RESUMO: O presente trabalho busca tecer uma crítica à Súmula nº 259 do TST, cuja orientação entende-se equivocada no tocante à utilização da ação rescisória na Justiça do Trabalho nos casos de sentença meramente homologatória. Para tanto, inicia-se com uma análise da função jurisdicional do Estado e as características que influenciam neste estudo – substitutividade e definitividade – assim como dos equivalentes jurisdicionais, como a autocomposição, porquanto é essencial diferenciar a vontade (substituta) do Estado da vontade das partes. Num segundo momento, faz-se uma abordagem das ações rescisória e anulatória, diferenciando-as e destacando-se os casos em que cada uma tem cabimento. Por fim, a partir do estudo da Súmula nº 259 do TST e seus precedentes, do art. 831 da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, e de posições doutrinárias abalizadas, adentra-se no objeto deste trabalho, fazendo-se a crítica ao enunciado, não apenas demonstrando o equívoco técnico na orientação nele contida, mas também de que a situação enquadra-se naquilo que Luis Alberto Warat denomina de “senso comum teórico dos juristas”, encerrando-se com o alerta de Lenio Luiz Streck sobre crescimento de uma cultura jurídica cuja função é reproduzir as decisões.
Palavras-chave: termo de conciliação; ação rescisória; ação anulatória; sentença homologatória; súmula nº 259 do TST.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo uma abordagem crítica da Súmula nº 259 do TST, segundo a qual é cabível a ação rescisória para invalidar a sentença homologatória de conciliação.
Busca-se, a partir de uma análise doutrinária e também dos precedentes que deram origem ao enunciado, demonstrar que a orientação dada pela súmula está equivocada ou, quando menos, que a atual utilização indiscriminada, diversa do sentido inicial, vai de encontro à correta técnica processual.
Para isso, o trabalho está dividido em três partes. Na primeira delas, inicia-se o estudo partindo uma perspectiva da jurisdição, abordando-se as características da substitutividade e da definitividade, com foco na questão da vontade para a solução dos conflitos, seja do Estado, seja das partes, de forma a construir o raciocínio base quanto à utilização das ações de impugnação das decisões – ação rescisória e ação anulatória. Em seguida, examina-se o conceito das referidas ações, faz-se uma abordagem doutrinária a respeito da utilização de cada uma delas, diferenciando-as. Por fim, adentra-se ao ponto central proposto neste trabalho, com uma análise e crítica à Súmula nº 259 do TST e o art. 831 da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho.
1. Jurisdição e equivalentes jurisdicionais: heterocomposição, autocomposição e a questão da substitutividade e da definitividade
A jurisdição é sabidamente a função por meio da qual o Estado soluciona os conflitos. Essa solução se dá por heterocomposição; ou seja, um terceiro substitui a vontade das partes e determina a solução do problema apresentado. Disso decorre a característica que a distingue das demais funções estatais (legislativa e administrativa): a substitutividade.[1] Ao Estado, no exercício desse seu poder-dever[2], cumpre dizer o direito em determinado conflito de interesses, substituindo a vontade das partes, ainda que coincida com uma delas – como geralmente ocorre.
Referida característica, juntamente com outra, a da definitividade, é de suma importância para a compreensão da crítica que se fará. No exercício da função jurisdicional, o Estado substitui a vontade dos envolvidos no conflito[3], a qual, ainda, passará a ter caráter definitivo e não mais poderá ser discutida. Portanto, é essa função do Estado de dizer com quem está a razão, no lugar das partes, que passa a ser gravada com a característica da definitividade.
Fredie Didier Jr. bem destaca a característica da definitividade:
De fato, a característica que é exclusiva da jurisdição é a aptidão para a definitividade. Só os atos jurisdicionais podem adquirir essa definitividade, que recebe o nome de coisa julgada, situação jurídica que estabiliza as relações jurídicas de modo definitivo.[4]
Neste rumo, não se pode confundir atos jurisdicionais com atos judiciais, pois estes, diferentemente daqueles, podem ser realizados inclusive pelas partes.
