1. INTRODUÇÃO
Formalmente, o Brasil adota o modelo proibicionista no que tange à prostituição, enquadrando o agenciador sexual como criminoso (CP, art. 229), ao passo que não penaliza o profissional do sexo e tampouco os seus eventuais clientes.
Muito se discute, todavia, sobre a pertinência em adotar o modelo legalizador no tocante à prostituição agenciada, que admite o agenciamento sexual como profissão lícita e regulamentada.
O presente artigo se propõe a fazer uma análise crítica sobre os diversos projetos relacionados à prostituição.
O mais conhecido desses projetos de lei é o de número 98/2003 de autoria do Deputado Federal Fernando Gabeira.
Por sua vez, a proposta mais recente é o Projeto de Lei “Gabriela Leite” (Projeto de Lei 4.211/2012), de autoria do Deputado Federal Jean Wyllys (PSOL). Trata-se de proposta interessante e muito mais sofisticada do que a sua antecessora.
Finalmente, será analisado, ainda, o Projeto de Lei 377/2011, de autoria do Deputado Federal João Campos, pretende criminalizar a conduta dos clientes dos profissionais do sexo, adotando um modelo semelhante àquele utilizado na Suécia.
O referido Projeto de Lei contava com três simples artigos: o primeiro, tratava dos aspectos civis da lei; o segundo, tratada de aspectos penais; já o terceiro dispunha sobre a data em que a Lei entraria em vigor.
O Projeto de Lei 98/2003 teve, na Comissão de Constituição de Justiça, parecer pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela rejeição. Na ocasião, Paulo Queiroz (2007) teceu duras críticas à posição da Comissão de Constituição e Justiça. Segundo o penalista,
deixar de legalizar e regulamentar a prostituição adulta, ao contrário do que pretende o parecer, não é combatê-la, mas apenas ignorá-la e mantê-la na clandestinidade, condenando-a à marginalidade, sem nenhum tipo de controle ou proteção (sanitário, policial, trabalhista, previdenciário etc.), a permitir todo tipo de abuso e danos relativamente às prostitutas e clientes. Na verdade, se quisermos defender a dignidade da pessoa humana, devemos tratar a prostituta como pessoa humana, respeitando-lhe a autonomia da vontade, e não tratá-la como um tipo inferior e, pois, incapaz de decidir por conta própria. Por fim, é direito de toda pessoa adulta livre dispor de seu corpo como melhor lhe aprouver, porque, embora tenhamos o direito de ser preconceituosos – e todos o somos, mais ou menos – não temos o direito de fazer do nosso preconceito um direito, sobretudo quando isso implique marginalização social do outro e negação da sua liberdade de decidir sobre seu próprio destino. A prostituição enfim deve ser encarada, ao menos do ponto de vista político, como uma atividade como outra qualquer (prestação de serviço), em que uma pessoa deseja a companhia, o carinho ou o corpo da outra, a qual se dispõe a atendê-la mediante pagamento.
Após passar pela Comissão de Constituição e Justiça, o Deputado João Campos (autor do controverso Projeto de Lei 377/2001, analisado mais à frente), requereu que o Projeto de Lei 98/2003 fosse remetido para parecer da Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público, da qual fazia parte, ocasião em que foi designado relator. O seu parecer foi pela rejeição do Projeto de Lei 98 de 2003 e aprovação de um projeto de lei destinado a acrescentar um tipo penal no Código Penal com a finalidade de punir a clientela dos profissionais do sexo.
Atualmente, o Projeto 98/2003 está arquivado com fundamento no art. 105, caput, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados[2].
Doravante, serão analisados os principais aspectos do referido Projeto de Lei, bem como os debates a seu respeito, cuja análise contribui para a reflexão sobre o tema.
Sob o aspecto civil, seguindo o modelo já adotado na Alemanha, o art. 1º do projeto de lei assim dispunha:
Art. 1º É exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual.
§ 1º O pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual será devido igualmente pelo tempo em que a pessoa permanecer disponível para tais serviços, quer tenha sido solicitada a prestá-los ou não.
§ 2º O pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual somente poderá ser exigido pela pessoa que os tiver prestado ou que tiver permanecido disponível para os prestar.
Apesar de estar arquivado, as questões aventadas pelos parlamentares componentes da Comissão de Constituição e Justiça dão margem a pertinentes debates no tocante às questões civis do contrato prostitucional. É o que se passa a analisar.
Certas vozes na doutrina, inclusive a do Relator do Projeto de Lei 98/2003 na Comissão de Constituição e Justiça, o então Deputado Federal Antônio Carlos Magalhães Neto, consideram que a obrigação surgida de uma relação de um contrato prostitucional deveria ser encarada como uma obrigação natural, uma vez que seria inexigível. Chegou a opinar pela “supressão do art. 1º da proposição, por entender que a prostituição não deve merecer tratamento legal, à luz do Direito Civil”.
Trata-se, data venia, de concepção equivocada.
Conforme Gagliano e Pamplona (2011, p. 137), “a obrigação natural é, (...), um debitum em que não se pode exigir, judicialmente, a responsabilização patrimonial (obligatio) do devedor, mas que, sendo cumprido, não caracterizará pagamento indevido”.
