Resumo: O controle de constitucionalidade divide-se em duas espécies: o controle concentrado e o controle difuso. A principal diferença entre essas espécies, além de procedimental, reside nos efeitos, enquanto o difuso resolve um incidente em um processo subjetivo, gerando efeitos inter partes, o concentrado gera efeitos erga omnes (contra todos), uma vez que nesse controle é feita uma análise da lei em abstrato. A teoria da abstrativização consubstancia-se na possibilidade do STF atribuir eficácia erga omnes às decisões proferidas em sede de controle difuso de Constitucionalidade, que originalmente teriam eficácia apenas inter partes, aproximando, assim, o controle concentrado do concreto. De fato, as decisões tomadas pelo Supremo nos casos concernentes ao controle difuso teriam originalmente eficácia apenas entre as partes envolvidas no conflito, mesmo se tratando da cúpula do judiciário competente para exercer o controle concentrado, uma vez tratar-se de processo subjetivo. Entretanto, o STF, ao julgar o Habeas Corpus n° 82.959/SP, declarou a inconstitucionalidade do § 1°, artigo 2°, da lei n° 8072/90, referente à vedação de progressão de regime no que tange aos crimes hediondos, estabelecendo que os requisitos da citada lei deveriam ser analisados caso a caso, estendendo, assim, os efeitos de tal decisão contra todos, abrindo precedente para inúmeras outras decisões semelhantes. A teoria da abstrativização levanta inúmeras discussões de extrema relevância no meio jurídico brasileiro, com importantes implicações práticas, tais como: o papel do senado no controle difuso; limites constitucionais de poderes atribuídos ao STF; celeridade processual e aproximação dos controles difuso e concentrado.
Palavras-chave: Teoria da abstrativização. Controle Difuso. Supremo Tribunal Federal. Senado Federal.
1 Introdução
O controle de constitucionalidade difuso configura-se como o meio pelo qual o juiz, diante do caso concreto e de modo incidental, decide acerca da constitucionalidade de determinada norma, atribuindo a tal decisão eficácia inter parts e efeitos ex tunc (retroativos).
Tal modelo diferencia-se do controle abstrato justamente pela característica que lhe é inerente de atribuir ao magistrado ou ao tribunal o poder de declarar, na apreciação do caso concreto, em que há interesse subjetivo em pauta, a inconstitucionalidade de ato normativo do poder público, de modo incidental, de maneira a não aplicar a lei impugnada ao caso concreto.
A discussão de maior relevância concerne à possibilidade do Supremo atribuir de eficácia erga omnes (extensível a todos) às decisões prolatadas em controle difuso. No ordenamento jurídico vigente, o senado federal, após decisão definitiva do STF acerca da inconstitucionalidade do ato normativo, poderá suspender a execução deste, concedendo, portanto, eficácia geral à decisão, característica proeminente da separação de poderes.
Entretanto, surgiu no âmbito do STF uma linha interpretativa, baseada na supremacia da constituição e sua aplicação uniforme a todos, bem como na qualidade do Supremo de guardião máximo da Constituição, que possibilita ao Supremo conferir efeitos gerais às suas decisões, que acaba por desencadear na teoria da abstrativização do controle de constitucionalidade incidental, equiparando as decisões tomadas no controle concreto de constitucionalidade às decisões do controle abstrato.
Não obstante, para Gilmar Mendes, precursor da teoria da abstrativização, o STF, ao declarar determinada lei inconstitucional, comunicaria ao Presidente do Senado, que seria encarregado apenas de conferir publicidade à decisão, não tendo o condão de garantir sua eficácia, pois a decisão, por ser ato jurisdicional, já seria dotada de plena efetividade social.
Essa discussão no âmbito do Pretório Excelso tem relevância fundamental na sociedade, uma vez que poderá dotar o sistema jurídico de maior eficácia, celeridade e economia processual. Mas a teoria da abstrativização também encontra doutrinadores que não a vêem com bons olhos, pois tal prerrogativa conferiria poder em demasia ao Supremo, além de ser ato não albergado pela legislação vigente.