Sem ignorar as divergências sobre ser a “jurisdição voluntária” administração de interesses privados ou jurisdição – o que não é objeto deste trabalho – o fato é que, quando a solução do conflito decorre da vontade das partes envolvidas, por exemplo, não há jurisdição. A doutrina denomina de “equivalentes jurisdicionais” as formas não-jurisdicionais de solução de conflitos. Não há, nesses casos, a substituição de vontades dos envolvidos no litígio pela vontade do Estado e, portanto, a solução encontrada pelas próprias partes não assume o caráter definitivo tal qual na jurisdição – quando a solução é entregue por aquele – ainda que venha a confirmá-la por meio da homologação.
O equivalente jurisdicional que interessa ao estudo é a autocomposição, gênero do qual são espécies a transação e a conciliação. Segundo Fredie Didier Jr., a autocomposição “é a forma de solução do conflito pelo consentimento espontâneo de um dos contendores em sacrificar o interesse próprio, no todo ou em parte, em favor do interesse alheio.”[5]
Portanto, ocorrendo a autocomposição, por transação ou conciliação, ainda que com o processo já instaurado, não haverá jurisdição, ressaltando-se, aqui, a ausência das características citadas acima. Frise-se que a diferenciação entre transação e conciliação não é relevante nesse momento, pois em ambas as formas não haverá a substituição da vontade dos envolvidos e, assim, não haverá jurisdição.
Importante destacar que eventual participação de terceiros, como o próprio Juiz, no intuito de auxiliar as partes na conciliação não afasta o caráter da autocomposição, uma vez que ele não exerce a função de solucionar o conflito no lugar das partes. José de Albuquerque Rocha ensina que “a autocomposição pode ser alcançada com a participação de terceiros através das figuras do mediador e do conciliador”[6], papel este que o próprio CPC – Código de Processo Civil diz competir ao Juiz (CPC, art. 125, inciso IV).
Dito isso, cumpre indagar a respeito da forma de eventual necessidade de impugnação e desfazimento das soluções dadas aos conflitos, sejam elas decorrentes da vontade estatal ou das próprias partes, inclusive se, neste último caso, houver homologação do acordo por um Juiz. No primeiro caso tem-se a vontade estatal, por meio de uma decisão judicial, decorrente do exercício da função jurisdicional. No segundo, tem-se a vontade das partes envolvidas que constituem um “negócio jurídico” apto a solucionar o problema, o qual, quando realizado no curso de um processo, é geralmente homologado pelo Juiz, mas prescindível, pois o que o torna obrigatório é acordo de vontades e não a homologação; a sentença é proferida apenas para extinguir o processo[7]. Para impugnar situações tão distintas, então, seria correto utilizar-se da mesma forma (ação)?
O CPC – Código de Processo Civil responde negativamente à pergunta. Porém, o que parece ser simples não o é na prática, pois a dita homologação pelo Juiz, por meio de sentença – a mesma forma pela qual o Estado substitui a vontade das partes – acaba por gerar várias polêmicas sobre a impugnação do conteúdo de ambas, principalmente no âmbito da Justiça do Trabalho, que parece ter “criado” forma única para as duas situações.
Destarte, faz-se necessário um breve estudo das ações rescisória e anulatória, as quais dizem respeito à impugnação das “decisões”, aqui mencionadas, que solucionam os conflitos.
2. Da ação rescisória e da ação anulatória
Inicialmente, registre-se apenas a indubitável aplicação do CPC – Código de Processo Civil na Justiça do Trabalho, a qual, inclusive, advém de expressa previsão do art. 769 da CLT, que prevê a aplicação do direito processual comum.
