RESUMO: Analisa-se por meio do presente trabalho a relativização do art. 649, IV, do CPC, considerando, sob a ótica constitucional e processualista, a (in)existência do direito absoluto da impenhorabilidade das verbas de caráter alimentar, sobretudo, em face do direito fundamental da efetividade da tutela executiva. Enfatiza-se outrossim as inovações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil a respeito do tema.
Palavras-chave: Tutela executiva. Impenhorabilidade. Verbas salariais. Natureza alimentar. Relativização. Novo CPC.
INTRODUÇÃO
A penhora em dinheiro revela um dos instrumentos mais eficazes para a satisfação do crédito exequendo, no entanto a legislação processualista prevê significativas exceções de forma a preservar direitos mínimos da dignidade do executado, a exemplo da impenhorabilidade de verbas salariais.
Malgrado seja, a natureza alimentar das verbas salariais não pode se afigurar como um óbice intransponível e absoluto ao instituto da penhora, devendo ser relativizado conforme o caso concreto e, sobretudo, o comprometimento do sustento próprio do devedor e de sua família.
No presente trabalho, será analisada tal relativização sob a ótica da doutrina processualista e dos julgados do Superior Tribunal de Justiça, sem se olvidar das inovações legislativas trazidas pelo Novo Código de Processo Civil.
A RELATIVIZAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE DAS VERBAS SALARIAIS
Marcus Vinicius Gonçalves, ao tratar acerca da penhora em dinheiro, realiza os seguintes apontamentos:
A penhora de dinheiro ocupa o topo da lista de preferência do art. 655. Há um risco a ser assumido pelo credor: o de que a constrição venha a recair sobre valores impenhoráveis. O mecanismo ainda não se tornou de tal forma eficiente que permita excluir as contas para recebimento de salários e aposentadorias, que são impenhoráveis. Caso a constrição recaia sobre elas, competirá ao executado comunicar o fato ao juiz e postular a liberação. Se disso resultarem danos, o devedor poderá valer-se de ação própria para postular indenização.[1]
Tal impenhorabilidade resta prevista no art. 649, IV, do CPC, com redação dada pela Lei 11.382/2006:
São absolutamente impenhoráveis:
IV - os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3o deste artigo;
Conforme pontua Daniel Amorim:
A justificativa para a impenhorabilidade prevista no dispositivo legal ora comentado reside justamente na natureza alimentar de tais verbas, donde a penhora e a futura expropriação significariam uma indevida invasão em direitos mínimos da dignidade do executado, interferindo diretamente em sua manutenção, no que tange às necessidades mínimas de habitação, transporte, alimentação, vestuário, educação, saúde etc.[2]
Humberto Dalla, em sua obra, faz a ressalva de que a Lei 11.382/2006 foi a responsável por inovar na sistemática da penhorabilidade, porém trouxe à tona a excepcionalidade da impenhorabilidade quando a execução tratar de pagamento de pensão alimentícia.
A Lei n. 11.382/2006 trouxe como inovação a não incidência da impenhorabilidade em bens que revelam caráter de ostentação, fato que deve ser avaliado pelo juiz à luz da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana. Restringiu, ainda, a impenhorabilidade aos frutos e rendimentos dos imóveis, salvo se destinados à satisfação de prestação alimentícia (art. 650, CPC). Salários e vencimentos também se tornaram penhoráveis para o pagamento de pensão alimentícia (art. 649, IV, CPC)[3]
Nesse sentido, salutar esclarecer que a relativização da penhora prevista no parágrafo 2º, do artigo 649, ponderou a relação surgida entre o direito do credor de ter efetividade na prestação jurisdicional e a proteção do executado no mínimo necessário para a manutenção de sua dignidade e de sua família.
Na lição de Didier, “se o fundamento da impenhorabilidade é a natureza alimentar da remuneração, diante de um crédito também de natureza alimentar, a restrição há, realmente, de soçobrar.”[4]
Tal mitigação não deveria se mostrar singular na legislação processualista. A ponderação entre os direitos fundamentais do exequente e executado deveria, sim, prevalecer em toda e qualquer efetivação de penhora às verbas salariais, sem prestigiar esses em detrimentos daqueles, quando não há justificativa razoável para tanto.
Isso porque se mostra deveras desarrazoado que toda e qualquer verba salarial, depositada em conta corrente, independente de seu montante, de sua destinação ou da data em que passou a compor o patrimônio do executado, jamais pudesse ser objeto de constrição judicial.