Continuam os autores no sentido de que “tal inexigibilidade é derivada de algum óbice legal com finalidade de preservação da segurança e estabilidade jurídica, como ocorre, por exemplo, na prescrição de uma pretensão decorrente de uma dívida (em que o direito não se satisfaz com obrigações perpétuas) ou na impossibilidade de cobrança judicial de dívida de jogo (pelo reconhecimento social do caráter pernicioso de tal conduta). O fundamento primeiro, portanto, para o reconhecimento da justiça da retenção do pagamento de uma obrigação natural é de ordem moral. (...) Trata-se, portanto, de um dever de consciência, em que cada um deve honrar a palavra empenhada, cumprindo a prestação a que se obrigou” (GAGLIANO; PAMPLONA, 2011, p.138).
Como visto, o Brasil adota (em tese) um modelo abolicionista, onde a atividade individualmente exercida pelos prostitutos é plenamente lícita. Sendo assim, não haveria qualquer “óbice legal” a justificar a caracterização do contrato prostitucional entre o prostituto e o seu cliente como uma obrigação natural.
A situação ora analisada é diferente do que ocorre, por exemplo, com relação ao jogo do bicho que, a despeito de também ser aceito socialmente, possui tipificação penal expressa (art. 58 da Lei das Contravenções Penais).
Sendo assim, o único argumento que supostamente poderia embasar o enquadramento do débito oriundo da relação entre o profissional do sexo e o seu cliente como uma obrigação natural seria a suposta violação à moral e aos bons costumes.
É que, segundo o art. 122, do Código Civil, “são lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes”. Uma interpretação a contrario sensu do dispositivo poderia levar à conclusão de que, sendo a atividade prostitucional uma atividade que violaria tal cláusula aberta, deveria ser tachada de ilícita.
Deve-se levar em conta, todavia, que a “moral e os bons costumes” é um conceito volúvel, que varia de lugar para lugar, de tempo para tempo. A prostituição não é ontologicamente repudiada pelo Direito Civil (vide o exemplo alemão e holandês). Submeter um contrato à invalidade apenas em decorrência de conceitos subjetivos dessa ordem gera, no mínimo, insegurança jurídica, ainda mais quando se trata de atividade com amplo espectro social e que não possui norma proibitiva expressa. O profissional do sexo que batesse às portas do judiciário dependeria da sorte de ser julgado por um juiz vanguardista que acredita que a prostituição não malfere a moral e os bons costumes.
Ademais, é certo que o conceito do que é, ou não, moral, é dado pela própria sociedade. Sendo esta conivente em relação a determinado fato, não pode o mesmo fato ser tachado de imoral, sob pena de ser admitida a hipocrisia no Direito.
Outrossim, configuraria a morte sacramentada da boa-fé objetiva admitir que o cliente do profissional do sexo desfrutasse dos seus serviços sem que, em seguida, adimplisse a sua obrigação em decorrência da “ilicitude” do contrato. Trata-se de evidente caso de venire contra factum proprium, rechaçado pelo ordenamento jurídico.
A conduta consubstanciaria, outrossim, nítido abuso de direito, previsto no art. 187 do Código Civil. Gagliano e Pamplona (2011, p. 492) dão, como exemplo de abuso de direito, “no Direito Contratual, a negativa injustificada, causadora de prejuízo, de contratar, após o proponente nutrir legítima expectativa da outra parte”. Ora, se a “legítima expectativa” inadimplida injustificadamente pela outra parte na fase pré-contratual configura abuso de direito (cuja responsabilidade é objetiva[3]), que dirá quando as partes já contrataram e, pior, uma das partes já cumprira a obrigação que lhe incumbia.
Vale, ainda, a transcrição das palavras de Giordano Bruno Soares Roberto (2014) sobre o assunto:
Em nossa concepção, o limite a autonomia de contratar não deve ser dado pela tíbia estrutura dos bons costumes. É certo que existe a passagem da consciência moral à consciência jurídica, mas não pode-se elevar a Moral ao patamar jurídico, a ponto de que ela interfira na liberdade das partes em contratar. A consciência moral subjetiva é superada pela consciência jurídica e apenas a objetividade do direito pode oferecer parâmetros seguros para a restrição da autonomia privada. (...) O direito é indiferente a essa modalidade de prostituição [a prostituição individualmente exercida]. É atividade marginalizada, condenada pelo juízo moral de muitos, mas que não configura crime e nem é expressamente vedada pelo direito civil (se considerarmos que não deve-se dar à expressão “bons costumes” teor diferente de comportamento legalmente permitidos ou não proibidos). Dessa maneira, parece-nos que o mero repúdio moral não pode embasar a falta de proteção para esse caso de prostituição encenado. (...) Entendemos que a licitude só pode ser concebida tendo em vista a norma jurídica e não a moral. (...) Parece-nos que devemos caminhar na história e abandonar essa concepção que marginaliza os profissionais do sexo, mas absolve o outro contratante.
Também em discordância ao Relator, na Comissão de Constituição e Justiça, o então Deputado Federal Sérgio Barradas Carneiro pontuou que
o reflexo social que as tratativas privadas devem apresentar não as sujeita a uma determinada concepção de moralidade; o interesse social que se projeta nesse âmbito particular é o da observância da equidade entre os contratantes, e o do respeito à dignidade fundamental de cada um, porque são tais fatores que verdadeiramente garantem a paz social. (...) A prestação de serviços de natureza sexual é um fenômeno presente, e muito significativo, não apenas na sociedade brasileira, como também em todas as outras sociedades do mundo. Modernamente, como dissemos, o que corresponde ao interesse social e à ordem pública não é mais a marginalização social nem a manutenção dessa realidade em um limbo jurídico, mas sim que essa atividade não constitua motivo de exploração, violência e degradação para os homens e mulheres que a exercem[4].