Dispõe o CPC – Código de Processo Civil:
Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;
III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV - ofender a coisa julgada;
V - violar literal disposição de lei;
VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;
VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de Ihe assegurar pronunciamento favorável;
VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;
IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa; (grifei)
Estabelece, ainda, o art. 486 do CPC – Código de Processo Civil:
Art.486. Os atos judiciais, que não dependem de sentença, ou em que esta for meramente homologatória, podem ser rescindidos, como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil.[8] (grifei)
Esgotados os recursos, a sentença transita em julgado, não sendo mais possível rediscuti-la nos mesmos autos. Porém, em casos excepcionais, a lei permite a utilização de uma ação autônoma de impugnação, com a finalidade de desconstituir a sentença de mérito transitada em julgado. Trata-se da ação rescisória prevista no art. 485 do CPC – Código de Processo Civil.[9]
Porém, ainda há outro mecanismo de impugnação além da rescisória, previsto no art. 486 do CPC. Neste caso, quando o ato judicial não dependa de sentença, ou quando esta for meramente homologatória, a ação a ser ajuizada é a ação anulatória. Conforme ensina Marcus Vinicius Rios Gonçalves:
Sempre que uma sentença for apenas de homologação como ocorre quando há acordo entre os litigantes, a ação rescisória não será o mecanismo adequado para impugnação, mas as ações anulatórias ou declaratórias de nulidade, previstas para os atos jurídicos em geral.
“O que torna obrigatória a transação não é a homologação judicial, mas o acordo de vontades. A sentença é proferida apenas para extinguir o processo, mas não é ela que confere obrigatoriedade ao acordo. Por isso, o que deve ser rescindido não é a sentença, mas o negócio jurídico homologado.[10]
O cerne da controvérsia quanto à utilização de uma ou outra ação reside no que dispõe o art. 485, inciso VIII, e o art. 486, sem excluir da problemática, porém, outras hipóteses do art. 485. Assim, importante fazer uma breve explanação acerca da utilização da ação rescisória e da ação anulatória.[11]
Muito se discutiu sobre a ação rescisória do art. 485 e a anulatória do art. 486. Todavia, firmou-se o entendimento de que a primeira tem cabimento no caso dos conflitos decididos pelo juízo, assim entendidos aqueles em que houve a substituição da vontade das partes, posto que o vício inevitavelmente estará na “decisão” do terceiro encarregado do exercício da função jurisdicional. Por sua vez, a segunda serve para invalidar os “atos judiciais” – e não os jurisdicionais – que não dependam de sentença ou quando esta for meramente homologatória, que nada mais é do que integração de forma, pois a vontade aqui é das partes, não existindo uma “decisão”. Observe-se, portanto, que a ação anulatória não objetiva rescindir “a sentença”, nem mesmo a homologatória, mas, sim, o ato – ou negócio – por ela homologado.
Pontes de Miranda assim esclarece:
Os atos processuais a que se refere o Código, o art. 486, são os atos processuais que ‘envolvem’ declaração de vontade, como a desistência e a transação, o compromisso, a outorga de poderes de procuração feita nos autos, etc. Alguns deles não permitem ao juiz, na integração da forma, qualquer alteração do declarado pela parte, seja unilateral seja plurilateralmente; e por vezes a homologação, mera integração superficial de forma, é pedida ou requerida em peça diferente, de modo que a declaração de vontade, consta de escritura pública ou do termo, e a comunicação da vontade, de petição ou requerimento. Ainda que essa separação material não se dê entre a declaração de vontade e a comunicação de vontade, que solicitou a resolução judicial homologatória, a ação para impugnar o negócio jurídico é a do art. 486, e não a do 485.[12] (destaquei)
E continua, advertindo sobre os efeitos da anulação do negócio jurídico:
“A sentença de homologação é ato jurídico processual transparente. Se é anulado o negócio jurídico da transação, ou outro metido no processo, por alguma das causas que o direito material prevê, cai a homologação, porque a eficácia anulatória, por dentro do ato jurídico global (homologação e negócio jurídico homologado), cinde (rescinde) o ato jurídico envolvente. Aí está a única escusa para se ter dado ao art. 486 a redação que se lhe deu.”[13]
O STJ – Superior Tribunal de Justiça veiculou em seu informativo nº 513:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA. DE SENTENÇA QUE HOMOLOGA TRANSAÇÃO.