2. Noção de controle de constitucionalidade
O Direito, entendido como ordenamento jurídico, é um conjunto coordenado de normas que regulam as mais diversas condutas humanas com a finalidade de possibilitar uma melhor convivência em sociedade, uma vez que o homem é um ser essencialmente social, mas necessita de regras que possam solucionar os conflitos que surgem dessas relações sociais. Norberto Bobbio é quem melhor explicita o direito como um sistema:
A nosso ver, a teoria da instituição teve o grande mérito de pôr em relevo o fato de que se pode falar de Direito somente onde haja um complexo de normas formando um ordenamento, e que, por tanto, Direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um sistema normativo.[1]
Essa é a idéia de ordenamento jurídico como um sistema, ou seja, pontos interligados (as normas) com uma finalidade em comum (possibilitar um melhor convívio social) e como tal pressupõe unidade, ausência de contradições em seu conteúdo, de modo que cada norma deve atuar em conformidade com as demais para que se possa atingir a finalidade maior, devendo ser afastada qualquer contradição ou conflito que possa desvirtuar essa finalidade.
Esse sistema, do qual tratamos, é um sistema escalonado com normas hierárquicamente superiores em relação a outras, com estas devendo obediências àquelas. No topo dessa hierarquia, como norma maior desse sistema a reger todo o ordenamento jurídico encontra-se a Constituição. Dessa forma, todas as demais normas que compõem o ordenamento jurídico devem sempre estar em conformidade com o que essa Carta Magna preceitua, sempre indo ao encontro não apenas de suas prescrições mas também de seus princípios. José Afonso da Silva fala com maestria a respeito da supremacia constitucional.
Significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas.[2]
Dessa afirmação constata-se que na constituição, como o próprio nome sugere, se encontram os elementos formadores do Estado, suas normas essenciais que albergam os seu elementos: soberania, território, forma de governo, povo e o bem comum, além dos direitos fundamentais que visam a proteção da dignidade da pessoa humana, e é esse conteúdo que confere à constituição o patamar de norma suprema. Essa matéria constitucional tem uma força tamanha que pode atribuir poder de norma constitucional às normas que formalmente estão fora da Constituição, como os tratados de Direitos Humanos aprovados na forma do art. 5°, parágrafo 3°, da Carta Magna.
Ocorre que com a evolução da sociedade surgem novas condutas a serem reguladas, novos conceitos e novas interpretações, fatores que ensejam a regular atualização do ordenamento jurídico, ou seja, alteração, elaboração e revogação das normas que o compõem, com o intuito de se tentar, o máximo possível, acompanhar a evolução da sociedade, apesar do dinamismo social ser bem maior que evolução do Direito no sentido de norma prescritiva.
Diante da necessidade de se manter um sistema uniforme, se faz necessário o surgimento de ferramentas que garantam um compasso entre as partes que o integram, ferramentas que atuem no controle das normas que vão de encontro ao que determina outra norma hierarquicamente superior, normas que vão de encontro ao ordenamento jurídico. Essas ferramentas devem atuar coibindo, prevenindo ou remediando conflito de normas, havendo então o controle preventivo e o repressivo, sendo que, nesse momento, será discutido o controle repressivo em face da Constituição.