Daniel Amorim conclui que a impenhorabilidade de salários consagrada no dispositivo legal ora analisado é lamentável, contrariando a realidade da maioria dos países civilizados, que, além da necessária preocupação com a sobrevivência digna do devedor, não se esquecem que salários de alto valor podem ser parcialmente penhorados sem sacrifício de sua subsistência digna. [5]
Acrescenta que a impenhorabilidade absoluta dos salários diante de situações em que um percentual de constrição não afetará a sobrevivência digna do devedor, é medida de injustiça e deriva de interpretação equivocada do princípio do patrimônio mínimo.[6]
Solucionando a questão, Didier, contundentemente, preleciona que:
(...) é possível mitigar essa regra da impenhorabilidade, se no caso concreto, o valor recebido a título de verba alimentar (...) exceder consideravelmente o que se impõe para a proteção do executado. (...) Restringir a penhorabilidade de toda a “verba salarial”, mesmo quando a penhora de uma parcela desse montante não comprometa a manutenção do executado, é interpretação inconstitucional da regra, pois prestigia apenas o direito fundamental do executado, em detrimento do direito fundamental do exequente.[7]
Desta feita, se mostra coerente e admissível que a penhora de valores salariais que remanesceram do mês anterior sem qualquer destinação dada pelo executado, acumulando-se na conta corrente, bem como, sob a ótica do princípio da proporcionalidade, uma porcentagem sobre salários vultuosos recebidos por executados (sugere-se 40% acima de vinte salários mínimos, nos termos do art. 649, paragrafo 3º, vetado pelo Presidente da República erroneamente), não compõem o chamado “mínimo necessário para a sobrevivência digna do devedor”, objeto da proteção do legislador processualista. Na lição de Leonardo Greco:
Até a percepção da remuneração do mês seguinte, toda a remuneração mensal é impenhorável e pode ser consumida pelo devedor, para manter padrão de vida compatível com o produto do seu trabalho. Mas a parte da remuneração que não for utilizada em cada mês, por exceder as necessidades de sustento suas e de sua família, será penhorável como qualquer outro bem do seu patrimônio. [8]
Assim, a título de exemplo, sugere-se a hipótese em que determinado individuo recebe R$ 8.000 de verbas salariais em um mês, gasta R$ 6.000 e guarda os R$ 2.000 restantes na conta corrente. Se, no mês seguinte, receber o novo salário de valor igual (mais R$ 8.000), totalizando R$ 10.000 na conta, estes R$ 2.000 “excedentes” poderão, em tese, ser penhorados.
O Superior Tribunal de Justiça, ainda que tenha decidido em alguns momentos pela aplicação direta e inexorável da impenhorabilidade legal, desconsiderando quaisquer circunstâncias fáticas do caso, já admitiu em diversos julgados a flexibilização da rigidez legal, analisando a (in)existência de ofensa à dignidade mínima do devedor na hipótese de penhora de percentual de seu salário. Nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO. DÍVIDA APURADA EM INVENTÁRIO. OMISSÃO E AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. INEXISTÊNCIA. PENHORA DE SALÁRIO. POSSIBILIDADE. 1.- Os embargos de declaração são corretamente rejeitados se não há omissão, contradição ou obscuridade no acórdão recorrido, tendo sido a lide dirimida com a devida e suficiente fundamentação. 2.- A regra geral da impenhorabilidade, mediante desconto de conta bancária, de vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações e proventos de aposentadoria, constante do art. 649, IV, do CPC, incidente na generalidade dos casos, deve ser excepcionada, no caso concreto, diante das condições fáticas bem firmadas por sentença e Acórdão na origem (Súmula 7/STJ), tendo em vista a recalcitrância patente do devedor em satisfazer o crédito, bem como o fato de o valor descontado ser módico, 10% sobre os vencimentos, e de não afetar a dignidade do devedor, quanto ao sustento próprio e de sua família. Precedentes. 3.- Recurso Especial improvido[9]. (REsp 1285970/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/05/2014, DJe 08/09/2014)
PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO. EMBARGOS DO DEVEDOR. REVISÃO. CONTRATO. POSSIBILIDADE. VERBA ALIMENTAR, DEPÓSITO EM CADERNETA DE POUPANÇA E OUTRAS APLICAÇÕES FINANCEIRAS. PENHORABILIDADE. LIMITES. (...) 2. Valores caracterizados como verbas alimentares somente manterão essa condição enquanto destinadas ao sustento do devedor e sua família, ou seja, enquanto se prestarem ao atendimento das necessidades básicas do devedor e seus dependentes. Na hipótese do provento de índole salarial se mostrar, ao final do período - isto é, até o recebimento de novo provento de igual natureza - superior ao custo necessário ao sustento do titular e seus familiares, essa sobra perde o caráter alimentício e passa a ser uma reserva ou economia, tornando-se, em princípio, penhorável.(...) 7. Recurso especial a que se nega provimento.[10]
Neste último julgado citado, a emérita Ministra Nancy Andrighi pontuou sabiamente em seu voto que: “o que se quis assegurar com a impenhorabilidade de verbas alimentares foi a sobrevivência digna do devedor e não a manutenção de um padrão de vida acima das suas condições, às custas do devedor.”
Vale ressaltar que quantias decorrentes de rescisão trabalhista são consideradas verbas alimentares e equiparadas a “salário” para todos os efeitos decorrentes, inclusive para efeitos de impenhorabilidade, aplicando-se, invariavelmente, o entendimento aqui esposado acerca do limite de tal instituto.