Os efeitos da transação podem ser afastados mediante ação anulatória sempre que o negócio jurídico tiver sido objeto de sentença meramente homologatória. Se a sentença não dispõe nada a respeito do conteúdo da pactuação, não avançando para além da mera homologação, a ação anulatória prevista no art. 486 do CPC é adequada à desconstituição do acordo homologado. (AgRg no REsp 1.314.900-CE, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 18/12/2012.)
Impende esclarecer que não se quer utilizar o julgado acima como simples forma de sustentar a posição que defende a ação anulatória, em detrimento da rescisória, nos casos de sentenças meramente homologatórias, pois, assim, estar-se-ia incidindo no mesmo equívoco do TST – Tribunal Superior do Trabalho, ao editar a Súmula nº 259, e da Justiça do Trabalho, ao utilizá-la: ou seja, valer-se do discurso de autoridade para “justificar” a utilização de uma ou de outra ação pela simples reprodução simplificada de quem pode, em última instância, “dizer a verdade”, seja através de súmulas ou de informativos de jurisprudência.
O fato é que o STJ – Superior Tribunal de Justiça se deu ao trabalho de abordar o tema de forma mais aprofundada e, ademais, deixou aberto o leque para as diferentes situações, o que, conforme será abordado no tópico seguinte, não ocorreu para a edição da Súmula nº 259 do TST. Ademais, a menção de posição divergente de outro Tribunal alerta, quando menos, sobre a necessidade de cuidados para utilização da súmula trabalhista.
Embora a abordagem aqui se faça do ponto de vista do direito material tutelado, da existência de vício(s) na solução do litígio, registre-se que não é impossível a utilização da ação rescisória no caso de sentença homologatória, mas desde que o vício se encontre na própria sentença de homologação. Pontes de Miranda, nesse prisma, alerta que “se foi a própria sentença de homologação que deu causa à pretensão à rescisão, é a rescisória de sentença que se propõe.”[14] Porém, o objeto deste trabalho é quanto à impugnação nos casos de vícios no conteúdo do próprio acordo – negócio jurídico celebrado entre as partes[15] – e não na sentença homologatória.
O que se ataca, portanto, pois viciado, é o termo de acordo e não a sentença, pois meramente homologatória e formalmente perfeita – transparente, segundo Pontes de Miranda. O defeito encontra-se no ato jurídico particular das partes e não no do magistrado, que não adentrou ao mérito. Por isso, fica mais fácil entender o legislador ao dispor “nos termos da lei civil” (CPC, art. 486), referindo-se aos defeitos de qualquer negócio jurídico, tais como dolo, erro, coação, etc. Nessas situações, logo, a ação a ser manejada é a anulatória e não a rescisória, até porque, do contrário, restaria esvaziado o art. 486 do CPC – Código de Processo Civil.
Resta bastante claro, destarte, que havendo vícios “no acordo de vontades” das partes, que, como exposto, nada mais é do que um negócio jurídico inserido no âmbito da autocomposição – um equivalente jurisdicional –, nada há que justifique a utilização da ação rescisória, pois no ato das partes, ainda que judicial, não há jurisdição, restando intactas as características da substitutividade e da definitividade que justificariam a ação rescisória.
Por fim, quanto à competência para processar e julgar a ação, diferentemente do que ocorre na ação rescisória, esta é daquele onde o ato foi homologado, pois, como assevera o já citado autor, “o juiz que pode pronunciar a anulação do negócio jurídico de transação, se há referência à homologação, somente pode ser juiz do processo em que tal homologação ocorreu”.[16]
3. O termo de conciliação (CLT, art. 831) e a Súmula nº 259 do TST
Consoante se destacou alhures, seja de uma perspectiva da função jurisdicional, seja da interpretação e harmonia das normas processuais, quando a sentença for meramente homologatória, apenas formalmente envolvente da transação ou conciliação, a ação cabível é a ação anulatória (CPC, art. 486).
Na Justiça do Trabalho, porém, o entendimento não é o mesmo. Está pacífica a orientação de que a ação cabível, em tais casos, é a rescisória, conforme previsto na Súmula nº 259 do TST:
TERMO DE CONCILIAÇÃO. AÇÃO RESCISÓRIA (mantida) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003
Só por ação rescisória é impugnável o termo de conciliação previsto no parágrafo único do art. 831 da CLT.