Tendo em mente que o Controle de Constitucionalidade surge em razão da necessidade de manutenção da conformidade do ordenamento jurídico com a Constituição, dado caráter de superioridade, tem-se como pressuposto desse tipo de controle a rigidez e a supremacia constitucional. Como bem conceitua Luís Roberto Barroso ao prelecionar ambas as características como pressupostos ao controle de constitucionalidade:
A supremacia da Constituição revela sua posição hierárquica mais elevada dentro do sistema, que se estrutura de forma escalonada, em diferentes níveis. É ela o fundamento de validade de todas as demais normas [...] A rigidez constitucional é igualmente pressuposto do controle. Para que possa figurar com parâmetro, como paradigma de validade de outros atos normativos, a norma constitucional precisa ter um processo de elaboração diverso e mais complexo do que aquele apto a gerar normas infraconstitucionais.[3]
Diz-se Constituição rígida aquela que exige um processo legislativo qualificado, mais elaborado na sua alteração, um diferencial em relação ao processo legislativo comum, sob pena de se ter normas de patamar formalmente iguais.
A supremacia constitucional consiste em concentrar na Constituição todo o fundamento formal, material e principiológico, sendo ela a lei maior de forma a iluminar todo o ordenamento jurídico, garantido, assim, legitimidade ao controle para, em sua defesa, afastar uma norma que a contrarie.
É nisso em que consiste o controle de constitucionalidade, uma ferramenta que ajuda a elidir o conflito de normas infraconstitucionais com a Constituição, na tentativa de manter a conformidade daquelas com estas, garantindo, assim, o respeito à lei maior dentro do ordenamento jurídico, evitando-se as contradições que poderiam gerar insegurança jurídica.
3 Controle de constitucionalidade no Brasil.
3.1 Controle Jurisdicional Misto
A despeito dos dois tipos de controle de constitucionalidade conhecidos, o Brasil adota um sistema que utiliza características de ambos, conhecido como Controle de Constitucionalidade jurisdicional misto: misto, pois o ordenamento jurídico brasileiro permite os dois tipos de controle, concentrado e difuso; jurisdicional porque ambos os controles são exercidos pelo Poder Judiciário. O Controle Difuso, de origem americana, é exercido por qualquer membro do judiciário, o concentrado, de origem austríaca, é exercido pela cúpula do judiciário, o STF, único órgão do Poder Judiciário brasileiro que é competente para exercer o controle concentrado em face da Constituição Federal, exercendo os dois tipos de controle.
Esse modelo de controle de constitucionalidade é relativamente recente, vindo a se consolidar com a Constituição Federal de 1988. A inauguração do Controle de Constitucionalidade por parte do judiciário, no Brasil, se deu por meio do Decreto 848 de 1890, que previa o instituto de controle jurisdicional (incidental) de constitucionalidade, sendo introduzido na Constituição Republicana de 1891 (art. 59, § 1º, “a” e “b” e art. 60, “a”). Contudo, havia certa imaturidade do tema, ocorrendo casos inclusive de responsabilidade de juizes ao afastar uma lei no caso concreto por entendê-la desconforme com a constituição.
Dentro desse contexto o Hábeas Corpus serviu de instrumento essencial ao exercício do controle de constitucionalidade, uma vez que a primeira constituição republicana do Brasil tornou o Hábeas Corpus uma ferramenta de proteção sempre que o indivíduo sofresse ou se achasse em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder.
O controle concentrado de constitucionalidade teve seu marco inaugural em nosso ordenamento jurídico na Constituição seguinte, de 1934, com a regulamentação da intervenção da União em negócios peculiares aos Estados, prevendo que a intervenção, que visava assegurar a observância dos princípios constitucionais e a execução de leis federais, só se efetuaria depois que a Corte Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República, tomasse conhecimento da lei que a tivesse decretado e lhe declarasse a constitucionalidade (art. 12, § 2º). Pelo que podemos verificar, tal sistema é distinto do vigente atualmente, uma vez que tanto a constituição como a lei prevêem um rol de legitimados a propor as ações de controle concentrado, e naquele momento só havia um legitimado e uma ação de controle com um tema específico.