2.1.2. O contrato prostitucional como violador da função social dos contratos
O então Deputado Antônio Carlos Magalhães defendeu, ainda, que a eventual tutela jurídica do contrato prostitucional representaria violação à função social dos contratos.
O art. 421 do Código Civil dispõe que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
Todavia, segundo Miguel Reale[5],
o que o imperativo da ‘função social do contrato’ estatui é que este não pode ser transformado em um instrumento para atividades abusivas, causando dano à parte contrária ou a terceiros, uma vez que, nos termos do Art. 187, ‘também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes’.
Vê-se que o contrato prostitucional não vai de encontro a nenhuma das balizas supracitadas.
O que ocorre é justamente o contrário: a observância dos termos contratados pelo cliente dos profissionais do sexo nada mais representa do que a concretização da observância dos princípios da probidade e da boa-fé na relação contratual. E o acesso ao judiciário para a garantia deste princípio representa, nada mais, do que o direito fundamental à inafastabilidade da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV).
O Deputado Régis de Oliveira ventilou, ainda, a questão da privacidade dos contratantes, e as consequências de uma “inevitável” exposição em decorrência de um processo judicial dessa natureza nos seguintes termos:
Imaginemos que um prostituto não logre satisfazer a parceira e que, mesmo assim, pretenda receber o que fora pactuado. Como resolver a pendência, sem expor ambos à execração pública, ao riso, à maledicência?
O Deputado chega a afirmar que a Projeto de Lei 98/2003 esbarra em cláusula pétrea.
Todavia, se fosse assim, essa mesma cláusula pétrea impediria as execuções realizadas em desfavor de devedores pelos credores nas cobranças de seus créditos, a fim de que a condição de inadimplente daqueles perante a sociedade não violasse o seu direito à intimidade.
Do contrario, seria de se entender que a “execração pública” a que alude o Deputado decorre o fato de o réu nesta hipotética ação ter contratado com um prostituto. Mas, nesse caso, por que deveria o prostituto ser a parte prejudicada?
Ademais, se é certo que o direito à intimidade é protegida pela Constituição no rol dos direitos fundamentais elencados no art. 5º (inciso X), também é certo que o mesmo dispositivo tutela a liberdade de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII), além de a Constituição prever, como fundamentos da República Federativa do Brasil, a valorização do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV).
Se é certo que, em um mundo utópico, a prostituição não existiria e todos teriam um labor onde se submeteriam a condições de trabalho mais razoáveis, não se pode negar que a prostituição é, para aqueles que exercem – como sói acontecer com todas as demais formas de trabalho – um meio de garantir a própria subsistência e a subsistência familiar numa sociedade com cada vez menos oportunidades de trabalho, de forma a, em última análise, garantir a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).
É certo que o direito à intimidade é uma conquista da humanidade e de fundamental importância no convívio social. Mas o direito de viver de forma digna pelo seu próprio trabalho e o direito de receber da parte inadimplente a contraprestação por tais esforços, em observância à boa-fé contratual, também deve ser assim considerado. Ventilar a questão da privacidade em eventual litígio na relação cliente-profissional do sexo só revela a tônica dos preconceitos que permeiam tais atividades, penalizando a parte que já fora prejudicada pelo inadimplemento do seu cliente com o inadmissível inacesso ao judiciário – que, aliás, também é direito fundamental (CF, art. 5º, XXXV) e cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV).
No mesmo sentido, vale invocar o entendimento de Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 170):
Cremos perfeitamente viável que o trabalhador sexual, não tendo recebido pelos serviços sexuais combinados com o cliente, possa se valer da Justiça para exigir o pagamento. Ademais, evita-se o exercício arbitrário das próprias razões (crime previsto no art. 345 do CP) e termina-se com a sacramentalização da Justiça para apreciar somente casos que se considerem moralmente aceitáveis.
Vale, ainda, mencionar as seguintes palavras do Deputado Régis de Oliveira:
Hoje, o sentimento é não só do impedimento constitucional de alterar a lei, mas também da desnecessidade de legalizar um problema marginal que tem sido resolvido de forma adequada.[6] (grifos nossos)
Este enunciado revela cristalinamente a visão que os parlamentares têm em relação à prostituição.
Se por um lado, sob o aspecto civil, o Projeto de Lei 98/2003 revelou-se demasiadamente tímido, pode-se afirmar que, sob a aspecto penal, não obstante louvável a iniciativa do projeto (que pôs o debate em pauta no Congresso), as suas propostas se excederam.
O Projeto de Lei 98/2003 intentava, sob o aspecto penal, descriminalizar as condutas tipificadas nos arts. 228 (Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual); 229 (Casa de prostituição); e 231 (Tráfico internacional de pessoa para fins de exploração sexual)[7]. A seguir, algumas considerações sobre essas propostas.
O Projeto de Lei 98/03 propôs a revogação do art. 228, cuja redação vigente na época pouco diferia da atual:
Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Se fosse adotada a possibilidade da prostituição agenciada, tal qual se verifica em países como a Holanda e Alemanha, a revogação de parte deste dispositivo (“induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la...”) relevar-se-ia consentânea com o novel tratamento legislativo. Mutatis mutandis, a hipótese consistiria em simples captação de empregados por parte dos agenciadores das atividades sexuais (que, agora, atuariam legalmente).