Por sua vez, dispõe o aludido art. 831 da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho:
Art. 831 - A decisão será proferida depois de rejeitada pelas partes a proposta de conciliação.
Parágrafo único. No caso de conciliação, o termo que for lavrado valerá como decisão irrecorrível, salvo para a Previdência Social quanto às contribuições que lhe forem devidas. (destaquei)
Ainda que se pudesse alegar aplicação de norma especial, tal como o art. 831 da CLT – o que não convenceria, pois as ações de impugnação estão integralmente reguladas pelo CPC – nem sequer no artigo de lei citado se encontra fundamento para a orientação adotada pela Súmula nº 259 do TST.
Analisando-se alguns dos precedentes[17] que deram origem à súmula[18], no ano de 1986, é possível fazer as seguintes observações: (a) as decisões analisadas são bastante superficiais, não enfrentando qualquer discussão acerca das ações aqui discutidas ou outras questões processuais, em que o conteúdo é uma repetição sucinta de decisões anteriores, cuja essência já não mais discutia quando da edição da súmula; (b) muitos dos casos não tratavam da divergência entre ação rescisória x ação anulatória, mas de acordo homologado em ação trabalhista precedente x ação trabalhista posterior postulando verbas do mesmo contrato de trabalho, sem qualquer impugnação para invalidar a conciliação anterior; (c) a utilização, em quase todos os julgados analisados, do termo “decisão irrecorrível” do art. 831 da CLT para justificar a utilização da ação rescisória e não da ação anulatória.
A superficialidade dos julgados precedentes e a existência de situações bastante distintas daquelas em que hoje se aplica a súmula já seriam suficientes para demonstrar que ela não se sustenta. Aliás, neste prisma, vale a crítica de Maurício Ramires:
O caminho mais curto para o esquecimento do mundo concreto e para o encobrimento dos fatos da vida é a busca de lições jurídicas em meros verbetes ou ementários jurisprudenciais, em vez de acórdãos ou decisões judiciais completas (que ao menos são dotadas obrigatoriamente de um relatório do processo, com um resumo do caso decidido). [19]
Mas, na situação estudada, não é só. No tocante à terceira observação supra, a pergunta a ser feita é: por que o termo “decisão irrecorrível” define que a ação rescisória é a adequada para impugnar os casos em que a sentença é meramente homologatória?
Ora, o fato de uma decisão ser irrecorrível não define qual das ações é cabível. A sentença proferida por um juiz no exercício da jurisdição, em substituição à vontade das partes, é “recorrível”, mas se submete à ação rescisória. Deveria, ela, a “contrario sensu”, se submeter à ação anulatória? Conforme vem se sustentando neste trabalho, a utilização das referidas ações de impugnação está relacionada à jurisdição (ou à sua ausência) e suas características, e ao(s) prolator(es) da vontade na solução do conflito.
O art. 831 da CLT, ao mencionar “decisão irrecorrível” apenas afasta a possibilidade de a(s) parte(s) firmarem o acordo e, em seguida, interpor(em) um “recurso”, o que nenhuma das duas “ações” o é. Ocorrendo vício, portanto, haverá necessidade de se manejar a ação anulatória, se o vício estiver no acordo de vontades, ou a ação rescisória, caso esteja na sentença homologatória – o que pode ocorrer, por exemplo, quando o juiz for incompetente.
Aliás, a Lei nº 10.035/2000, deu ao art. 831 da CLT a redação atual, que incluiu “salvo para a Previdência Social quanto às contribuições que lhe forem devidas”. Nesse caso, não se tratando de “decisão irrecorrível” para a Previdência Social, esta poderia fazer uso da ação anulatória?