3.2 Procedimento do Controle Concentrado – ADI, ADC, ADO, ADPF
O controle concentrado de constitucionalidade no Brasil, em face da Constituição Federal, é de competência exclusiva do STF, daí o nome de controle concentrado, sendo exercido por meio de ações específicas que, devido a seu procedimento peculiar, permitem uma análise da lei ou ato normativo em abstrato, sem que haja necessariamente caso concreto de aplicação da mesma, motivo pelo qual esse controle também é chamado de controle abstrato de normas. Nessas ações, o STF verifica a conformidade da lei ou ato normativo com a Constituição Federal, tanto do ponto de vista formal, verificando a observância aos preceitos de elaboração da norma, como do ponto de vista material, verificando se o conteúdo da norma afronta ou não os princípios constitucionais.
São cinco as ações que sevem de instrumento no exercício do Controle de Constitucionalidade Concentrado: ADI, ADC, ADO, ADPF e ADI Interventiva. Cada uma possui características peculiares, porém todas têm em comum a finalidade de manter a ordem constitucional.
A primeira é a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, na qual o impetrante, como o nome da ação sugere, visa que seja declarada a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo por entender que haver uma afronta à Constituição Federal. Sua previsão normativa está no art. 102, I, “a” da Constituição Federal, bem como na Lei 9868/99, possuindo um rol de legitimados a propor-lhe previsto tanto na Constituição, art. 103, tendo por objeto leis federais e estaduais e suas decisões têm efeito vinculantes, erga omnes e, via de regra, ex tunc.
Referente à Ação Declaratória de Constitucionalidade, que visa declarar a constitucionalidade de lei ou ato normativo, poderia se indagar qual a utilidade dessa ação, já que toda lei goza de presunção de constitucionalidade, porém tal presunção é relativa, cabendo prova em contrário, de forma que a jurisprudência, por meio do controle difuso de constitucionalidade, muitas vezes oscila bastante ao manifestar-se a respeito da constitucionalidade ou não de uma norma, o que pode gerar insegurança jurídica, surgindo então a necessidade da declaração de constitucionalidade pelo STF, órgão maior do judiciário, por meio do Controle Concentrado, para que se uniformize a jurisprudência.
A Ação Declaratória de Constitucionalidade está prevista no art. 102, I, “a”, segunda parte da Constituição Federal e na Lei 9868/99, possuindo um rol de legitimados a propor-la previsto tanto na Constituição, art. 103, tendo por objeto somente leis federais e suas decisões têm efeito vinculantes, erga omnes e, via de regra, ex nunc.
A Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão trata de declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo por ser omisso, insuficiente a sua finalidade (omissão parcial), ou pela ausência de regulamentação por parte de norma infraconstitucional, a qual a própria Constituição delegou essa função. Nesse ultimo caso, a inconstitucionalidade não recai sobre a norma, pois essa ainda não existe, e sim sobre o órgão que detém a competência para tomar iniciativa ou, se a iniciativa já tiver sido tomada, sobre o órgão que detém a competência para elaborá-la.
É prevista no art. 103, § 2º da Constituição e na Lei 9868/99, e seu rol de legitimado é o mesmo das ações anteriores, de modo que seu efeito, em relação ao Legislativo é de dar ciência da omissão. No tocanto ao executivo, é concedido o prazo de 30 dias para que seja sanada a omissão.
A argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental é uma ação de controle de caráter subsidiário. Por meio dessa ação é feito o controle de normas que não podem ser objeto das demais ações de controle abstrato, como é o caso de lei municipais, bem como das leis ou atos normativos anteriores à Constituição Federal, uma vez que no Brasil não se admite inconstitucionalidade superveniente, não havendo que se falar em declaração de inconstitucionalidade dessas normas.
Além de estar prevista na Constituição Federal (art. 102, § 1º) a ADPF possui procedimento próprio previsto na Lei 9882/99, tem por objeto qualquer ato do Poder Público, lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição. Os legitimados são os mesmo da ADI.