AS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS DO NOVO CPC
No que pertine ao Novo Código de Processo Civil – Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, vislumbre-se que restou mantido o teor do art. 649, IV (artigo 833, IV, NCPC), bem como a disposição no sentido de que a impenhorabilidade das verbas salarias não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem.
No entanto, de forma inovadora e atendendo parcialmente aos anseios da jurisprudência e doutrina, o novo CPC previu que o disposto no art. 833, IV, não se aplica às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8o, e no art. 529, § 3o (art. 831, §2º, NCPC).
Analisando tal inovação, Daniel Amorim Assumpção esclarece que:
A inovadora possibilidade de penhora de salários acima de 50 salários mínimos mensais vem de encontro à percepção já presente em algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça de ser plenamente compatível tal espécie de penhora e a preservação do princípio do patrimônio mínimo. Assim se satisfaz o direito de crédito do exequente e preserva-se a dignidade humana do devedor. Pode se criticar o valor indicado pelo art. 831, § 2.º, do Novo CPC, afinal, são poucos devedores que recebem valor superior a 50 salários mínimos por mês. Ainda assim é inegável o avanço da norma legal, que inclui o Brasil no rol dos países civilizados, tanto de tradição da civil law (por exemplo, Argentina, Uruguai, Chile, Portugal, Espanha, Alemanha e Itália), como da common law (por exemplo, Estados Unidos e Inglaterra). É um começo, que com o passar do tempo, poderá ser aperfeiçoado.
Quem sabe num futuro próximo o Brasil possa caminhar para uma penhorabilidade escalonada como a prevista na legislação processual espanhola, em sistema que me parece o mais adequado.[11]
Assim, entende-se que, malgrado o novo CPC não tenha trazido a possibilidade de penhora de verbas salariais remanescentes e acumuladas do mês anterior na conta corrente, ou mesmo um valor mais factível e condizente com a realidade dos devedores no Brasil, houve uma tímida evolução legislativa ao encontro da doutrina e jurisprudência majoritária.
CONCLUSÃO
A impenhorabilidade das verbas salarias, excetuada a questão da execução alimentícia, não pode figurar na legislação processualista como um dogma, protegendo-se exclusivamente o devedor, em detrimento do direito fundamental da tutela executiva do credor.
A ponderação entre os direitos de credor e devedor deve ser calcada na razoabilidade e proporcionalidade, prezando-se pela impenhorabilidade somente daqueles valores que assegurem a sobrevivência digna do devedor, e não aqueles numerários excessivos, acumulados e que assegurem um padrão de vida acima das suas condições.
A legislação processualista pouco dispôs acerca da relativização da impenhorabilidade das verbas salariais, razão pela qual a doutrina processualista e os tribunais superiores passaram a suplementar a norma e afastar a aplicação do art. 649, IV, do CPC a depender do caso concreto.
Ademais, o novo CPC trouxe uma sensível inovação no ordenamento ao prever a possibilidade de penhora de salários acima de 50 salários mínimos mensais, no entanto ainda é manifesto o atraso da legislação brasileira em relação a diversos países civilizados, tanto de tradição da civil law (por exemplo, Argentina, Uruguai, Chile, Portugal, Espanha, Alemanha e Itália), como da common law (por exemplo, Estados Unidos e Inglaterra).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GRECO, Leonardo. O Processo de Execução. Vol. II, Rio de Janeiro: Renovar, 2001
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. 5.ed.São Paulo: Saraiva, 2012.
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo: introdução ao processo civil, volume II. São Paulo: Saraiva, 2012.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. V. 5. 4ª ed.. Salvador: Juspodivum, 2012.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 7. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.
BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1285970/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/05/2014, DJe 08/09/2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1330567/RS, NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/05/2013, DJe 27/05/2013.
[1] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. 5.ed.São Paulo: Saraiva, 2012, p. 120.
[2] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 7. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015, p. 1052-1053.
[3] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo: introdução ao processo civil, volume II. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 764.
[4] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. V. 5. 4ª ed.. Salvador: Juspodivum, 2012, p. 564.
[5] AMORIM, Daniel Amorim Assumpção. Op. cit., p. 1.053.
[6] Idem.
[7] DIDIER JUNIOR, Fredie. Op.cit., p. 564.
[8] GRECO, Leonardo. O Processo de Execução. Vol. II, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 21.
[9] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1285970/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/05/2014, DJe 08/09/2014.
[10] BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1330567/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/05/2013, DJe 27/05/2013.
[11] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Op. cit., p. 1.061.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: XIMENES, Eduardo Araujo Rocha. A relativização da impenhorabilidade das verbas salariais e o direito à tutela executiva Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 fev 2016, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46027/a-relativizacao-da-impenhorabilidade-das-verbas-salariais-e-o-direito-a-tutela-executiva. Acesso em: 22 nov 2024.
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