Mas o referido tipo penal que se propunha revogar vai além, e criminaliza, também, aquele que impede ou dificulta que alguém abandone a prostituição (parte final do art. 228), tutelando penalmente uma inadmissível coação à liberdade individual e à liberdade de contratar (pensando, aqui, no contrato prostitucional).
O Código Penal possui dispositivo semelhante no art. 203, § 1º, II do Código Penal, previsto no Título IV, que trata dos Crimes contra a Organização do Trabalho[8]. Todavia, não há dúvidas que mereceria um tratamento penal mais rigoroso a conduta do empregador/agenciador do sexo que impedisse a sua empregado/agenciado de se desligar da prestação de serviços de ordem sexual – atividade que, por envolver direitos tão sensíveis, deveria ser alvo de tutela específica e mais gravosa, aplicando-se o princípio da especialidade em relação ao tipo penal supracitado.
Do contrário, sendo adotado o tipo genérico previsto no art. 203, § 1º, II, do CP, verificar-se-ia abrandamento na punição dessa odiosa conduta que atualmente é punida com reclusão de 2 a 5 anos (CP, art. 228), e passaria a ser punida apenas com detenção, de 1 a 2 anos.
Ainda seria dada margem a interpretações quanto a eventual abolitio criminis, caso os tribunais entendessem que não ocorreu a chamada “continuidade típico normativa”[9].
O Projeto de Lei 98 de 2003, portanto, perdeu a oportunidade de pormenorizar tais questões ou pô-las em debate, ao invés de simplesmente revogar o dispositivo que tutela tais bens jurídicos.
O art. 229 do Código Penal possui, atualmente, a seguinte redação (que não divergia muito daquela vigente na época da tramitação do Projeto de Lei 98/2003):
Casa de prostituição
Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.
A revogação de tal tipo penal, esta sim, mostrar-se-ia como um serviço à sociedade, que deixaria de conviver com um tipo penal em amplo desuso. A redação é a seguinte:
Além do mais, findaria qualquer discussão sobre a possibilidade de se reconhecer vínculos empregatícios dos prostitutos com as casas de prostituição, valorizando a condição social destes sujeitos.
A possível revogação do art. 231 (cuja redação, tal qual a do art. 228, pouco foi alterada com o advento da Lei 12.015 de 2009), por sua vez, deveria ser vista cum grano salis.
Atualmente, o referido dispositivo prevê ser crime “Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro”.
Sucede que a simples revogação deste tipo penal deixaria de contemplar a hipótese em que a entrada, no território nacional, para fins do exercício da prostituição, ocorresse de maneira coagida.
O próprio Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (promulgado pelo Decreto nº 5.017 de 2004) prevê, no seu art. 3º, alínea ‘a’, ser considerado tráfico de pessoas o “recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas” para fins de exploração sexual, desde que tenha havido “ameaça ou o uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamento ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre a outra”. Não sendo este o caso, e desde que não se trate de criança (assim entendida, segundo o referido Protocolo, como qualquer pessoa com idade inferior a 18 anos – alíneas ‘c’ e ‘d’), a alínea ‘b’ do art. 3º do diploma internacional admite que o consentimento dado pela vítima desconfigure o tráfico de pessoas.
Dessa forma, deveria o Projeto de Lei 98/ prever norma específica ou propor alterações que penalizassem os casos em que há, efetivamente, tráfico de pessoas, ou seja, quando se verifica quaisquer das coações mencionadas. Sendo assim, a simples revogação do tipo penal contido no art. 231 deixaria uma lacuna no Código Penal.
Em conclusão, no tocante aos aspectos civis, acredita-se que o Projeto de Lei 98 de 2003 pecou pela superficialidade com que tratou a matéria. Seja como for, crê-se que, mesmo diante da falta de previsão legal, considerando o tratamento que é dado pelo ordenamento jurídico à atividade individual dos profissionais do sexo, eventuais débitos oriundos da prestação de seus serviços são plenamente exigíveis judicialmente, não se configurando meras obrigações naturais como defenderam alguns deputados responsáveis pela análise do Projeto.
Sob a ótica penal, por sua vez, o referido projeto pecou pelo excesso, pois pretendeu revogar disposições legais que deixariam o contrato prostitucional sem o amparo legal específico que merece.
Não obstante, a iniciativa foi louvável, pois pôs em pauta a discussão sobre a prostituição e a valorização dos profissionais do sexo numa das casas do Congresso Nacional e na própria sociedade. Ademais, tal Projeto deu fôlego para que fosse ventilada, atualmente, uma nova iniciativa, muito mais madura e coerente, que se passa a analisar.
O Deputado Federal Jean Wyllys é autor do mais recente projeto de lei que propõe que o Congresso Nacional se debruce, mais uma vez, sobre o tema. O projeto foi batizado em homenagem a Gabriela Leite que, em vida, era socióloga, prostituta e defensora dos direitos dessa classe social. Nas palavras do Deputado,
a prostituição é atividade cujo exercício remonta à antiguidade e que, apesar de sofrer exclusão normativa e ser condenada do ponto de vista moral ou dos “bons costumes”, ainda perdura. É de um moralismo superficial causador de injustiças a negação de direitos aos profissionais cuja existência nunca deixou de ser fomentada pela própria sociedade que a condena. Trata-se de contradição causadora de marginalização de segmento numeroso da sociedade.