Por fim, a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade Inteventiva foi a primeira ação de controle de constitucionalidade abstrato prevista no ordenamento jurídico brasileiro. Tratando-se de um pressuposto de intervenção federal, o STF, ao analisar um caso concreto envolvendo um dos entes federativos, a requerimento do Procurador Geral da Republica, fará o controle da ordem constitucional, para ao final do processo aferir se é caso ou não de intervenção.
È prevista no art. 36, III da Constituição Federal e possui duas hipóteses de incidência: assegurar a observância dos princípios fundamentais previstos no art. 34, VII, os chamados Princípio Constitucionais Sensíveis, e no caso de recusa à execução de lei federal, por parte de um dos Estados.
Essas são ações diferenciadas, que em quase nada se parecem com as ações comuns, possuindo procedimento próprio e peculiares, previstos tanto na Constituição como em leis infraconstitucionais específicas. Possuem características muito específicas, como a indisponibilidade da ação por não existir análise de fatos, caso concreto nem partes, só havendo a análise abstrata da lei; a previsão do amicus curiae, que atua no auxílio técnico, dando pareceres com mais propriedade sobre o assunto objeto da lei que está sob análise; audiências públicas, que visam consultar a sociedade a respeito de seus interesses, etc. Características procedimentais que legitimam a decisão a ponto de atribuir efeitos vinculantes e erga omnes ao controle abstrato de normas.
3.3 Procedimento do Controle Difuso brasileiro
No Controle difuso de constitucionalidade, por sua vez, é analisada a constitucionalidade de determinada norma diante do caso concreto, questão que é incidental à análise meritória. O controle difuso, diferentemente do concentrato, é de competência de todos os juízes e tribunais.
Pode ser argüida por qualquer uma das partes do processo, desde que seu direito esteja limitado ou obstado por lei ou ato normativo cuja constitucionalidade seja questionável.
Também tem legitimidade para argüir a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, em sede de controle difuso, o representante do Ministério Público na qualidade de custos legis ou terceiro interessado, assim como o juiz poderá declarar a inconstitucionalidade da norma em controle difuso de ofício.
Terceiros que não tenham liame subjetivo com a lide, por não poderem se manifestar nos autos, não poderão argüir tal incidente sem que impetrem sua própria demanda, se for o caso. Ainda, esse meio de controle não poderá subsistir se não houver uma lide como objeto principal, um caso concreto no qual incida a lei ou ato normativo, visto que o controle de constitucionalidade difuso não é apto a analisar a lei em abstrato, para tanto existindo as ações de controle concentrado.
Uma vez suscitada essa prejudicial de mérito, questão a ser resolvida pelo julgador antes de chegar ao objeto principal da ação, o juiz fará a análise do caso concreto e, à luz da Constituição, decidirá se a lei ou ato normativo serão ou não aplicados ao caso em apreço.
4 O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade difuso exercido pelo STF.
O controle difuso de constitucionalidade, de competência do judiciário, tem seus efeitos limitados. Por se tratar de uma questão incidental de um processo onde o objeto principal é outro, por envolver um caso concreto de modo que somente os sujeitos envolvidos no litígio poderão se manifestar, seus efeitos são inter partes, ou seja, a decisão de inconstitucionalidade tomada em sede de controle difuso só gera efeito entre as parte do processo, não tendo o condão de retirar a lei ou ato normativo do ordenamento jurídico, mesmo que essa decisão seja tomada em última instância pelo STF.
A Constituição Federal prevê hipótese em que será possível a atribuição de efeitos erga omnes às decisões de inconstitucionalidade tomadas pelo STF em sede de controle difuso de constitucionalidade (art. 52, X, CF), onde atribui essa função ao Senado Federal:
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;
Nesse artigo a Constituição confere ao Senado Federal competência privativa para suspender a execução da lei que o STF tenha declarado inconstitucional em sede de controle difuso. Pela simples interpretação literal do artigo vê-se que o intuito do constituinte originário seria de atribuir ao Senado Federal a função de dar efeito geral às decisões que têm efeito particular, uma vez que essas decisões tendem a resolver uma questão incidental de um processo subjetivo, motivo pelo qual muitos doutrinadores o chamam de controle incidental ou por via de exceção, cuja a participação é restrita aos litigantes e por isso só gera efeitos entre os próprios.