No próprio âmbito do Processo do Trabalho, vários doutrinadores afirmam que a ação cabível é a anulatória. Valentin Carrion comunga desse entendimento, afirmando que “não há sentença de transação, mas sentença de homologação para que se extinga a relação processual; a decisão não é sobre o mérito. Nosso Direito Positivo parece ratificar esse entendimento (CPC, 486);”. [20]
Manoel Antônio Teixeira Filho, em obra especificamente sobre a matéria, assim se manifesta:
“Por outro lado, a particularidade de o ato (em geral) ser componente do processo não pode, por si só, conduzir à elaboração de critério equívoco, segundo o qual o seu desfazimento somente seria possível por ação rescisória. Ora, o fato de o próprio art. 486 cogitar de atos que não dependam de sentença demonstra que seria insensato pensar-se em ação rescisória onde não existe sentença – e quanto menos sentença de mérito. Na hipótese de a sentença ser ‘meramente’ homologatória, o Código a faz susceptível de ação anulatória. Neste caso, o ato homologado – e não a sentença – é o objeto da ação; desfeita que seja, a sentença, como elemento continente (envoltório do ato), perde o seu conteúdo e se torna inoperante, sem que haja necessidade, para isso, de ser atacada pela rescisória.
“Lembra Barbosa Moreira que a investigação pertinente a saber quando são anuláveis os atos que independem de sentença ou em que esta seja apenas homologatória é algo que respeita ao direito material e não ao processual: ‘No que concerne aos atos homologados, o fato de aludir o texto legal a ‘sentença meramente homologatória’ pode dar a impressão de que o dado essencial seja a natureza da sentença: Ter-se-iam de separar, dentre as decisões homologatórias, aquelas que o fossem ‘meramente’, e só então caberia a ação do art. 486. Ao (sic) nosso ver, pelo contrário, o dado essencial é a natureza do ato homologado: o que cumpre averiguar é se, em relação a este, há que se cogitar-se de anulabilidade por alguma causa prevista em regra de direito material (v.g., vício do consentimento). No caso afirmativo, a sentença é ‘meramente homologatória’, no sentido do art. 486.”[21]
Neste sentido, NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, fazem as seguintes observações:
“Termo de conciliação. CLT 831 par. ún. Ação rescisória. TST 259: “Só por ação rescisória é atacável o termo de conciliação previsto no parágrafo único do art. 831 da CLT”. Com a devida vênia, o termo de conciliação de que trata o art. 831 par. ún. tem natureza jurídica de transação, motivo por que a ele se aplicam as regras de impugnação dos negócios jurídicos em geral, vale dizer, é atacável por meio de ação anulatória do CPC 486 e não da rescisória do CPC 485”. [22]
Está claro que a Súmula nº 259 do TST, ao menos da forma como vem sendo aplicada, acaba por ignorar não só as peculiaridades de cada caso, mas toda a doutrina que envolve a utilização das ações em comento; inclusive, cria, por via transversa, nova regra de competência para julgamento de determinada situação que originariamente competiria à outra instância – a anulatória compete ao Juiz de primeiro grau e a rescisória ao Tribunal.
Na verdade, o que se observa através do estudo presente é parte do fenômeno que Luis Alberto Warat denomina de “senso comum teórico dos juristas”:
[...] podemos apontar a “região das crenças epistemológicas” que dizem respeito às evidências fornecidas pela prática institucional dos cientistas. Assim, poderíamos falar dos hábitos intelectuais, que regulam as condições de produção do conhecimento, como também, das interpretações vulgarizantes dos conceitos, fruto de suas desvinculações dos marcos teóricos sistemáticos em que foram produzidos (como se os conceitos tivessem uma força explicativa intrínseca). Também, poder-se-ia falar das grandes verdades elementares, dos reconhecimentos metafóricos do real e das propostas reificantes das idéias como fundamento da produção do conhecimento. E, também, porque não, da crença na eficiência do método para produzir a objetividade e a verdade.[23]
Nessa linha, mais especificamente quanto às decisões dos Tribunais, Lenio Luiz Streck:
Em terrae brasilis, esta problemática é facilmente notada no impressionante crescimento de uma cultura jurídica cuja função é reproduzir as decisões tribunalícias. É o império dos enunciados assertórios que se sobrepõe à reflexão doutrinária. Assim, os reflexos de uma aposta no protagonismo judicial não demorariam a ser sentidos: a doutrina se contenta com 'migalhas significativas' ou 'restos dos sentidos previamente produzidos pelos tribunais'.[24]
Destarte, longe de encerrar a discussão, evidencia-se na existência e aplicação da súmula mais do que uma impropriedade técnica, a qual parece muito clara, conforme se demonstrou acima; a crença na eficiência do método para produzir a objetividade e a verdade[25], denuncia a presença do senso comum teórico dos juristas, revelado no império dos enunciados assertórios que se sobrepõe à reflexão doutrinária[26].