Ainda nas suas palavras,
o escopo da presente propositura não é estimular o crescimento de profissionais do sexo. Muito pelo contrário, aqui se pretende a redução dos riscos danosos de tal atividade. A proposta caminha no sentido da efetivação da dignidade humana para acabar com uma hipocrisia que priva pessoas de direitos elementares, a exemplo das questões previdenciárias e do acesso à Justiça para garantir o recebimento do pagamento. (...) O objetivo principal do presente Projeto de Lei não é só desmarginalizar a profissão e, com isso, permitir, aos profissionais do sexo, o acesso à saúde, ao Direito do Trabalho, à segurança pública e, principalmente, à dignidade humana. Mais que isso, a regularização da profissão do sexo constitui instrumento eficaz ao combate à exploração sexual, pois possibilitará a fiscalização em casas de prostituição e o controle do Estado sobre o serviço.
Trata-se de projeto conta com seis artigos e que, também, trata de aspectos civis e penais.
No art. 1º, o Projeto de Lei “Gabriela Leite” cuida de definir o profissional do sexo como “toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração”. O Projeto de Lei se separa, portanto, das situações em que a prostituição é exercida por menores, incapazes, ou sob qualquer forma de coação – atividade execrável e tipificada no art. 218-B, do Código Penal[11], considerado, inclusive, crime hediondo (Lei 8.072 de 1990, art. 1º, VIII).
Sob o prisma civil, nos §§ 1º e 2º do Projeto, seguindo o modelo alemão, dispõe que “é juridicamente exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual a quem os contrata” e que “a obrigação de prestação de serviço sexual é pessoal e intransferível”, em caráter semelhante ao Projeto de Lei 98/2003, conforme já analisado.
Ademais, no art. 3º, o supracitado projeto de lei dispõe que “o profissional do sexo pode prestar serviços I – como trabalhador autônomo; II – coletivamente em cooperativa”, valorizando, desta forma, o associativismo entre os profissionais do sexo, o que, sem dúvida, colabora para o fortalecimento da categoria que, unida, passa a ter maior pujança no debate e na luta pelos seus interesses.
Por outro lado, sob o prisma penal, o Projeto de Lei “Gabriela Leite” propõe interessante distinção entre os conceitos de exploração sexual e prostituição – superando, assim, a confusão legislativa materializada pela Lei 12.015 de 2009. Nas palavras do Deputado Jean Wyllys,
o projeto de lei em questão visa justamente distinguir esses dois institutos visto o caráter diferenciado entre ambos; o primeiro sendo atividade não criminosa e profissional, e o segundo sendo crime contra dignidade sexual da pessoa.
O referido projeto ” traz, de maneira pertinente, um critério objetivo para tanto. Com efeito, no art. 2º, consta que “é vedada a prática da exploração sexual”, ao passo que no seu parágrafo único consta o seguinte:
São espécies de exploração sexual, além de outras estipuladas em legislação específica:
I - apropriação total ou maior que 50% do rendimento de prestação de serviço sexual por terceiro;
II- o não pagamento pelo serviço sexual contratado;
III- forçar alguém a praticar prostituição mediante grave ameaça ou violência.
Quanto ao inciso II supracitado, é interessante notar que o projeto de lei, para além de dar repercussões civis ao inadimplemento da contratação individual de serviços sexuais (o que, atualmente, é circundado por controvérsias e polêmicas doutrinárias, tal qual analisado nos capítulos anteriores), dará, também, efeitos penais a esta quebra contratual. Nesse sentido, poder-se-ia conjecturar que o cliente inadimplente seria enquadrado como explorador sexual, podendo responder nos moldes do art. 228 do Código Penal, por “induzir ou atrair alguém” à exploração sexual. Contudo, há de se pensar na proporcionalidade desta hipótese, mormente à luz de um direito penal mínimo, considerando que a pena para o referido delito é de 2 a 5 anos de reclusão e multa. No ponto, crê-se que o Projeto de Lei “Gabriela Leite” extrapola os limites da razoabilidade e da proporcionalidade, por dar conotações penais a uma questão que poderia ser resolvida, de maneira suficiente, no âmbito civil.
Por outro lado, no art. 3º, parágrafo único, consta que “a casa de prostituição é permitida desde que nela não se exerce qualquer tipo de exploração sexual”. Conforme o autor do projeto,
as casas de prostituição, onde há prestação de serviço e condições de trabalhos dignas, não são mais punidas, ao contrário das casas de exploração sexual, onde pessoas são obrigadas a prestar serviços sexuais sem remuneração e são tidas não como prestadoras de serviço, logo, sujeitos de direitos, mas como objeto de comércio sexual; essas casas, sim, serão punidas. Além disso, a descriminalização das casas de prostituição (1) obriga a fiscalização, impedindo a corrupção de policiais, que cobram propina em troca de silêncio e de garantia do funcionamento da casa no vácuo da legalidade; e (2) promove melhores condições de trabalho, higiene e segurança. A vedação a casas de prostituição existente no texto legal atual facilita a exploração sexual, a corrupção de agentes da lei e, muitas vezes, faz com que essas casas não se caracterizem como locais de trabalho digno. As casas funcionam de forma clandestina a partir da omissão do Estado, impedindo assim uma rotina de fiscalização, recolhimento de impostos e vigilância sanitária. Por isso, somente deve ser criminalizada a conduta daquele que mantém local de exploração sexual de menores ou não e de pessoas que, por enfermidade ou deficiência, não tenham o necessário discernimento para a prática do ato.
O art. 4º do Projeto de Lei “Gabriela Leite”, por sua vez, propõe cinco alterações em tipos penais que compõem o Capítulo “do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual”.