A sentença que liquida a controvérsia constitucional não conduz à anulação da lei, mas tão-somente à sua não-aplicação ao caso particular, objeto da demanda.[4]
Assim se expressa Paulo Bonavides ao tratar do controle de constitucionalidade por via de exceção, ainda se fundamentando em Rui Barbosa: “O ato criminado subsiste no corpo geral das leis ou dos decretos, enquanto o poder competente não o desfizer [...]”. Esse trecho deixa evidente que os efeitos desse tipo de controle só se aplica no caso em questão e que deve ser enviado ao poder competente a análise do caso para que se possa estender esses efeitos, após uma análise abstrata, retirando o auto grau de subjetividade do procedimento comum.
Entretanto, o STF já entendeu de forma diferente. A Corte Suprema, em especial o Min. Gilmar Mendes, já manifestou o entendimento no sentido de que o controle de constitucionalidade sofreu grande alteração com a inclusão do controle abstrato, ocasionando uma mutação constitucional.
A amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possibilidade de que se suspenda, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, contribuíram, certamente, para que se quebrantasse a crença na própria justificativa desse instituto, que se inspirava diretamente numa concepção de separação de Poderes - hoje necessária e inevitavelmente ultrapassada. [5]
Para o Min. Gilmar Mendes, com a ampliação do controle concentrado de constitucionalidade, operada com a Constituição de 1988, esse instituto, previsto no inciso X, do artigo 52 da Constituição Federal, teve seu sentido completamente modificado, uma vez que provocou alterações no modelo de controle incidente, reduzindo seu significado, assim conclui o Ministro:
Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, esta decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso.
Ainda segundo o Ministro, um dos fatores que contribuíram para o fomento do controle concentrado de constitucionalidade e, consequentemente, alteração no sentido do instituto da suspensão de execução pelo Senado Federal, foi o aumento no rol de legitimados para propor esse tipo de ação, que antes se restringia ao Procurador-Geral da República. Dessa forma, o constituinte possibilitou a submissão de qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, aumentando consequentemente sua jurisdição constitucional.
Entretanto, havia parte da doutrina que entendia que isso não interferiria no sentido do texto constitucional, expresso no art. 52, X, defendendo que o aumento de legitimados seria uma forma de garantir a participação da sociedade no controle concentrado. Essa segunda corrente doutrinária concluia que a aplicação do dispositivo constitucional supra seria uma forma de garantir a participação do povo, ou pelo menos de seus representantes, no controle difuso de constitucionalidade, uma vez que o Senado Federal é o representante do povo.
Se o controle concentrado é exercido pelo Supremo Tribunal, por outro lado poderá existir, neste controle, a participação da sociedade civil. A decisão do Supremo Tribunal estará, então, legitimada não somente porque emanou da corte que possui em última instância a complexa responsabilidade da guarda da Constituição. Principalmente, a decisão estatal estará legitimada por ser o resultado de um processo jurisdicional em que a sociedade poderá vir a ter participação.[6]
Nesse sentido, a participação do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade, por meio da aplicação do inciso X, do artigo 52, da Constituição, seria a forma de democratizar a decisão de constitucionalidade, podendo, só a partir de então, ter efeitos erga omnes.
Mas o modelo de participação democrática no controle difuso também se dá, de forma indireta, pela atribuição constitucional deixada ao Senado Federal. Excluir a competência do Senado Federal – ou conferir-lhe apenas um caráter de tornar público o entendimento do Supremo Tribunal Federal – significa reduzir as atribuições do Senado Federal à de uma secretaria de divulgação intra-legistativa das decisões do Supremo Tribunal Federal; significa, por fim, retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988, ao menos em sua redação originária.[7]
5 Teoria da Abstrativização.
Confome mencionado, o Brasil adota o sistema misto de controle de constitucionalidade, no qual subsistem os controles difuso e concentrado. As decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso, diferentemente do concentrado, possuem eficácia interpartes e efeitos ex tunc, uma vez que neste tipo de controle a inconstitucionalidade da norma é discutida de maneira incidental, dentro de um processo subjetivo.