CONCLUSÃO
O fenômeno que inclui a reprodução das decisões dos Tribunais como sendo a expressão da verdade e engessando uma reflexão mais aprofundada não é novo e há muito já vinha sendo destacado por Luis Alberto Warat naquilo que denomina de “senso comum teórico dos juristas”. As questões envolvendo a utilização da Súmula nº 259 do TST na Justiça do Trabalho, a qual afirma ser cabível a ação rescisória para impugnar o termo de conciliação de que trata o art. 831 da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, aí se encaixam.
Conforme restou visto, prevalece na Justiça do Trabalho o entendimento de uma súmula que permanece sendo utilizada sem grandes debates – mesmo já passados 30 (trinta) anos da sua edição e afastada das circunstâncias fáticas e jurídicas que a originaram. E, apesar da total atecnicidade determinada pelo enunciado sumular, cujos precedentes não ousam entrar numa discussão maior, percebe-se que a onda de edição de súmulas que pretendem produzir objetividade e verdade, esquecendo-se do mundo real e concreto, faz cada vez mais crescer “o império dos enunciados assertórios que se sobrepõe à reflexão doutrinária”[27], prejudicando o debate necessário.
Por isso, preocupou-se, em suma, em fazer uma abordagem crítica e demonstrar as razões pelas quais a Súmula nº 259 do TST possui uma orientação equivocada, partindo-se de uma perspectiva da função jurisdicional, da técnica processual, diferenciando-se as duas ações de impugnação “das decisões”, bem como apontando-se, por fim, que os argumentos – embora mínimos – não resistem às menores indagações.
É de se registrar que não se quis esgotar o tema. Apesar das considerações aqui feitas, há muito que ser estudado e aprofundado. Aliás, é evidente que se faz necessária uma reflexão ainda maior sobre a súmula e sua razões de (ainda) existir, porque parece bastante claro que a ação rescisória não se presta a atacar e invalidar o termo de conciliação do art. 831 da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, em que as partes resolvem o conflito e o juiz apenas extingue o processo.
REFERÊNCIAS
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GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.
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NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 14ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
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ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
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TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. Ação Rescisória no Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 1991.
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[1] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Vol 1. 15. ed.. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 106.
[2] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito processual civil esquematizado. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 87.
[3] DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 18ª ed. rev., ampl. e atual. especialmente de acordo com as Leis nºs 12.424/2011, 12.341/2011 e 12.810/2013. São Paulo:Atlas, 2014, p. 6.
[4] DIDIER JR., Fredie. Op. Cit., p. 115.
[5] DIDIER JR., Fredie. Op. Cit., p. 116.
[6] ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 29.
[7] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Op. Cit., p. 448.
[8] NCPC, “Art. 966, §4º. Os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por outros participantes do processo e homologados pelo juízo, bem como os atos homologatórios praticados no curso da execução, estão sujeitos à anulação, nos termos da lei.”
[9] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Op. Cit., p. 447.
[10] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Op. Cit., p. 448.
[11] GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Op. Cit., p. 448.
[12] MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, tomo VI: arts. 476-495. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 263.
[13] MIRANDA, Pontes de. Op. Cit., p. 263.
[14] MIRANDA, Pontes de. Op. Cit., p. 268.
[15] MIRANDA, Pontes de. Op. Cit., p. 266.
[16] MIRANDA, Pontes de. Op. Cit., p. 264.
[17] ROAR 86/1985, Ac. TP 1828/1986 - Min. Guimarães Falcão, DJ 29.08.1986 - Decisão unânime.