A primeira das mudanças atinge o caput do art. 228 do Código Penal, que passaria a vigorar com a seguinte redação: “induzir ou atrair alguém à exploração sexual, ou impedir ou dificultar que alguém abandone a exploração sexual ou a prostituição”. Retira-se, portanto, o óbice ao induzimento e atração da prostituição que, como visto, passa a ser admitida nas casas de prostituição, desde que não ocorra a exploração sexual. Todavia, continua punindo aquele que impede ou dificulta o abandono, seja da prostituição, seja da exploração sexual, o que revela significativo avanço em relação ao Projeto de Lei 98/2003, que se propunha apenas revogar o art. 228 do Código Penal, esquecendo-se de tipificar as condutas dos agenciadores que coagirem o profissional do sexo a manter-se nesta condição contra a sua vontade, violando a sua liberdade sexual e pessoal.
Outra mudança significativa que o Projeto propõe se verifica na mudança do nomen iuris do art. 229 do Código Penal, que passaria a ser “casa de exploração sexual”. Como dito, o Projeto de Lei autoriza a prostituição agenciada desde que não ocorra exploração sexual (art. 3º, parágrafo único), cujo conceito (que passaria a ser estancado do conceito de prostituição) é objetivamente dado pelo art. 2º, parágrafo único, do Projeto. A redação do art. 229, por sua vez, continuaria a mesma, embora tivesse de passar a ser lida sob esse novo viés interpretativo. As demais modificações propostas (art. 230 – Rufianismo; art. 231 – Tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual; e art. 231-A – Tráfico interno de pessoas para fim de exploração sexual) também seguem a mesma lógica.
Finalmente, no art. 5º, o Projeto de Lei “Gabriela Leite” propõe um importante direito social aos profissionais do sexo: a possibilidade de se aposentarem, em caráter especial, com 25 anos de tempo de contribuição. Segundo o autor do projeto,
atualmente os trabalhadores do sexo sujeitam-se a condições de trabalho aviltantes, sofrem com o envelhecimento precoce e com a falta de oportunidades da carreira, que cedo termina. Daí a necessidade do direito à Aposentadoria Especial, consoante o artigo 57 da Lei 8.213/1991, com redação dada pela Lei nº 9.032/1995.
A assertiva é confirmada por Andréa da Silva (2000, p. 61), segundo a qual “as atividades que fazem parte do desenvolvimento do trabalho de prostituição provocam no corpo da mulher prostituta um grande desgaste, principalmente nos membros inferiores e região genital”. Ademais, “a postura de permanecer de pé no período que aguardam clientes traz, com o passar do tempo, desgastes biológicos, principalmente o aparecimento de varizes e problemas na coluna vertebral” (SILVA, 2000, p. 71).
A pesquisadora constatou ainda que, após anos de serviços, as prostitutas são obrigadas a diminuir o ritmo de trabalho, em decorrência do desgaste físico e da falta de lubrificação vaginal (SILVA, 2000, p. 67). Por certo, tais assertivas também se aplicam aos profissionais do sexo masculino.
Finalmente, há nítida relação entre o interesse os clientes e a idade dos prostitutos, tendo em vista que aqueles, em regra, têm preferência por garotos(as) mais novos(as), de forma que o envelhecimento na atividade reduz a quantidade de clientes e a remuneração pela prestação de tais serviços. Com efeito, a prostituição nada na contramão do que ocorre, em regra, nas demais profissões: experiência, aqui, é sinônimo (em regra) de desvalorização.
Todas essas razões justificam uma aposentadoria antecipada a estes trabalhadores.
O referido Projeto avança em relação ao seu predecessor (o Projeto de Lei 98 de 2003, do Deputado Fernando Gabeira), notadamente sob o aspecto penal, pela propositura da distinção entre prostituição e exploração sexual, além de não incorrer nos excessos deste último projeto quanto à revogação de importantes tipos penais destinados à tutela da dignidade sexual.
Além do mais, propõe um importante direito social (a aposentadoria especial), atento à realidade da atividade da prostituição, cuja carreira é curta.
Em suma, tal Projeto trará novamente o debate para as pautas da Câmara dos Deputados. Espera-se que, desta vez, a questão seja debatido sob uma ótica menos preconceituosa e mais voltada à realidade social, e que a Câmara lide com a questão de maneira pragmática a fim de proporcionar melhores condições de trabalho e de vida para as milhares de pessoas que estão envolvidas e que serão diretamente atingidas com tais mudanças legislativas
Finalmente, tramita, também, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei 377/2011, de autoria do Deputado Federal João Campos. Tal projeto, que conta com dois artigos, (um dos quais trata da vigência da lei), visa acrescer[12], nos termos do seu art. 1º, o art. 231-A ao Código Penal, com a seguinte redação:
Contratação de serviço sexual
Art. 231-A. Pagar ou oferecer pagamento a alguém pela prestação de serviço de natureza sexual:
Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem aceita a oferta de prestação de serviço de natureza sexual, sabendo que o serviço está sujeito a remuneração.
Trata-se, como se vê, de crime de mera conduta, pois o mero oferecimento de pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual, por si só, já consuma o delito.
Ademais, note-se que o oferecimento de contraprestação por qualquer do povo para fins de prestação de tais serviços, mesmo que não a prostitutos (assim entendidos como aqueles que têm, na prestação de serviços sexuais, a sua atividade profissional), também dá ensejo à penalidade descrita no preceito secundário.
