsabilidade pessoal do advogado como uma exceção, permitindo, assim, que o aplicador do direito exerça sua atividade com a independência intelectual que lhe é própria.
IV – REFERÊNCIAS
BRASIL, Constituição da Republica Federativa Brasileira de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 21 de agosto de 2013.
______. Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm. Acesso em: 21 de agosto de 2013.
______. Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp73.htm. Acesso em 22 de agosto de 2013.
______. Supremo Tribunal Federal. MS 24631, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 09/08/2007. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=506595. Acesso em: 26 de agosto de 2013.
______. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. AG 0003263-55.2012.4.01.0000 / AM, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL MONICA SIFUENTES, TERCEIRA TURMA, e-DJF1 p.577 de 08/03/2013. Disponível em http://jurisprudencia.trf1.jus.br/busca/. Acesso em: 26 de agosto de 2013.
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OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013.
RIO DE JANEIRO, Lei Estadual nº 5.427, de 01 de abril de 2009. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/e9589b9aabd9cac8032564fe0065abb4/ef664a70abc57d3f8325758b006d6733?OpenDocument. Acesso em 22 de agosto de 2013.
[1] HELLY, Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2011. ps. 154, 197 e 198.
[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo Federal – Comentários à Lei nº 9.784, de 29.1.1999. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 208/209.
[3] CARVALHO FILHO. op. cit., p. 208/209.
[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 137/138.
[5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25 ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 230.
[6] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. p. 253.
[7] DI PIETRO. op. cit. p. 238.
[8] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo administrativo Federal – Comentários à Lei nº 9.784, de 29.1.1999. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 208/209.
Advogado da União. Coordenador-Geral de Assuntos Estratégicos, substituto, da Consultoria Jurídica do Ministério da Integração Nacional. Especialista em Direito Público e Direito Administrativo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, Breno da Silva. A (ir)responsabilidade pessoal do advogado parecerista Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 maio 2015, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44291/a-ir-responsabilidade-pessoal-do-advogado-parecerista. Acesso em: 21 nov 2024.
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