ROAR 646/1981, Ac. TP 4/1983 - Red. Min. Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, DJ 25.03.1983 - Decisão por maioria.
ROAR 337/1982, Ac. TP 77/1983 - Min. Guimarães Falcão, DJ 11.03.1983 - Decisão unânime.
ROAR 534/1979, Ac. TP 1784/1980 - Min. Luiz Roberto de Rezende Puech, DJ 24.10.1980 - Decisão unânime.
ROAR 512/1978, Ac. TP 1118/1979 - Min. Hildebrando Bisaglia, DJ 19.06.1979 - Decisão unânime.
ROAR 484/1977, Ac. TP 593/1978 - Min. Coqueijo Costa, DJ 07.07.1978 - Decisão unânime.
RR 8773/1985, Ac. 1ªT 1708/1986 - Min. Orlando Lobato, DJ 27.06.1986 - Decisão unânime.
RR 7532/1984, Ac. 1ªT 4148/1985 - Min. Fernando Franco, DJ 25.10.1985 - Decisão unânime.
RR 5016/1981, Ac. 1ªT 2240/1982 - Min. Fernando Franco. DJ 13.08.1982 - Decisão unânime.
RR 4398/1981, Ac. 1ªT 2311/1982 - Min. Fernando Franco, DJ 13.08.1982 - Decisão por maioria.
RR 4506/1980, Ac. 1ªT 2558/1981 - Min. Guimarães Falcão, DJ 16.10.1981 - Decisão por maioria.
RR 4059/1978, Ac. 1ªT 679/1979 - Min. Marcelo Pimentel, DJ 08.06.1979 - Decisão unânime.
RR 2590/1975, Ac. 1ªT 2404/1975 - Min. Raymundo de Souza Moura, DJ 18.05.1976 - Decisão unânime.
RR 2553/1975, Ac. 1ªT 2335/1975 - Min. Elias Bufaiçal, DJ 26.03.1976 - Decisão unânime.
RR 2355/1976, Ac. 2ªT 2407/1976 - Min. Renato Machado, DJ 28.02.1977 - Decisão unânime.
RR 24/1973, Ac. 2ªT 1231/1973 - Rel. “ad hoc” Min. Thélio da Costa Monteiro, DJ 25.09.1973 - Decisão por maioria.
RR 230/1982, Ac. 3ªT 357/1983 - Min. Orlando Teixeira da Costa, DJ 18.03.1983 - Decisão unânime.
RR 3097/1974, Ac. 3ªT 1953/1974 - Rel. “ad hoc” Juiz Conv. Ribeiro de Vilhena, DJ 03.03.75 - Decisão por maioria.
[18] Em alguns casos, não foi possível analisar a integralidade do precedente por falha no arquivo disponibilizado, o que não afeta, porém, o estudo e a crítica ora realizados.
[19] RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p.49.
[20] CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 616.
[21] TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. Ação Rescisória no Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 1991, p. 277.
[22] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante. 14ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 980.
[23] WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. Revista Seqüência nº 5. Florianópolis: Editora da UFSC, 1982, p. 57.
[24] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 88-89.
[25] WARAT, Luis Alberto. Op. Cit., p. 57.
[26] STRECK, Lenio Luiz. Op. Cit., p. 88-89.
[27] STRECK, Lenio Luiz. Op. Cit., p. 88-89.
Graduação em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (2004) e pós-graduação em Direito Civil pela mesma instituição (2007). Atualmente é advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB/SC 20.801), assessor jurídico e colaborador de entidade(s) não governamental(is). Tem experiência nas áreas de Direito Civil, Administrativo, Constitucional, do Trabalho, Previdenciário, dentre outras.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OTERBACH, Daniel Thiago. A ação rescisória de sentença homologatória na justiça do trabalho: uma crítica à súmula nº 259 do TST Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 mar 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46141/a-acao-rescisoria-de-sentenca-homologatoria-na-justica-do-trabalho-uma-critica-a-sumula-no-259-do-tst. Acesso em: 22 nov 2024.
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