Segundo o autor do projeto,
a venda do corpo é algo não tolerado pela sociedade. A integridade sexual é bem indisponível da pessoa humana e, portanto, não pode ser objeto de contrato visando a remuneração.
O quadro negativo da prostituição não envolve apenas o sacrifício da integridade pessoal. A atividade é tradicionalmente acompanhada de outras práticas prejudiciais à sociedade, como o crime organizado, lesões corporais, a exploração sexual de crianças e adolescentes além do tráfico de drogas.
A criminalidade da contratação de serviços sexuais tem por fim, também, a proteção das pessoas e o combate à opressão sexual.
É de se questionar, todavia, se tal opção atende aos interesses nacionais.
Sob o pálio de defender os prostitutos, parece que tal opção legislativa, na verdade, visa extirpá-los do seio social, consubstanciando verdadeira medida de caráter “profilático”.
Sequer as leis vigentes que criminalizam os agenciadores da prostituição são efetivas. Pouco se vê, na prática, a atuação policial na efetiva penalização dos diversos bordéis ao longo da cidade, com base no art. 229 do Código Penal. Trata-se de verdadeira lei morta.
Agora, pretende-se, além de tudo, punir a clientela dos prostitutos.
Se nem mesmo condutas “mais graves”, como os delitos previstos nos arts. 228 e 229, são, efetivamente, reprimidas pela máquina pública, que dirá o delito que ora se pretende acrescer. Será mais um artigo de lei que, desde o seu nascimento, está fadado a integrar o já extenso rol de crimes sem efetividade prática, previstos no excessivo arcabouço normativo-penal.
Na Suécia, onde vigora modelo penal semelhante ao que se pretende adotar, são efetivamente tomadas medidas públicas em prol dos prostitutos tendentes a dar-lhes alternativas fora do comércio sexual, coisa que não se vê no Brasil.
Nem os agenciadores dos prostitutos, mesmo os que efetivamente trazem benefícios a estes sujeitos (dando-lhes oportunidades de trabalho mais dignas do que o oferecimento dos seus serviços ao relento das ruas da cidade), encontram-se livres da reprimenda penal: meros auxílios materiais podem ser apenados com 2 a 5 anos de reclusão (CP, art. 228).
O que fazer então como os milhões de brasileiros que, por falta de alternativas, recorrem à prostituição para garantir o pão de cada dia? Não têm direito a empregadores formais; agora, também, não terão direito a ter clientes (ao menos, não de forma lícita). Como irão se manter?
O Projeto de Lei 37/2011 não dispensa um único artigo, um único parágrafo, um único inciso ou uma única alínea para tratar de políticas públicas em prol dos prostitutos, como se uma lei penal incriminadora contivesse a solução mágica de todos os problemas, ou se ela bastasse em si mesma.
Certamente, a atividade, que já é severamente marginalizada, piorará; a clandestinidade vigorará com ainda maior pujança (o que foi verificado até mesmo na Suécia). Os prostitutos, que hoje, em muitos casos, já se submetem a condições aviltantes, passarão a exercer as suas atividades em condições sub-humanas. Tudo isso por uma justificativa moralista de punir uma atividade amplamente aceita no seio social (sendo, data venia, verdadeira falácia a afirmativa de que “a venda do corpo não é algo tolerado pela sociedade”).
Por outro lado, não se encontraram, em pesquisas realizadas sobre o Projeto de Lei ora analisado, quaisquer consultas públicas tendentes a conhecer a opinião da população sobre esta medida, especialmente dos grupos sociais afetados por ela – diferentemente do que ocorre com o Projeto de Lei “Gabriela Leite”.
É mais uma tentativa de fazer com que o povo, detentor do poder (CF, art. 1º, parágrafo único), seja submetido às vontades e às concepções unilaterais do parlamento, que certamente não se revela consentânea com a opinião da maioria da população, especialmente dos milhões de prostitutos que serão frontalmente afetados por esta iniciativa legislativa, e que sequer tiveram a oportunidade de se manifestar a seu respeito.
O Projeto de Lei ora analisado teve parecer favorável pela Comissão de Constituição e Justiça e pende de apreciação pela Câmara dos Deputados.
5. CONCLUSÃO
A legalização da prostituição (tal qual proposto pelo Projeto de Lei 98/2003 e pelo Projeto de Lei “Gabriela Leite”) ou a criminalização da atividade da clientela dos prostitutos (conforme preconizado pelo Projeto de Lei 377/2001) é tema dos mais polêmicos, cujas consequências atingirão não só os profissionais do sexo, mas a sociedade como um todo.
Um assunto tão delicado e com tamanha repercussão social merece a atenção e o debate do Congresso e da população. As críticas feitas aos projetos em questão no presente trabalho buscam contribuir para a reflexão a respeito do tema.
O que não pode ser aceito, contudo, é a adoção de modelos legislativos que externem concepções pessoais e estigmas morais que não encontram apoio no seio social, cuja opinião deve pautar a edição das leis que o atingem.
6. REFERÊNCIAS
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/1990. 8ª Ed. Salvador : JusPodivm, 2014.
DA SILVA, Andréa. O processo de trabalho de mulheres prostitutas de rua de Florianópolis e sua qualidade de vida [dissertação]. Florianópolis: Departamento de Engenharia de Produção, Universidade Federal de Santa Catarina, 2000.
GAGLIANO, Novo curso de direito civil, volume II : obrigações. 12ª ed. São Paulo : Saraiva, 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas. Aspectos Constitucionais e Penais. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2014.