Entretanto, o supremo, no julgamento do HC 82.959/SP, declarou a inconstitucionalidade do § 1°, art. 2, da lei n° 8.072/90, concernente à vedação a progressão de regime nos crimes hediondos, afirmando, na ocasião, que os demais requisitos constantes na lei deveriam ser analisados caso a caso pelos magistrados.
Com efeito, ao julgar referido HC, que tratava de processo subjetivo com partes definidas, o STF abriu precedente para a denominada teoria da abstrativização, que consubstancia-se na possibilidade do Supremo atribuir eficácia erga omnes (contra todos) às decisões tomadas em sede de controle difuso, como, de fato, ocorreu neste julgamento, uma vez que o óbice à progressão de regime nos crimes hediondos foi afastado em relação a toda a sociedade, e não apenas em relação às partes envolvidas no processo.
Nesse contexto, o senado teria, de acordo com o Ministro Gilmar Mendes, grande defensor da teoria, apenas a função de publicizar a decisão do Supremo, já que esta seria jurisdicional e capaz de produzir efeitos por si mesma.
Ademais, o § 1°, do art. 2° da lei n° 8.072/90 foi revogado pela lei n° 11.474/07, que alterou a lei dos crimes hediondos. Contudo, a decisão tomada pelo Supremo no HC 82.959/SP desencadeou uma importante discussão dentro do órgão de cúpula do poder judiciário, que se viu diante da possibilidade de conferir maior celeridade aos seu julgados, modulando os efeitos de suas decisões, mas, em contrapartida, subtraindo do Senado Federal função atribuída pela Constituição.
Advirta-se, por sua vez, que o STF, após certa polêmica, por meio da Reclamação 4335/AC, julgada em 2013, rechaçou a aplicação da teoria da abstrativização do controle difuso, estabelecendo que o art. 52, X, da CF, não sofreu mutação constitucional, cabendo ao Senado, portanto, a função de suspender a eficácia da lei cuja inconstitucionalidade tenha sido declarada pelo STF, atribuindo à decisão do Supremo eficácia erga omnes.
6 Conclusão
Não obstante o entendimento atual do STF, não se pode negar que hodienarmente a tendência é prestigiar a celeridade e a segurança jurídica, existindo inúmeros dispositivos processuais atribuindo às decisões dos tribunais superiores cada vez mais força vinculante, de modo que a discussão acerca da possibilidade da abstrativização das decisões do STF em controle difuso ainda mostra-se relevante, não sendo impossível imaginar que, num futuro próximo, a teroria da abstrativização possa voltar à tona.
7 Referências
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1999, p. 21.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 45.
Barroso, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1/2.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
MENDES, Gilmar Ferreira. O Papel do senado federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de informação legislativa. Distrito Federal: Senado Federal, 04/2004 A 06/2004. p. 149 - 168. v.41 fas.162 .
DOURADO,Maristela Seixas.O Papel Do Senado Federal No Controle De Constitucionalidade.
DOURADO,Maristela Seixas.O Papel Do Senado Federal No Controle De Constitucionalidade.
[1] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1999, p. 21.
2 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 45.
3 Barroso, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1/2.
Advogado. Graduado pelo Centro Universitário Christus (turma de 2012.1). Aprovado nos seguintes concursos: Procurador do Estado do Paraná e Procurador do Município de Salvador.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Wilmer Cysne Prado e Vasconcelos. Abstrativização do controle difuso de constitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 fev 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/45944/abstrativizacao-do-controle-difuso-de-constitucionalidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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