QUEIROZ, Paulo. Prostituição é legal? Disponível em: [http://pauloqueiroz.net/prostituicao-e-legal/]. Acesso em 20 de dezembro de 2015.
ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Pequenas notas sobre o contrato de prostituição. Disponível em: [http://direitocivilemdebate.blogspot.com.br/2010/05/pequenas-notas-sobre-o-contrato-de.html]. Acesso em 24 de dezembro de 2015.
WYLLYS, Jean. As prostitutas também são mulheres trabalhadoras. Disponível em: [http://www.cartacapital.com.br/sociedade/cut-as-prostitutas-tambem-sao-mulheres-trabalhadoras-5575.html]. Acesso em 22 de dezembro de 2015.
[1]Como justificativa do Projeto, defendeu o Deputado Fernando Gabeira: “Já houve reiteradas tentativas de tornar legalmente lícita a prostituição. Todas estas iniciativas parlamentares compartilham com a presente a mesma inconformidade com a inaceitável hipocrisia com que se considera a questão.
Com efeito, a prostituição é uma atividade contemporânea à própria civilização. Embora tenha sido, e continue sendo, reprimida inclusive com violência e estigmatizada, o fato é que a atividade subsiste porque a própria sociedade que a condena a mantém. Não haveria prostituição se não houvesse quem pagasse por ela.
Houve, igualmente, várias estratégias para suprimi-la, e do fato de que nenhuma, por mais violenta que tenha sido, tenha logrado êxito, demonstra que o único caminho digno é o de admitir a realidade e lançar as bases para que se reduzam os malefícios resultantes da marginalização a que a atividade está relegada. Com efeito, não fosse a prostituição uma ocupação relegada à marginalidade – não obstante, sob o ponto de vista legal, não se tenha ousado tipificá-la como crime – seria possível uma série de providências, inclusive de ordem sanitária e de política urbana, que preveniriam os seus efeitos indesejáveis.
O primeiro passo para isto é admitir que as pessoas que prestam serviços de natureza sexual fazem jus ao pagamento por tais serviços.
Esta abordagem inspira-se diretamente no exemplo da Alemanha, que em fins de 2001 aprovou uma lei que torna exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual. Esta lei entrou em vigor em 1º de janeiro de 2002.
Como consectário inevitável, a iniciativa germânica também suprimiu do Código Penal Alemão o crime de favorecimento da prostituição – pois se a atividade passa a ser lícita, não há porque penalizar quem a favorece.No caso brasileiro, torna-se também consequente suprimir do Código Penal os tipos de favorecimento da prostituição (art. 228), casa de prostituição (art. 229) e do tráfico de mulheres (art. 231), este último porque somente penaliza o tráfico se a finalidade é o de incorporar mulheres que venham a se dedicar à atividade.
Fazemos profissão de fé que o Legislativo brasileiro possui maturidade suficiente para debater a matéria de forma isenta, livre de falsos moralismos que, aliás, são grandemente responsáveis pela degradação da vida das pessoas que se dedicam profissionalmente à satisfação das necessidades sexuais alheias”.
[2] Art. 105. Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito suplementar, com pareceres ou sem eles, salvo as: I – com pareceres favoráveis de todas as Comissões; II – já aprovadas em turno único, em primeiro ou segundo turno; III – que tenham tramitado pelo Senado, ou dele originárias; IV – de iniciativa popular; V – de iniciativa de outro Poder ou do Procurador-Geral da República.
[3] Enunciado 37 da I Jornada de Direito Civil da Justiça Federal: “Art. 187: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.
[4][http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=518106&filename=VTS+2+CCJC+%3D%3E+Projeto de Lei+98/2003]. Acesso em 23 de janeiro de 2015.
[5] Visto em: [http://www.miguelreale.com.br/artigos/funsoccont.htm]. Acesso em: 24 de janeiro de 2015.
[6] Visto em: [http://www.camara.gov.br/sileg/integras/518382.pdf]. Acesso em: 24 de janeiro de 2015.
[7] Na época, não havia sido incorporado ao Código Penal o dispositivo previsto no art. 231-A (Tráfico interno de pessoa para fins de exploração sexual), o que só foi feito em 2009 pela Lei 12.015.
[8] Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:
Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º Na mesma pena incorre quem: (...) II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais.
[9]A continuidade típico normativa ocorre quando, a despeito de ter havido revogação de um determinado tipo penal, não se entende pela abolitio criminis em virtude de a conduta descrita a norma revogada continuar sendo tipificada em outro dispositivo penal.
[10] [http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1012829]. Acesso em 25 de janeiro de 2015.
[11] O art. 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê dispositivo semelhante. Todavia, em função do critério cronológico, conforme Guilherme Freire de Melo Barros (2014, p. 312), o entendimento doutrinário é no sentido de que a previsão do Estatuto da Criança e do Adolescente foi revogado pelo art. 218-B do Código Penal, com redação dada pela Lei 12.015 de 2009.
[12]O autor do projeto repetiu a numeração de um artigo que já existe no Código Penal. Com efeito, o art. 231-A trata do Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual.
Analista Judiciário - Área Judiciária do Supremo Tribunal Federal. Graduado em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão. Graduando em Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DUARTE, Darlon Costa. Uma análise crítica dos projetos de leis que dispõem sobre a regulamentação da prostituição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 fev 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45922/uma-analise-critica-dos-projetos-de-leis-que-dispoem-sobre-a-regulamentacao-da-prostituicao. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: PATRICIA GONZAGA DE SIQUEIRA
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